Delação: há limites?
As disparidades de sancionamento entre crimes comuns e os da elite político-econômica têm sido algo retratado há algum tempo pelos doutrinadores. O domínio exercido pela classe dominante tem imposto à classe dominada delitos e penas indiscutíveis e submissão a julgamento pelos tribunais dos comuns. Já a ela (a classe dominante) tem se reservado uma verdadeira gestão diferenciada que lhe confere transações, sanções atenuadas, quando não imunidades, perdões, anistias, indultos e foros especiais.
Tal situação vem gerando uma crescente perplexidade social com cobrança das autoridades pela materialização do princípio da igualdade. Vivenciamos uma nova forma de expressão do poder do cidadão fora dos canais formais de ação política: uma democracia informal que pode ser resumida num estado de vigilância, de denúncias e de qualificação (ou de desqualificação) das ações públicas.
A atual desconfiança nas autoridades surge da falta de uma explicação razoável de muitas posturas porquanto muitas decisões que nascem da autoridade formal não são explicadas ao cidadão ou, se são, não convencem por desguarnecer, por exemplo, o bem-jurídico de sua real proteção. A justiça criminal deixa de cumprir com sua primordial função: o caráter preventivo das penas, prevenção especial em relação ao investigado/réu e prevenção geral no que tange aos cidadãos. Assim, tais decisões acabam sendo interpretadas como detentoras de um cinismo, egocentrismo, autoglorificação e, principalmente, autoproteção.
A constatação da ausência daquilo que esperam as pessoas como respostas adequadas, no tempo e no espaço, tem gerado repulsa. Em consequência, generalizam-se diversas formas de manifestações que questionam o poder formal. Na verdade, o que desejam os cidadãos é que as autoridades atendam às suas expectativas legítimas, reforçando valores democráticos.
Há, pois, necessidade de se dar eficácia ao falido processo constitucional-penal brasileiro que, a pretexto de defender valores democráticos, tem historicamente consagrado a fraude processual.
O aumento da consciência sobre o mal do tratamento dual pela Justiça impõe uma abrupta mudança na forma de agir das autoridades. Descabem penas brandas, pois existe necessidade evidente de sanção compatível nos delitos contra a Administração Pública, dada sua flagrante desproporção diante da gravidade delitiva per se. O bem jurídico impõe proteção real, e não apenas teórica. Se os crimes mais graves são causados pelo excesso, e não pela necessidade, muitos teimam em não abrir mão de suas tentações internas ou potenciais ações, acabando por sempre conseguir satisfazer a paixão que os devora: poder e bens.
Tudo é gestado em processos de comunicação sensoriais (por vezes, apenas percebidos) e censoriais (a ética do criminoso determina a lei do silêncio) no interior de grupos por aqueles que normalmente possuem capacidades acima da média em termos de aptidão delitiva, sendo contagiados por representações próprias de seu mundo de “negócios”.
Não lhes cabe, repita-se, tratamento com especial brandura. O desigual sancionamento somente é possível para se agravar a pena diante do refinamento de métodos que decorre do aproveitamento de uma posição facilitadora na obtenção de vantagens desejadas, mas nunca para distorção de beneplácitos legais. Ora, se há casos de menor necessidade punitiva diante da intuitiva desnecessidade de intervenção ressocializadora, outros há de natureza radicalmente inversa. Não se deseja condenações ou prisões sistemáticas, mas a aplicação destas quando for indispensável à luz de considerações preventivas.
O princípio da legalidade determina a integral vinculação da atividade das polícias, do ministério público e dos juízes à lei, devendo haver controle de suas intervenções na seleção, tratamento e julgamento da criminalidade para que a ponderação prevaleça. Também para que a consciência de que a injustiça é mais aguda às classes desfavorecidas não se perpetue mais. A igualdade representa uma proibição de atuação arbitrária: a concessão de direitos a certas pessoas – as que não se encontram em situações de carência, de inferioridade ou de menor proteção –; visa alcançar a igualdade e tais direitos são instrumentos desta.
Ora, nas delações premiadas, cumprindo o que rege a legislação (artigo 4º da Lei 12.850/2013), a sanção somente pode ser imposta pelo Poder Judiciário e as homologações deste servem inclusive para verificação de sua adequação ao caso concreto considerando a gravidade e a necessidade da prevenção geral (de todos) e especial (do infrator): fins da pena criminal. Assim, muitas delações por mim homologadas levaram em conta que ao Judiciário cabe a inalienável função: a fixação de pena. Isso não torna o juiz parte porque não participa das negociações quanto à prova, mas adequaria o crime e a sua gravidade com aquilo a que pretende as partes em termos de resposta ao crime cometido. Tal análise pode ser realizada no momento da homologação (uma análise preliminar da questão fato e pena justa) ou, na sentença, para que o juiz, ao final do processo, forneça a melhor e definitiva resposta jurídica ao fato delituoso. Dessa forma também ocorre nos Estados Unidos, país que tem sido referência no assunto.
Seria mesmo correta a supressão da análise judicial sobre a fixação da pena por acordo de delação premiada vinculado que estaria ao acordo negociado pelo ministério público com o réu? A lei teria excluído do Judiciário tal apreciação? Afinal, a quem cabe a fixação da pena e a palavra final? Existe exercício de poder sem controle e fiscalização numa Democracia?
Como os delatores têm revelado naturalmente suas práticas, a culpa (arrependimento) e a vergonha (juízo negativo alheio), de outro lado, não se têm mostrado, infelizmente, bússolas de comportamentos morais sociais, muito menos farão sentido delações legitimadas por autoridades sem controle funcional.