“Em um país elitista, fortalecer a defensoria não é interessante”
Defensores públicos apontam que garantir atendimento jurídico às classes mais vulneráveis não é uma das prioridades do Brasil. Isso dificulta o acesso das camadas mais pobres à justiça e o trabalho das defensorias
Por: Mariana Lima
“Pessoas muito humildes não conhecem seus direitos”, afirma o defensor público do Espírito Santo e presidente da Associação Nacional de Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP), Pedro Paulo Coelho.
O defensor está na instituição desde 2013, e ressalta que muitas pessoas que precisam dos serviços da defensoria não sabem que podem insistir para receber atendimento e os benefícios a que elas têm direito.
“É fundamental trazer o conhecimento jurídico para a população. Eu me encontrei na defensoria, ela me fez enxergar a realidade brasileira e me motivar a promover mudanças”.
Como defensor, Paulo enfrentou algumas frustrações. “Consegui uma liminar para o atendimento médico de uma criança e ela morreu devido à demora para a liminar sair. Casos de prisões injustas também me frustram. Mas me mostram a importância do meu trabalho”.
O trabalho da Defensoria Pública consiste em oferecer, de forma integral e gratuita, atendimento jurídico às pessoas de baixa renda e em situação de vulnerabilidade social. A defensoria é uma instituição autônoma, já que muitos dos casos atendidos são contra órgãos públicos federais ou estaduais.
Para compreender a atuação dessa instituição, é necessário salientar que ela atua em dois aspectos: A Defensoria Pública Estadual (DPE) e a Defensoria Pública da União (DPU).
A Defensoria do Estado atua na área Cível (principalmente Direito da Família, como teste de DNA e pensão); de Tutela Coletiva (ligado a habitação); Criminal (defesa de réus); Infância e Juventude (defesa de menores acusados de algum crime); e Execução Criminal (defesa de cidadãos cumprindo penas após a condenação judicial).
“As pessoas que atuam na defensoria se esforçam para dar conta dos atendimentos, porém os locais continuam abarrotados. A demanda não diminui”
Já a Defensoria Pública da União atua em processos que envolvem órgãos federais, como ações previdenciárias, trabalhistas, direitos estrangeiros, problemas com o Fies (na Caixa Federal) ou ProUni, crimes federais, moradia, e direitos humanos.
A área da saúde, principalmente ligada ao Sistema Único de Saúde (SUS), é a única que está tanto na competência da Defensoria Estadual quanto na da União.
O público atendido pelas defensorias é formado por pessoas com renda familiar de até 3 salários mínimos. Pessoas em situação de rua podem ser atendidas pelas defensorias, tanto para emitir documentação como para buscar orientação jurídica.
“Vivemos em um país elitista, então fortalecer a defensoria, que é voltada para uma população mais pobre e sem grande poder aquisitivo, não é uma pauta interessante”, desabafa o defensor Pedro Paulo Coelho.
A frase reflete a situação de descaso a que muitas defensorias pelos país estão expostas. Segundo um estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), utilizando dados da ANADEP, existe um déficit de 10.578 defensores públicos no país para atender as demandas da população.
Entre 2014 e 2018, houve um aumento de 10% no número de defensores em atuação no país, porém o quadro ideal seria ter esse crescimento ao ano. Atualmente, 5.961 defensores públicos estaduais estão exercendo suas funções.
Esse descompasso atinge diretamente os atendimentos realizados pelas defensorias. Para ser atendida, a população precisa chegar cedo e retirar senhas. Dependendo da defensoria e da região, as pessoas podem deixar a instituição sem chegar a passar pela triagem.
De acordo com dados da ANADEP, os estados com o maior déficit de defensores públicos em comparação com a demanda são: Paraná (1 defensor para 53 mil pessoas), Goiás (1 defensor para 34.061 pessoas) e Santa Catarina (1 defensor para 26.837 pessoas).
A falta de defensores faz com que seja necessário recorrer a serviços parceiros para que todos os atendimentos sejam realizados. A chamada “defensoria dativa” se refere aos atendimentos realizados por advogados particulares pagos com os recursos públicos. Esse serviço é realizado, geralmente, em parceria com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Para o defensor da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPE-SP) e responsável pelo atendimento inicial, Tiago Bressan Buosi, o investimento que vai para a OAB deveria ser depositado na defensoria.
“Se houvesse mais defensores no país, esses atendimentos privados não teriam que acontecer. As pessoas que atuam na defensoria se esforçam para dar conta dos atendimentos, porém os locais continuam abarrotados. A demanda não diminui”.
O defensor chama a atenção para a importância do trabalho prestado pela defensoria. “Um advogado particular atenderia um morador de rua gratuitamente? Não. Ele tem que se sustentar e as pessoas que buscam suporte aqui não têm como pagar por um serviço como este”.
Buosi atua há 12 anos como defensor público e enxerga a profissão como desafiadora. “Os desafios me motivam a continuar. Porém enfrento algumas frustrações, como estar convicto em relação à defesa de um caso e mesmo assim não ter êxito. Mas é um trabalho prazeroso, ver o resultado, como a defesa se desdobra”.
Defensoria Pública: um direito
O atendimento jurídico gratuito prestado tanto pela Defensoria Pública da União como pelas defensorias estaduais é garantido por lei e consta na Constituição de 1988, no art. 134. Porém, somente em 2018 todos os estados passaram a contar com pelo menos uma defensoria pública ativa, com a inclusão do Amapá.
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPE-SP), por exemplo, só foi inaugurada em 2006, em consequência da pressão de setores da sociedade civil.
“As ações deste movimento estão presentes no espírito da instituição. O trabalho que temos aqui é muito elogiado por outras defensorias”, conta o defensor público de SP Tiago Buosi.
Somente em 2018, a DPE-SP realizou 446 mil atendimentos na área cível. E, contando todos os tipos de atendimento, foram mais de 1,6 milhão. Agora em 2019, até junho, a instituição já tinha realizado 743,2 mil atendimentos.
A emenda 45/2004 deu autonomia para a administração das Defensorias Públicas Estaduais, que passaram a elaborar suas próprias propostas orçamentárias. Em 2014, o Mapa da Defensoria Pública no Brasil revelou que apenas 28% das comarcas (regiões que são de responsabilidade de um ou mais juízes, abrangendo um ou mais municípios) no país possuíam defensores públicos.
“A defensoria é um serviço público. Temos como dever pensar em como beneficiar a coletividade. E isso agrega uma satisfação pessoal, porque defender o pobre no Brasil atual ainda é um desafio, principalmente fora de espaços com propostas como estas”, comenta Fabiana Galera Severo, defensora da Defensoria Pública da União em São Paulo.
A defensora destaca que o trabalho da instituição está atrelado aos direitos humanos. Ela ressalta que os defensores podem fazer o que se chama de a “defesa de bandido”, mas que a preocupação deles é olhar para quem são essas pessoas.
“Nós defendemos as pessoas que são mais discriminadas na sociedade. Mas quem são essas pessoas? É a mãe solo que cria os filhos sozinha e que acabou sendo mula do tráfico de drogas para conseguir sustentar a família, por exemplo”.
“Temos um estrangulamento das ferramentas que viabilizam nosso trabalho”
Fabiana exerce a função de Defensora Regional de Direitos Humanos em São Paulo e representa a DPU no Conselho Nacional de Direitos Humanos. Para ela, fazer a defesa destas pessoas no sistema atual da justiça brasileira é complicado.
“Fazer essa defesa em um sistema altamente elitizado, como é visto no sistema da justiça brasileira, e dentro de uma sociedade patriarcal e racista é um desafio ainda maior. O sistema de justiça enxerga essas pessoas com muito preconceito”.
Em 2014, foi promulgada a emenda constitucional 80, que tem o objetivo de promover a criação de Defensorias Públicas em todas as unidades jurisdicionais até 2022. Até o momento, apenas 40% das comarcas contam com defensorias próprias.
Outro problema enfrentado pelas defensorias se refere aos servidores que atuam nas instituições. Em julho deste ano, o Governo Federal determinou que a Defensoria Pública da União devolva cerca de 800 servidores, o equivalente a 63% dos funcionários da instituição, aos seus órgãos de origem.
“Nós defendemos as pessoas que são mais discriminadas na sociedade. Mas quem são essas pessoas?”
Esses servidores foram cedidos pelo Poder Executivo Federal, e o retorno deles é garantido pela lei nº 13.328/2016, que estabelece o retorno dos funcionários após três anos ininterruptos de requisição.
A DPU depende de servidores requisitados de outros órgãos desde 1995, ano de sua criação. Com o retorno destes servidores aos seus órgãos de origem, 43 unidades da Defensoria Pública da União no interior do país terão que ser fechadas, afetando principalmente a população indígena e pessoas encarceradas.
“Se já estamos em um contexto ruim, isso se agravou ainda mais com a reforma trabalhista, com cortes de gastos, e agora com a devolução destes servidores. Temos um estrangulamento das ferramentas que viabilizam nosso trabalho”.
Quem precisa do trabalho das defensorias?
Gláucia dos Santos, 36, é atendente de telemarketing e reside na Freguesia do Ó (São Paulo, Capital), e precisou buscar a ajuda da Defensoria Pública da União em consequência de um valor não declarado na Receita Federal. “Eu ganhei um processo trabalhista em 2016, e o advogado depositou 25 mil na minha conta. Só que até o final no ano meu CPF estava bloqueado, porque constava 127 mil não declarados na minha conta”.
Gláucia foi informada de que precisaria de um advogado tributário, pelo fato do valor ser do Governo. “Por sorte, a minha renda não ultrapassou o valor estipulado pela DPU, porque senão eu não teria como pagar por um advogado. É fundamental ter um serviço como este [da defensoria]”, comenta.
“[…] Não temos condições para pagar por um advogado, mas não podemos esperar para sempre”.
As irmãs Pamela Luzia da Cruz, 22, e Pérola Luzia da Cruz, 20, perderam a mãe vítima de um câncer no esôfago há 9 meses. A família estava com tudo certo para se mudar para um apartamento do programa Minha Casa, Minha Vida, porém o apartamento estava no nome da mãe e, desde sua morte, as filhas estão tentando colocar no nome delas.
“A gente não pode se mudar enquanto não resolver isso. Já tem outras famílias morando no prédio. A moça responsável ligou perguntando se ninguém iria se mudar. A gente fica com medo de acabar perdendo o apartamento por causa disso”, conta Pamela.
As meninas e a mãe moravam em uma área de risco na região de Diadema (SP), até que a prefeitura as retirou de lá e passou a oferecer auxílio-aluguel. Foram necessários 6 anos para o apartamento sair no nome da mãe delas.
“Está chegando conta de luz, de água, coisas que não estamos usando lá. E fomos informadas de que teremos que pagar por tudo assim que nos mudarmos. E o auxílio-aluguel que estávamos recebendo também foi cortado”, revela Pérola.
Na primeira vez em que foram à Defensoria Pública da União, as irmãs sentiram que o atendimento foi rápido. Porém com a demora para o encaminhamento do problema e, por consequência, para a resolução, as irmãs sentem-se indignadas.
“Ligam e falam que temos que esperar. Não temos condições para pagar por um advogado, mas não podemos esperar para sempre. Conseguimos um agendamento para falar com um defensor, mas se não insistíssemos nem isso teríamos”, desabafa Pamela.
Regiane Barros dos Santos, 39, está desempregada e não teria como pagar por qualquer acompanhamento jurídico. O filho dela tem um transtorno mental e, para que ele receba o tratamento adequado pelo SUS, Regiane decidiu buscar ajuda na DPU.
“Meu filho recebeu um laudo que comprova que ele tem direito a receber o tratamento, mas esse benefício lhe foi negado. Eu resolvi recorrer para conseguir o tratamento para ele”.
Residentes da Cracolândia receberão atendimento jurídico gratuito
04/11/2019 @ 16:36
[…] orientações. Está previsto que representantes do Ministério Público de São Paulo e das defensorias públicas estadual e da União atuem em parceria com o projeto para atender essas demandas […]