Moralidade e Ética. O que mudou?
“Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Esta é a exegese do artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil em vigor. Entretanto, sua eficácia não é plena, na medida em presenciamos uma inversão de valores sem precedentes, o uso indiscriminado de recursos e as mais estapafúrdias interpretações dos artigos de lei para justificar o injustificável, a precariedade dos serviços de saúde, segurança, educação, a desregulamentação de direitos trabalhistas, a desconstrução de valores éticos e morais. Recordo-me, que em dois mil e um, quando muito se falou a respeito da fraude no painel eletrônico de votação do Senado, escrevi, sob o título “O que mudou?”, enfatizando, que referida fraude não poderia ser considerada uma mera irregularidade sem maiores consequências. E, da mesma forma, que impor ao povo uma vida de fome e miséria decorrente dos baixos salários arrochados é excluir da sociedade, aos poucos, os idosos e aposentados e condenar à morte os doentes, por falta de serviço de saúde com qualidade e isso merece veemente repúdio.
De lá para cá, o que mudou? Praticamente nada, embora quinze longos anos tenham se passado. Ao contrário, afloraram denúncias e mais denúncias de corrupção, falta de ética e decoro, pauta do noticiário cotidiano. Naquela matéria de minha lavra, publicada no Jornal do Judiciário nº 52, a partir de uma análise como dirigente sindical, que não se divorcia dos dias atuais da análise dos fatos cotidianos que se assemelham àquele da fraude do painel de votação do Senado, questões afrontam o respeito à dignidade humana a que todos temos direito e que cada vez mais vem sendo desconsiderada, provocando o caos e o descrédito.
Somente o resgate destes valores éticos e morais dilapidados e sistematicamente colocados em risco como se vê das sucessivas denúncias veiculadas nos meios de comunicação poderá resgatar a necessária paz de espírito e a segurança de que todos necessitamos e a credibilidade nos poderes constituídos em nível de justiça, segurança, saúde, educação, sociabilidade. Desde tenra idade aprendemos a externar respeito e reverência aos governantes e ao Poder Judiciário e seus membros, por entendermos serem eles guardiães das Leis, dos bons costumes e do respeito à dignidade humana. Entretanto, nos últimos tempos o que estamos assistindo é um desmantelamento lento, porém gradativo, dos padrões normais e morais de conduta e de inversão de valores, no qual as falcatruas e as arbitrariedades vêm tomando o lugar da normalidade. A precarização do sistema de saúde, o desmantelamento dos diretos trabalhistas, a precarização do Poder Judiciário dos investimentos na Segurança Pública, na Saúde e na Educação, primordialmente, com o corte de recursos, inviabiliza a qualidade e a eficácia dos procedimentos necessários para o bem estar comum. E se não bastasse, o controle da vida financeira do cidadão, imposto pela Instrução Normativa RFB 1571 de 2/7/2015 (já contestada pela Ordem dos Advogados do Brasil, guardiã da Constituição e do Ordenamento Jurídico, dos direitos e garantias individuais), que nesse caso concreto envolve o sigilo bancário a que todos temos direito, salvo se ordem judicial determinar o contrário.
E não é só. Há mais de trezentos anos, os negros lutam pelo direito de viver com dignidade, por trabalho, por respeito e cidadania; as mulheres, por respeito, igualdade salarial, pelo fim da violência física e moral contra si perpetrada; os trabalhadores e trabalhadoras, organizados em categorias reivindicam respeito à carga horária, salários mais justos, salubridade no local de trabalho ante as graves denúncias de discriminações e assédios; os sem-teto buscam moradia e alimento e assim, milhões de outros indivíduos que compõem a sociedade lutam, cada um a seu modo para encontrar o seu lugar.
É vergonhoso, diante desse quadro, assistirmos à barganha a que se submetem os parlamentares representantes do povo, para desnaturar as denúncias contra si apresentadas e para dar interpretação divergente justificando o injustificável para as irregularidades praticadas e que se tornaram públicas. Num país soberano e democrático, os cidadãos têm o direito de livremente expressar o seu pensamento para repudiar comportamentos contrários à ética e à moral, além de pedir esclarecimento e apuração de irregularidades, sejam em que nível forem.
Entretanto, muitas vezes somos condenados ao silêncio e sufocados por leis que retiram direitos e impõem taxas e impostos, congelam salários e, dissimuladamente, impedem a manifestação da vontade, ignorando o direito adquirido e discriminando o aposentado, o doente, o pobre.
O que era justo passou a ser injusto. O que era imoral passou a ser moral. O direito adquirido vem sofrendo séria ameaça não obstante seja mandamento constitucional, sem que se atente para o estado de desespero a que estão submetidos cidadãos honestos e cumpridores de seus deveres. Indenizações devidas, quer se refiram a passivos trabalhistas, que são créditos alimentícios e portanto têm prevalência sobre quaisquer outros que sejam reparatórias de direito têm o pagamento postergado indefinidamente enquanto seus titulares amargam angústia e tristeza à espera do pagamento.
Que justiça é essa? O que mudou? O avanço tecnológico e o maior esclarecimento do cidadão parecem ter pouco significado nesta era em que está instaurado o caos.
A impunidade vem acobertada pelo corporativismo de classe com o objetivo de transmudar o sentido da lei dando-lhe interpretação divergente ou, quiçá, editando outra que melhor atenda ao caso concreto. Não se pode conceber que num país onde a fome, o desemprego, a ausência de moradia e as doenças aumentam em sentido vertiginoso, uma parcela pequena de privilegiados se sobreponha aos ditames da lei e ainda, em diversas oportunidades, se beneficie autoconcedendo benefícios para melhoria de salário e do padrão de vida, acobertando vergonhosamente falcatruas repudiadas por tantos quantos cumprem com dignidade e respeito suas obrigações.
O País precisa de mudança e de moralidade. E, como muito bem frisou o dr. Dalmo de Abreu Dallari, em Conferência proferida no 4º Congresso Nacional do Judiciário Federal, realizado em São Paulo, “são as minorias organizadas que promovem as grandes mudanças…”.
Mudanças urgentes se fazem necessárias para o resgate da ética e da moralidade, sobretudo na política, e como cidadãos temos esse compromisso ao escolhermos nossos representantes. Somos pelo respeito à democracia, à legalidade, à moralidade, ao justo, sem o que se torna letra morta todo o ordenamento jurídico vigente.