O que a sigla LGBTQIA+ significa para você?
Trilha sonora para ler este texto: A little respect, Erasure
Via de regra, começo meus textos me apoiando em algum artigo da Declaração Universal de Direitos Humanos, no entanto, para o tema que escolhi escrever neste mês, sequer temos uma previsão expressa sobre os direitos LGBTQIA+ neste documento. O artigo 16[1] é o que está um pouco mais próximo do assunto, porém não trata dos direitos sexuais e apenas menciona sobre o direito ao matrimônio tangenciando, assim, a igualdade de gênero. Sem querer, a Declaração parece excluir todas as outras formas de constituição de família e casamento diferentes da união entre um homem e uma mulher. Ainda, ao utilizar os termos “homem” e “mulher”, a Declaração acaba reforçando a heteronormatividade dos textos jurídicos, isto é, transparece a ideia de que todos os seres humanos se encaixam em apenas duas categorias distintas e complementares, e que relacionamentos se restringem no envolvimento de duas pessoas de sexos diferentes.
Aqui, vale ponderar a interpretação dos direitos humanos e compreender o momento histórico em que a Declaração foi escrita. Antes de acusar os membros da Assembleia das Nações Unidas de homofóbicos ou trans fóbicos, é importante relembrar os ensinamentos de Hannah Arendt de que “direitos humanos não são um dado, mas um construído”[2]. No mesmo sentido, Joaquin Herrera Flores afirmou que a interpretação dos direitos humanos deve sempre considerar o texto e o contexto. Por isso, a Declaração não pode ser interpretada de forma restrita afirmando-se equivocadamente que a constituição de família abrange apenas o modelo tradicional de um homem com uma mulher com o intuito de procriação, mas abarca todas as formas pelas quais as pessoas se relacionam e convivem, sejam em duplas, trios, quartetos, com filhos, sem filhos, com pessoas do mesmo ou de diferentes sexos.
Na época em que a Declaração foi elaborada o debate já existia, mas ainda não tinha tanta visibilidade e as garantias lá previstas foram estruturadas na dualidade “homem” e “mulher”. No campo internacional, foi no ano de 2006 em que se consolidou em um documento os chamados Princípios de Yogyakarta sobre a Aplicação da Legislação Internacional de Direitos Humanos em Relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero. No entanto, o tema ainda é controverso no âmbito das Nações Unidas tendo em vista que 70 países do mundo criminalizam relações entre pessoas do mesmo sexo, conforme apontou o relatório elaborado pela Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais (ILGA). No Brasil, mesmo não sendo crime, o país possui índices altos de assassinatos motivados por homofobia ou transfobia, conforme relatório publicado pela ONG Transgender Europe (TGEu).
No âmbito nacional, o tema foi ganhando repercussão com a luta constante dos movimentos sociais e sociedade civil organizada e, em 2004, o lançamento do Programa “Brasil sem Homofobia”, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, representou um marco na política brasileira voltada à população LGBTQIA+. Em 2009, foi editado o Decreto nº 7.037/2009 [3], responsável pela apresentação do Plano Nacional de Direitos Humanos no qual um dos eixos norteadores era a garantia do respeito à livre orientação sexual e identidade de gênero. No mesmo ano foi criada a Coordenação Geral de Promoção dos Direitos LGBT no âmbito da Secretaria Especial de Direitos Humanos (Decreto nº 6.980/2009). No ano seguinte, com vistas a garantir maior participação da sociedade civil na elaboração das políticas voltadas à população LGBTQIA+, o Decreto nº 7.388/2010 criou o Conselho Nacional Contra à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Em 2011, foi incluído o módulo de atendimento específico para combate à homofobia no recebimento de denúncias do Disque 100[4]. Várias portarias e alguns decretos foram elaborados e aprovados nos anos seguintes, sendo que o último de grande relevância foi em 2016 reconhecendo o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis ou transexuais (Decreto nº 8.727/2016). Este decreto foi publicado dias antes do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. Com vistas a oferecer mais informações sobre o tema e divulgar canais de denúncias para combate à discriminação, o Ministério Público Federal elaborou a cartilha “O Ministério Público e a Igualdade de Direito para LGBTI” em 2017.
Mas por que é importante ter esses direitos reconhecidos em leis, decretos e tratados? Em uma sociedade organizada – Estado moderno – os direitos e deveres das pessoas estão previstos em leis. No entanto, a maior parte dessas leis acabam simplificando as relações sociais e preveem regras como se a maioria das pessoas agisse da mesma maneira. O utilitarismo[5] é a linha teórica sob a máxima “o maior bem para o maior número de pessoas” e que inspira a elaboração de parte considerável das regras sociais. Mas “o maior número de pessoas” acaba por não considerar a diversidade das subjetividades que constituem os seres humanos que integram a sociedade. E essa é uma das críticas feitas ao Estado regulador e seus textos jurídicos. Ao tentar regular a vida social, não é possível prever todas as possibilidades de se viver, e muita gente acaba sendo excluída dessas previsões legais, por isso é que alguns juristas defendem que as relações familiares e a vida civil não deveriam ser reguladas pelo Estado. Controvérsias à parte, fato é que a maioria dos países regulamentam a vida privada. Existem regras para o casamento, para o divórcio, para a adoção, para o testamento, para sucessão, para a previdência e essas são as regras que acabam desconsiderando, em sua maioria, as pessoas LGBTQIA+. Ao reconhecer que casamento é o ato da vida civil entre um homem e uma mulher, a lei acaba excluindo outras formas de relacionamento. E ao excluir essas pessoas, muitos direitos deixam de ser respeitados, como exemplos: incluir o(a) companheiro(a) no plano de saúde, ter aprovado um financiamento em razão da soma dos rendimentos do casal, dentre tantas outras questões que afetam diretamente a vida das pessoas.
É por esse motivo que ativistas e militantes continuam na luta pela igualdade de direitos. Não se luta por mais direitos, mas apenas pelo reconhecimento de direitos iguais aos concedidos às pessoas heterossexuais. Por isso que não faz muito sentido os movimentos que pregam o “orgulho hétero”, uma vez que os direitos às pessoas heterossexuais[6] já estão asseguradas nas leis. Além disso, grande parte das pessoas que ocupam cargos que elaboram as regras na sociedade – legislativo e executivo – são heterossexuais e continuam garantindo a permanência das coisas como estão (ou manutenção do status quo). O filme norte-americano de 2009 Milk, dirigido por Gus Van Sant e estrelado por Sean Penn, é baseado na história de Harvey Milk e representa essa luta pela visibilidade pelos direitos da comunidade LGBTQIA+ na política. Milk foi o primeiro homossexual assumido a ser eleito para um cargo público na Califórnia, como membro da Câmara de Supervisores de São Francisco e se envolveu na política para combater a violência e o preconceito perpetrado pela polícia contra a comunidade LGBTQIA+ em São Francisco. Outro filme que narra o histórico de luta pela igualdade e que é baseado em fatos verídicos é o britânico Pride, de 2015 e dirigido por Matthew Warchus. Além de contar a história de um grupo de ativistas pelos direitos LGBTQIA+ da cidade de Londres, o filme também faz uma crítica sobre a importância da soma de lutas dos movimentos sociais. Pride retrata a Inglaterra de 1984 comandada por Margareth Tatcher com sua política opressora à categoria dos trabalhadores. A época é marcada pela mais longa greve da história britânica liderada pelos mineiros por condições melhores de trabalho. Sensibilizados com a causa mineira, o grupo de ativistas LGBTQIA+ londrino passa a arrecadar fundos para a causa dos trabalhadores e tal aproximação não é das mais fáceis. Os preconceitos são visíveis das duas partes e o filme provoca a reflexão da importância da união pela luta em prol de uma única causa: a igualdade de direitos. Ademais, chama a atenção para a importância da interseccionalidade. Tanto Milk como Pride são filmes que ilustram a realidade de uma sociedade em que as leis não reconhecem direitos fundamentais para a garantia da dignidade mínima das pessoas LGBTQIA+.
Mesmo havendo alguns avanços no âmbito legal e institucional, a sociedade ainda está distante de uma compreensão mais ampla sobre o tema e eu mesma confesso que já me senti confusa com alguns dos termos utilizados pela literatura especializada. De forma bem didática, Rita Von Hunty, professora e drag queen brasileira que dá aulas sobre filosofia, sociologia, literatura e política no Youtube, explica neste vídeo o significado da sigla LGBTQIA+. De forma resumida, a sexualidade humana é composta de fatores biológicos, psicológicos e sociais. Por isso, são três elementos que podem compor a sexualidade de alguém, sendo eles o sexo biológico, a orientação sexual e a identidade de gênero. Enquanto sexo é tido como biológico, o gênero é uma construção social. Por isso que existem tantas variáveis para descrever a sexualidade de uma pessoa e a sigla que representa o movimento passou por tantas mudanças: GLS, LGBT, LGBTTT, LGBTQ, LGBTQIA+ e tantas outras variáveis.
O mês de junho é tradicionalmente lembrado como o mês do orgulho LGBTQIA+. E você sabe o motivo? Este mês foi escolhido para representar a causa em razão de uma série de manifestações que ocorreram em junho de 1969 no Bar Stonewaal Inn, em Nova York. As manifestações ocorreram durante seis dias e foi uma resposta às constantes invasões agressivas perpetradas pela polícia de Nova York no local que era frequentado por membros da comunidade LGBTQIA+. Parte das manifestações teve a liderança de Marsha P. Johnson, uma transexual e ativista. Anos depois, Marsha foi assassinada e o caso não foi resolvido até hoje. A polícia encerrou o inquérito determinando que a causa de sua morte foi suicídio. O documentário “Vida e Morte de Marsha P. Johnson”, de 2017, traz um relato sobre a vida e morte dela, assim como também sua atuação na Revolta de Stonewall. Também o documentário “Paris is Burning”, de 1991, proporciona a compreensão da riqueza da diversidade da comunidade LGBTQIA+, trazendo ao debate questões raciais e sócio econômicas para além do gênero.
“Paris is Burning” é revolucionária pois apresenta a comunidade LGBTQIA+ com as suas cores, formas e expressões e traz visibilidade para o estilo de dança moderna chamada “vogue” ou “voguing”, que se caracteriza por poses inspiradas nos modelos das revistas de moda e consiste em uma costumeira competição nos bailes que reúnem artistas e dançarinos da comunidade LGBTQIA+. E se você está lembrando que já viu isso em algum lugar, saiba que sua memória não está traindo você: o clipe Vogue de Madonna é uma referência a esta dança e aos bailes que ocorriam no Harlem. Pose, série criada por Ryan Murphy, Brad Falchuck e Steven Canals, de 2018, traz em detalhes a riqueza cultural destes bailes. Além disso, o famoso reality show RuPaul´s Drag Race, que tem 12 temporadas e que estreou em 2009 nos Estados Unidos, também aborda a cultura drag queen como expressão artística, fazendo constantes menções a personagens lendários do ativismo LGBTQIA+. O universo drag foi representado no filme australiano “Priscilla, a Rainha do Deserto”, de 1994, dirigido por Stephan Elliott, e conta com os atores Hugo Weaving, Guy Pearce e Terence Stamp. Este é um dos meus filmes favoritos e, em que pese ser classificado como comédia, vejo como um filme sensível que aborda questões complexas do preconceito enfrentado por estes artistas, mas com uma narrativa leve. Também “A Gaiola das Loucas”, de 1996, filme dirigido por Mike Nichols, conta a história de um casal homossexual que é proprietário de uma casa de shows de drags e se encontra em uma situação delicada quando o filho decide casar com a filha de um senador conservador. Este filme conta com atuação de Robin Williams, Gene Hackman e Nathan Lane e se encontra na minha lista de filmes favoritos, pois de uma forma bem humorada, aborda questões de preconceito e hipocrisia de uma sociedade que se porta como conservadora. Em especial, este filme faz uma profunda crítica à política conservadora norte-americana (que também é presente em vários outros países).
Nesse aspecto, vale uma reflexão. Por que parte destes filmes que tratam de assuntos tão sérios são escritos e dirigidos como comédias? O próprio reality de RuPaul é recheado de piadas sobre o universo drag e desenvolve competições quem envolvem esquetes cujo principal objetivo é promover risadas nos telespectadores. Minha hipótese é que o espaço do cinema, do teatro e da televisão é tão preconceituoso quanto a sociedade e diante de censuras, a comunidade LGBTQIA+ encontrou na comédia uma estratégia para garantir espaço e dar visibilidade a realidades que não são expostas com tanta frequência no cinema e na televisão. E se você acha que os espaços culturais estão livres de manifestações de preconceito, apenas reflita porque Freddie Mercury, Elton John, Ricky Martin e Ellen DeGeneres levaram anos para se assumirem publicamente. Não é à toa que os primeiros personagens homossexuais no cinema e na televisão costumavam ser retratados com estereótipos e usados para provocar o humor nas pessoas. Greta é um exemplo deste debate. O filme de 2019, dirigido por Armando Praça, conta com a sensibilidade de Marco Nanini interpretando o protagonista: um enfermeiro homossexual de 70 anos. O filme é dramático e Nanini foge de todos os estereótipos ao interpretar seu personagem que tem fetiche de ser chamado de Greta Garbo, artista hollywoodiana famosa pela beleza. O filme é um drama, mas foi baseado em uma peça teatral de 1993 que apresentava o protagonista de forma caricata, esbarrando em uma interpretação um tanto jocosa sobre o personagem. Na entrevista que assisti de Nanini, ele menciona sobre a construção de um personagem que pudesse proporcionar reflexão sobre o envelhecimento e a homossexualidade de forma respeitosa. Tanto Nanini como o diretor reconhecem que a peça foi construída em um contexto quando homossexuais, para conquistarem um papel, precisavam submeter seus personagens como alvos de chacota.
No entanto, o que é compreensível por ser uma estratégia de algumas décadas atrás, hoje em dia qualquer personagem apresentado de forma caricata é visto como desrespeito. E ainda bem que estamos refletindo sobre isso e evoluindo no debate.
Ser homossexual, transexual, queer, intersexual não é divertido. O processo de se auto conhecer e se perceber fora dos padrões tradicionais impostos pela sociedade é dolorido e ao mesmo tempo assustador. São anos que muitas pessoas se escondem, se envergonham, se sentem confusas e não parte da sociedade. O bom humor e a comédia são bem-vindos para tornar o assunto leve, mas não podemos perder de vista que milhares de pessoas são assassinadas ou espancadas nas ruas por estamparem modos de vida para além dos padrões esperados. O filme argentino XXY, de 2009 e dirigido por Lucia Puenzo, conta a história de Alex (Inés Efron) que nasce com as duas características sexuais. Seus pais acreditam que uma cirurgia após o nascimento é uma violência contra o corpo da criança e fazem a opção por deixá-la crescer para depois poder fazer uma escolha sobre o próprio corpo. No entanto, para evitar pressões sociais, a família passa a viver em um pequeno vilarejo isolado no Uruguai. O filme aborda uma questão que parece rara, mas é mais comum do que imaginamos. São os intersexuais, ou seja, são pessoas que nascem com uma variação nas características sexuais que identificam cada sexo. As diferenças podem ser encontradas nos genitais, cromossomos ou hormônios e não coincidem com o padrão binário dos corpos. Já o filme norte-americano Transamérica, de 2006 e dirigido por Duncan Tucker, retrata a trajetória de Bree Osbourne (Felicity Huffman), uma transexual que economiza tudo o que tem para fazer a cirurgia de redesignação sexual. A atuação de Felicity foi muito realista, apresentando as angústias e o drama de viver em um corpo que não reconhece como seu. Assim como Tomboy, filme francês de 2012 e dirigido por Céline Sciamma, que conta a história de Laure (Zoé Héran) uma garota de 10 anos que usa cabelo curto, roupas masculinas e que constantemente é confundida como um garoto. Quando se muda com a família para uma nova cidade, Laure se passa por menino diante de seus amigos e isso gera uma série de discussões na família e na vizinhança.
Filmes como XXY, Transamérica e Tomboy são alguns exemplos que deveriam ser assistidos pelas pessoas para melhor compreensão do tema. O assunto refere-se à vida íntima das pessoas e algumas situações constrangedoras poderiam ser evitadas se a sociedade não se importasse com os corpos e intimidades alheios. O assunto é confuso, eu sei, porque eu mesma já me percebi confusa na maior parte da minha vida. No entanto, mais importante do que entender todas essas nomenclaturas é ter a empatia por essas pessoas. Reflita sobre seus comentários diários, seja no trabalho, seja numa roda de amigos, seja num almoço de família. Não mencione que essas pessoas são anormais; não corrobore das ideias de que foi “falta de apanhar”; não diga que isso é coisa de “menino” ou “menina”; não pergunte quando a pessoa vai arranjar um namorado, namorada ou vai se casar, nem todo mundo sonha com isso; não peça provas de macheza; não pergunte para uma transsexual se ela tem pênis ou vagina; não pergunte para uma casal homossexual quem é o ativo e quem é passivo; não pergunte para uma pessoa quando ela vai se assumir; não diga que a pessoa vai queimar no inferno por ser assim; não relacione determinadas profissões à orientação sexual e ao gênero. E se não souber o que dizer, apenas escute.
E para arrematar sobre o processo de autoconhecimento, acredito que não exista melhor filme sobre isso do que Crazy, filme canadense de 2006 dirigido por Jean-Marc Vallée. Escolhi este filme porque tive uma identificação muito profunda com o protagonista. Zachary Beauliei é o quarto filho de uma família com cinco irmãos e sua infância e adolescência se deram em um ambiente de família extremamente religiosa. Todas as memórias do garoto se referem ao desejo de ser aceito pelo seu pai, ao mesmo tempo em que ele trava uma luta interna diária de negar os sentimentos que tem. Ele se descobre homossexual e ao assumir sua sexualidade, passa a
enfrentar uma série de conflitos na vida privada. Crazy foge de todos os clichês de dramas familiares e frases de efeito, é muito sutil sobre o sentimento íntimo de alguém que se percebe fora dos padrões e esse é o principal motivo pelo qual gosto tanto deste filme.
O sentimento de Zachary é um sentimento que tive a maior parte da minha vida. Eu sempre me senti diferente das outras pessoas, desde criança me percebia deslocada da maior parte dos grupos sociais, mas achava que isso decorria do fato de ser canhota. Foi escutando as músicas de Bowie que passei a encontrar mais conforto e acho que foi por este motivo que me tornei tão fã dele, assim como o personagem de Zachary. Muitas das músicas de David fala sobre o sentimento de não pertencimento, ele mesmo criou sua persona famosa – Ziggy Stardust – como um alienígena andrógino de um lugar muito distante, e em suas entrevistas sempre relatou a dificuldade de se encaixar em um único estilo musical, ou em qualquer padrão único, também sempre questionou o modelo binário imposto pela sociedade. Tempos mais tarde, foi no doutorado, fazendo uma matéria chamada “Conflitos contemporâneos em perspectiva” que tive a oportunidade de ler sobre a teoria queer de uma autora chamada Judith Butler. Butler é uma grande referência para mim e confesso que tive que reler várias vezes os seus textos até o momento em que me enxerguei neles. A partir daí, tudo passou a fazer mais sentido para mim.
Foi em 2016 que me descobri queer. Entendi por que já me apaixonei e amei mulheres, homens e pessoas em geral, mas sem nunca me sentir confortável para estampar o “L” de lésbica, o “B” de bissexual ou o “H” de heterossexual. Queer vai além da orientação sexual, trata de comportamento e é libertador saber que você não precisa se definir em uma única categoria quando quiser falar de seus sentimentos. Vejo que reside exatamente neste ponto o aspecto mais revolucionário da teoria de Butler: ninguém precisa se encaixar em uma única letra. Eu nasci mulher, gosto de ser mulher, tenho orgulho do meu corpo e me sinto confortável com ele, mas gosto de usar roupas masculinas quando tenho vontade, e me senti mais real depois que deixei alguns padrões femininos como maquiagem e outras questões estéticas. Recentemente, raspei meu cabelo e foi como se tivesse, finalmente, encontrado a real Luciana que há tantos anos eu estava a procurar. Na maior parte dos meus relacionamentos, senti atração por homens, mas já perdi as vezes dos momentos em que me senti atraída por mulheres. No entanto, não é que eu tenha vergonha destes sentimentos, apenas não acho necessário ter que me justificar perante a sociedade e assumir uma categoria em razão do que estou sentindo. Usando uma comparação para tentar me expressar melhor, é quase o mesmo sentimento que tenho por filmes. Adoro o cinema latino-americano, mas há momentos em que me delicio vendo toda a saga dos Vingadores. Na noite em que eu decido ver um filme da Marvel, eu não preciso me justificar perante meus amigos e meus familiares que eu deixei de ver um filme do Ricardo Darín para ver o filme do Homem de Ferro. A escolha é minha, a partir do meu momento, a partir do que estou sentindo. Até por isso mesmo que depois desta minha descoberta, eu não achei necessário ter nenhuma conversa com amigos ou familiares para compartilhar a “novidade”. Eu continuo sendo a mesma pessoa de sempre, com a diferença que passei a ter um pouco mais de consciência sobre quem eu sou. Na realidade, ano passado, decidi ter uma conversa sincera com meus pais e expliquei a eles como eu me sentia e fiz isso pelo respeito que tenho por eles. Acho que foi a melhor, a mais sincera e a mais emotiva conversa que tive na vida com meus pais. Fiquei refletindo bastante se deveria expor esta questão tão íntima em um texto que vai ser publicado na internet, mas depois percebi que mostrar a minha humanidade e compartilhar minha experiência poderia, de certo modo, inspirar outras pessoas a se sentirem confortáveis com seus dilemas internos.
Por fim, não poderia encerrar sem esclarecer que eu não acho desimportante as demais letras. Como tentei retratar neste texto, quando vivemos em uma sociedade em que se nega direitos a pessoas como eu, que fogem dos padrões tido como normais, precisamos nos mobilizar politicamente para fazer com que nossos direitos não sejam pisoteados pelos outros. LGBTQIA+ vai além de uma comunidade, é uma categoria política que integra todas as pessoas que lutam para podermos sermos os seres humanos que quisermos.
Notas
[1] Art. 16: Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução. constituídas na Declaração.
[2] Norberto Bobbio, na obra “A era dos direitos”, menciona as gerações (ou dimensões) dos direitos humanos, partindo dos civis e políticos, para os econômicos e sociais, pelos difusos e coletivos e assim por diante.
[3] Revogado pelo Decreto nº 9.883/2019, responsável pela extinção de vários conselhos participativo no âmbito da administração pública federal.
[4] O Disque 100 é o telefone que recebe denúncias do Brasil todo a respeito de violações aos direitos humanos.
[5] Jeremy Bentham e John Stuart Mill são nomes que defenderam a linha filosófica do utilitarismo, que serve como influência sobre o pensamento de legisladores, executivos, economistas e até mesmo raciocínio compartilhado por cidadãos.
[6] Neste ponto, vale menção que nem todos os heterossexuais têm todos os seus direitos iguais. Mulheres, crianças, pessoas com deficiências, pessoas negras, dentre outras categorias denominadas como “minorias” são pessoas que precisam de um arcabouço jurídico que fomentem ações afirmativas para terem seus direitos mínimos resguardados.
*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do Observatório do Terceiro Setor.