Luto: entre o tabu da morte e a urgência da vida
Iniciativas criadas por quem já enfrentou a dor da perda oferecem apoio a pessoas na mesma situação
por Diego Thimm
Por que não falamos sobre o luto? Por que não falamos sobre a dor da perda e aumentamos o acolhimento das pessoas que ficam? Temos receio de falar sobre uma condição que é comum a todos: a morte.
Depois de perder o filho, a jornalista Cynthia de Almeida, 61 anos, criou, junto com mais seis amigas, a iniciativa ‘Vamos falar sobre o luto?’. Mais do que uma pergunta, o nome do projeto é um convite para se quebrar o tabu de falar sobre perdas.
A iniciativa reúne, em um site, histórias de pessoas que passaram por algum tipo de luto, experiência comum a todas as idealizadoras do portal. “Não somos especialistas, mas queremos tornar menos solitária esta perda. O luto não é uma patologia, mas um processo”, fala Cynthia.
A jornalista diz que não é fácil ouvir e ler as histórias, já que cada uma delas teve alguma perda, mas que é um privilégio poder falar sobre o tema. “De alguma forma, a dor do outro expressa, também, a minha dor. É preciso criar condições para que as pessoas que estão passando pelo luto não tenham vergonha de falar. Permitir que a tristeza não seja vista como fraqueza”.
Luciana Mazorra é doutora em Psicologia Clínica e cofundadora do Instituto 4 Estações, local de atendimento a pessoas enlutadas e de capacitação de profissionais que lidam com a morte e o luto. Ela diz que vivemos numa cultura que nega a morte, mas que já houve um progresso no debate do tema. “Por um lado, tem este aspecto de vivermos numa sociedade narcísica que enxerga a morte como fracasso, por outro, vejo um avanço por estarmos tocando cada vez mais no assunto. Ao falar, a gente pode dar um lugar para o luto. Se a gente não fala, não desenvolve recursos para lidar nem com a nossa dor, nem com a dor do outro”.
Alice Lanalice perdeu a filha há 17 anos, e um ano e meio depois criou a CASULO – Associação Brasileira de Apoio ao Luto, que oferece reuniões e acolhimento para pessoas que perderam os filhos. “Quando minha filha morreu, eu queria falar; precisava de ajuda, mas não encontrei grupos de apoio”, conta sobre a ideia de criar a organização.
Para Alice, o tabu de se falar sobre perdas e luto vem do pânico do desconhecido. “Temos um medo latente da morte. Ela é ignorada, como se não fizesse parte da própria vida”.
O nome da organização veio da analogia da transformação da lagarta em borboleta. “É preciso se dar o direito de sofrer. Se você negar a dor, você entra num estado melancólico em relação à vida. O nosso propósito é que as pessoas ampliem suas redes de apoio e que possam, depois do processo, deixar o casulo”, explica Alice.
Luciana Mazorra diz que o esperado é que a pessoa, depois de passar pelo processo do luto, possa estar mais focada em outras atividades e projetos, e olhar para a dor mais em momentos específicos, como em aniversários ou ao ouvir uma música.
“O processo de elaboração do luto se dá num movimento de oscilação entre dois tipos de enfrentamentos. Um voltado para a perda e outro para a restauração, com atividades relacionadas ao trabalho, por exemplo. Assim, um potencializa o outro. Se eu encaro a minha dor, isto me dá forças para realizar outras atividades e, se eu faço outras tarefas, isto me dá mais força para eu visitar a minha dor”, explica a psicóloga.
A CASULO tem como base reuniões quinzenais e oferece, também, serviços de visitas para pessoas com perdas muito recentes, que não conseguem comparecer aos primeiros encontros. “A ideia é mostrar ao outro que ele não está sozinho nesta jornada. Não se ‘cura’ ninguém. A intenção é que a pessoa possa arrumar um espaço dentro de si para guardar esta dor”, comenta Alice.
Sobre os grupos de apoio, Mazorra diz que acha importante o trabalho realizado, mas que em alguns casos é necessária a psicoterapia. “O luto é muito individual. Acho importante que tenha uma avaliação prévia se o grupo é algo que irá ajudar a pessoa; se ela está preparada para falar e ouvir.” Mas, de uma forma geral, diz que as iniciativas apoiam no processo. “Você tem a oportunidade de perceber que não é o único que está passando por aqueles sentimentos”.
Histórias de vida
Cynthia de Almeida, do ‘Vamos falar sobre o luto?’, perdeu o filho Gabriel em um acidente de carro, em 2001. “Foi um divisor de águas na minha vida, mas eu aceitei ajuda para passar por este processo”, conta.
Ela diz que sempre teve uma rotina de certa forma segura, com uma família próxima, mas entendeu, da forma mais difícil, que não temos controle sobre todos os acontecimentos. “A gente passa a olhar tudo de uma maneira diferente, com mais humildade. Vejo a vida de uma maneira mais realista hoje, mas nem por isto menos bonita”.
A jornalista tem mais dois filhos e diz que aquele que se foi, muitas vezes, continua próximo dela. “Muita gente acha que perguntar sobre quem morreu ao enlutado irá lembrá-lo da perda. A questão é que não se esquece. Rememorar e falar do meu filho, de certa forma, é um modo de trazê-lo de volta”, conta.
Desde a morte de Gabriel, todos os anos, no dia em que seria comemorado o aniversário dele, familiares e amigos se reúnem como uma forma de homenageá-lo. A iniciativa foi dos próprios colegas dele, que tinha 20 anos quando morreu. “Muitos dos colegas, hoje, já têm uma família formada”, lembra Cynthia.
A jornalista Clarice Chiquetto também teve uma experiência de perda. Sua primeira filha, Cecília, morreu em dezembro do ano passado.
Com uma doença rara, que comprometia sua imunidade, a recém-nascida passou um tempo internada na UTI. Durante a busca dos pais para saber mais sobre a doença, a bebê vivia a rotina do lar e de hospitais. Com apenas quatro meses de vida, a pequena Cecília morreu enquanto mamava. “Para mim, eu tinha sufocado minha filha com o leite”, conta Clarice. Além do luto, Clarice teve que enfrentar a culpa.
Entre náuseas, dores de cabeça e sintomas psicológicos, a jornalista só conseguiu parar de se responsabilizar pelo ocorrido depois que descobriram, num exame, o problema que afetava sua filha. “Alguns meses depois da morte dela, descobrimos a causa. Consegui me livrar da culpa quando entendi que tinha feito de tudo para ela viver. Inclusive o leite, que a princípio achei que a tinha sufocado, havia ajudado no prolongamento da vida dela”.
Para vivenciar o processo de luto, Clarice buscou ajuda nas palavras. Passou a escrever nas redes sociais sobre o momento que passava. “Digo que vomito as palavras para poder limpar um pouco o meu corpo”.
A jornalista procurou assistência para lidar tanto com as dores emocionais como físicas. “A dor de perder um filho é uma dor que se sente com o corpo inteiro.” Hoje, faz consultas com duas psicólogas, além de fisioterapia. “A princípio procurei uma terapia convencional, mas, no meu caso, até piorou o processo. Agora, com uma especialista em luto e outra com experiência em hospitais, me senti mais acolhida”.
Comum nos casos de perda é a falta de experiência para acolher ou conviver com pessoas enlutadas. O que falar para alguém que acaba de perder um filho? Clarice diz que começou a observar como as pessoas não sabem lidar com a perda do outro. “Para mim, não precisa dizer nada. Deixa que eu falo e, talvez, vou precisar apenas de um abraço”.
Ela se sente privilegiada por poder buscar apoio e pela ajuda que ganhou durante o processo. “O carinho que recebi foi imenso. Muitas pessoas não têm condições de buscar ajuda, assim, o compartilhamento de histórias na internet pode ser importante”.
Mesmo recente, a jornalista diz que o luto a transformou. “Sempre olhei muito para os outros, agora voltei-me mais para dentro de mim. Ainda estou no processo de entender quem é a nova Clarice”.
Ela diz que agora percebe que poucas coisas na vida valem a nossa energia. Que os clichês, como ter uma boa saúde e valorizar o momento, são o que realmente importa; e finaliza: “Quero limpar este buraco que ficou neste momento, para isto não vir lá na frente com ressentimentos. Quero poder lembrar da minha filha com carinho”.
Desafios do luto
Entre os principais desafios no apoio de pessoas em luto, a psicóloga Luciana Mazorra aponta para a oferta de atendimentos gratuitos e de educação sobre o tema. “Há muitos locais pelo Brasil que não têm serviços gratuitos e não é todo mundo que pode pagar uma psicoterapia. É preciso melhorar a oferta pública para atingir mais pessoas”.
No campo da educação, Mazorra diz que é importante se pensar numa formação desde a infância. “Sou otimista ao ver que a busca por apoio cresceu nos últimos anos. Mas a educação para a morte nas escolas, por exemplo, ainda pode avançar muito. O sexo já é mais debatido nas salas de aulas, mas a perda e o luto ainda não”.
Mais do que enfrentar e debater o processo do luto, Mazorra fala que podemos enxergar este momento de uma forma diferente. “O luto, muito mais do que fases, é um processo de construção de significados. Uma busca para dar sentido ao que aconteceu, que apesar de ser difícil, pode ser muito rica também. A gente costuma olhar para isto só como uma coisa muito pesada, mas toda crise é também uma oportunidade de aprendizado”, resume a psicóloga.
Glaucia
25/09/2017 @ 14:27
Gostaria muito de contar, minha história, tem me ajudado bastante .. todas as histórias
Redação Observatório
26/09/2017 @ 10:19
Olá, Glaucia.
Você pode procurar um desses grupos citados na matéria. Acreditamos que compartilhar sua experiência com pessoas que enfrentaram o mesmo vai te ajudar muito.
Abraço.
Luto: entre o tabu da morte e a urgência da vida | Vita Alere
26/09/2017 @ 07:10
[…] pesada, mas toda crise é também uma oportunidade de aprendizado”, resume a psicóloga. https://observatorio3setor.org.br/carrossel/luto-entre-o-tabu-da-morte-e-urgencia-da-vida/ luto, morte, prevenção, […]