Fórum de Reforma Política, a democratização do poder
O primeiro semestre de 2015 foi marcado pela atuação antidemocrática da nova composição do Congresso Nacional, em especial da Câmara dos Deputados, em uma série de temas e pautas que dizem respeito à vida dos trabalhadores e trabalhadoras, e ao futuro da democracia.
Aproveitando o clima geral de indignação da sociedade com a “classe política”, destacadamente com o governo federal, e valendo-se de um poder executivo enfraquecido e com altos índices de impopularidade, as forças conservadoras da Câmara dos Deputados – alinhadas com uma oposição truculenta e uma situação inoperante – imprimiram um ritmo de debates e aprovações de leis, Medidas Provisórias e Emendas Constitucionais que afrontam os direitos conquistados e colocam em perigo o Estado Democrático de Direito.
Em meio ao ataque desproporcional aos direitos trabalhistas, questão indígena, Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), direitos LGBTTT, e outros, entra no mesmo bojo o estratégico ataque também desproporcional ao sistema político.
Após uma Comissão Especial formada por parlamentares da Câmara dos Deputados debater exaustivamente uma proposta de Reforma Política desde o início do ano, a presidência da mesma casa legislativa a transformou em alegoria, ignorou o debate com a sociedade, abandonou a ética, promoveu manobras regimentais e pautou o debate sobre o tema à luz dos interesses dos donos do poder. Mas qual a surpresa?
A democracia no Brasil está sob o comando do dinheiro. Além disso, as vultosas cifras das campanhas eleitorais, o elevado número de candidatos(as), o sistema eleitoral desigual, as coligações escusas de campanha em nome do tempo de televisão, as articulações partidárias para a governabilidade, o presidencialismo de coalizão – que nada mais é do que um sistema de troca de privilégios –, a desinformação e desinteresse da população pela política, a reiterada compra de votos em todo país, os escândalos de corrupção, a criminalização dos movimento sociais, a participação desumana de algumas igrejas e líderes religiosos na discussão política, o sistema de apropriação de territórios por candidatos(as), a infantilização da disputa eleitoral, o desserviço de alguns setores da imprensa e a substituição do debate político pela violência de classe nas eleições de 2014, configuraram um cenário político confortável aos inimigos da democracia. E, não obstante, conformaram um Congresso Nacional dos mais conservadores!
Porém, isso não é privilégio do Congresso Nacional, as casas legislativas de todo o país não refletem seu povo (se é que já refletiram um dia!), mas refletem, na verdade, a condição do seu povo: alguns poucos que dominam muitos outros. A sociedade brasileira não está refletida nas casas legislativas, mas a desigualdade da sociedade brasileira está! Temos hoje não mais casas do povo como se preconiza na Constituição Federal, mas sim casas dos donos povo. São hiper-representações de minorias e sub-representações de maiorias (como a população negra, jovem e de mulheres, por exemplo). E são estas hiper-representações parlamentares de minorias que elaboram leis, aprovam o orçamento público, definem algumas Políticas Públicas e “representam” o povo. Não precisa ser cientista político ou doutor em assuntos parlamentares para verificar que essa distorção representativa terá forte impacto nas atividades legislativas.
Além da questão da representatividade em si, cabe destacar a submissão do poder político ao poder econômico, que também traz grandes prejuízos à democracia. Como já sabemos, nas últimas eleições 70% da Câmara dos Deputados foi eleita mediante financiamento de apenas 10 empresas. Ou seja, 7 em cada 10 deputados tem como financiador pelo menos uma dessas empresas. Isso mostra a concentração de poder político que alimenta a concentração de poder econômico e vice-versa.
Assim, entendendo que os representantes do povo são na prática os representantes do poder, podemos afirmar com certa tranquilidade que a situação atual do Brasil é a de que a “classe política” representa a classe dominante nos poderes legislativos, e, ao contrário, mas também assertiva, a classe dominante representa a “classe política” na sociedade (mais informações aqui). E qual o problema? O problema é que com os poderes legislativos nessas condições os direitos sociais, os direitos humanos e a atuação do Estado para o bem comum da população e para o avanço da dignidade humana saem de pauta, e entra no lugar o clientelismo e a devolução de favores políticos para o beneficiamento econômico de poucos. É um aparelhamento do Estado pelo poder econômico. É a privatização da política. Quem tiver mais dinheiro terá mais poder! O que é o oposto do princípio democrático. Se as representações políticas são assimétricas a atividade legislativa também será, e isso fará com que alguns setores da sociedade tenham muitos privilégios enquanto outros setores se contentem com a humilhação. E uma sociedade assim não é boa pra ninguém, nem para privilegiados, e muito menos para os humilhados.
Ora, mas nessa conjuntura reformar o sistema político para garantir mais representatividade, igualdade, paridade e humanidade parece extremamente necessário, pois se continuarmos nessa escalada de centralização e articulação do poder político com o poder econômico daqui a pouco teremos uma oligarquia parlamentar ao invés de uma democracia. Mas porque não avança?
Muitas ilações e respostas poderiam ser feitas para esta questão, mas talvez seja interessante nos atentarmos a uma questão-chave: quem tem poder não quer dividi-lo.
A questão da reforma política, e a forma como ela foi conduzida na Câmara dos Deputados até o momento, reforçam a ideia de que é temerário – para dizer o mínimo – que aqueles eleitos por este sistema político promovam alterações nos preceitos que os elegeram. É como pedir para um investidor qualquer que defina a sua própria taxa de retorno. É uma operação autoprivilegiada. Como afirma o Porf. Fábio Konder Comparato, para o pleno desenvolvimento da democracia não se pode haver poder sem controle. Mas o que estamos assistindo é uma Reforma Política debatida na Câmara dos Deputados sem controle algum, ou, na verdade, controlada apenas pelo poder econômico, a não controlada por aqueles que detêm a soberania do poder: o povo.
Seguindo a lógica histórica – sem atacar ninguém individualmente – é nítido que aqueles que assumem o poder trabalham no sentido de lá se manterem. É um processo de apropriação e acumulação de poder, seja ele político ou econômico, ou ambos! E ao fazer uso do poder sem ter como objetivo o Bem Comum, materializa-se a dominação de uns pelos outros, de ‘sem-poder’ pelos poderosos.
Dessa forma, no atual cenário político e institucional brasileiro, não foi surpresa a ninguém o que se passou com a votação do primeiro turno da Reforma Política na Câmara dos Deputados. Foi aprovado um conjunto de pequenas reformas que dizem respeito basicamente à questão eleitoral e não tocam nos pontos centrais da política brasileira. Foram aprovados pela Câmara dos Deputados os seguintes itens:Sistema de votação
- A manutenção do sistema proporcional em lista aberta;
- A constitucionalização do financiamento empresarial de campanhas para partidos políticos. O que na prática mantém o problema do financiamento empresarial e não garante nenhuma lisura nem o barateamento das eleições (destaca-se aqui a manobra escandalosa para que este item fosse aprovado!);
- O tempo de mandato de 4 para 5 anos para todos os cargos eletivos;
- O fim da reeleição para o poder executivo. Já o poder legislativo pode ter parlamentares reeleitos ilimitadamente;
- A cláusula de desempenho, que na prática retira o direito de tempo de televisão e recursos do Fundo Partidário dos partidos que não elegeram nenhum representante no Congresso Nacional (ressalta-se aqui o fato de que os recursos destinados pelo Fundo Partidário aos partidos pequenos e sem representação no Congresso são pífios comparados aos valores das doações empresariais de campanha. Mas esse foi o argumento utilizado para inserir a cláusula de desempenho! Que na verdade visa atacar e prejudicar os pequenos partidos de esquerda);
- A diminuição do número de assinaturas necessárias para que projetos de lei de iniciativa popular possam ser apreciados pela Câmara (agora serão 500 mil assinaturas ao invés de 1,5 milhão de assinaturas na atual legislação);
- O voto impresso que registra o voto da urna eletrônica para um “outro” local (proposta descabida);
- A rejeição de cota para mulheres (vejam a primeira imagem desse texto e entenderão o motivo dessa rejeição!);
- A manutenção das coligações partidárias como funcionam hoje: partidos podem se coligar livremente entre si nas eleições proporcionais;
- A rejeição de unificação das datas das eleições municipais e gerais;
- A alteração da data de posse do dia 1° para dia 5 de janeiro para presidente da República, e dia 4 para governadores;
- A alteração da idade mínima para candidatos, de 21 para 18 anos para o cargo de deputado; de 30 para 29 para governadores, e; de 35 para 20 anos para senadores.
- A manutenção do voto obrigatório e não facultativo
Ou seja, poucas coisas que mudem substancialmente os problemas do sistema político vigente foram aprovadas, mas muitas coisas que garantem o sistema de dominação institucional e o acesso a privilégios – como, por exemplo, a constitucionalização do financiamento empresarial de campanha –, foram garantidas. Em suma, o que foi aprovado consiste numa “Contrarreforma Política”, pois nenhum dos graves problemas de falta de transparência, subrepresentação, participação política e dominação do poder econômico sobre o político foram enfrentados. A “Contrarreforma Política” aprovada em primeiro turno na Câmara dos Deputados não atende aos anseios do povo trabalhador.
Sem participação da parte mais interessada, os trabalhadores e trabalhadoras, não será possível promover nenhuma alteração substancial no sistema político que interdite o sistema de privilégios do Estado. Não será possível torná-lo mais democrático, justo, transparente, ético e popular. Mas é justamente aí que reside o problema: como pode o povo participar desse debate se ela é sistematicamente convidada a se “retirar do ressinto” pelas “autoridades”, e se ainda por cima criam-se mitos e delírios sobre a participação política popular, principalmente por meio da criminalização dos movimentos sociais?
A luta pela Reforma Política não é só uma luta por um sistema político que impeça o “caixa 2” ou para “aperfeiçoar” o sistema eleitoral como fazem parecer alguns tecnocratas. Claro que isso também é importante. Mas acima de tudo, a luta pela Reforma Política – assim como as demais reformas populares – é uma luta por justiça e por direitos, é uma luta pela qualidade da democracia, é uma luta pela democratização do poder! Para que este (o poder) retorne às mãos de quem lhe é soberano: o povo.
Nesta empreitada não há outra saída se não a mobilização popular, a educação política e o protagonismo dos movimentos sociais na luta pelas reformas populares.
Assim, talvez, um importante passo que se soma aos que já vêm sendo dado – no sentido da democratização do poder – seja a construção de espaços amplos e democráticos de debate acerca da Reforma Política. Estes espaços são interessantes para a mobilização e animação da população e para criar novas ações possíveis de luta, Mas, além disso, são espaços também de fortalecimento daquelas ações que já estão sendo desenvolvidas pelos movimentos sociais. Ademais, espaços qualificados de debate também ajudam a aprofundar a reflexão sobre os desafios de uma Reforma Política democrática e popular, e a elaborar propostas conjuntas de ações estratégicas, assim como estimular a união de esforços para superar as dominações. Em suma, parece ser importante, nesta conjuntura, a construção de espaços nesse sentido, pois isso colabora na mobilização popular, na educação política e no protagonismo dos movimentos sociais
Não por acaso, foi criado por diversas organizações e movimentos sociais um Fórum Social Temático da Reforma Política com estas finalidades. O Fórum não se pretende ser um novo movimento, muito menos uma instância representativa ou deliberativa da sociedade civil. O Fórum pretende ser um espaço de encontro, um processo de encontros, para que possamos fortalecer as ações desenvolvidas e ampliar as condições necessárias para a construção de uma nova sociedade, uma sociedade livre da dominação do poder econômico.
O Fórum Social Temático da Reforma Política não é o começo da luta pela Reforma Política nem o fim dela. Ele é apenas um instrumento a favor da peleja. Ele é mais um passo em direção à democratização do poder!
Mais informações acesse: http://forumsocialreformapolitica.org.br/