Afinal, os Direitos Humanos são uma “ideologia de esquerda”?
Não é raro nos depararmos com afirmações no sentido de que os direitos humanos seriam “coisa de esquerda”: pouco importa se o assunto é relacionado à dignidade de pessoas presas, à igualdade de direitos entre mulheres e homens, ao reconhecimento de demandas da população LGBT, legalização do aborto ou combate à discriminação racial, tudo isso é colocado sob o mesmo etiquetamento de “ideologia de esquerda”.
Na coluna deste mês, quero falar sobre essa confusão tão comum que se faz com os conceitos dos alinhamentos políticos ditos de “esquerda” ou “direita” e os direitos humanos. E o primeiro passo não poderia deixar de ser uma breve análise sobre o significado desses conceitos.
Diversos autores [1] da Ciência Política vêm questionando nas últimas décadas se faz sentido neste início de século XXI insistir na distinção conceitual entre esquerda e direita, cuja elaboração ganhou força no contexto da Guerra Fria e a polarização geopolítica dividindo boa parte do mundo entre dois blocos, o capitalista liberal (alinhado aos EUA) e o comunista (alinhado à URSS). Essa concepção vem se esgarçando ao menos desde 1989, com o esfacelamento dos regimes comunistas na Europa (simbolizado pela queda do Muro de Berlim) e, desde então, as identificações com um e outro posicionamento vêm ganhando diferentes conotações no passar desses anos.
Mas, para o que pretendo discutir neste artigo, vale formular um conceito um tanto generalizante, é verdade (e, portanto, com todas as limitações características das generalizações), mas que, ainda assim (espero), pode ajudar a desfazer a névoa sobre o assunto.
O posicionamento político “de direita” pode ser descrito como aquele que parte, acima de tudo, da previsão de igualdade de todos perante a lei como atribuição máxima do Estado, que não deve intervir nas demais esferas da vida social para que as liberdades individuais (considerando que os indivíduos são formalmente iguais) possam ser exercidas plenamente. Se na prática houver desigualdades concretas entre as pessoas, estas são livres para tentar superá-las e acessar aquilo que merecerem, de acordo com seu mérito e esforço individuais. Nessa chave de pensamento, as liberdades civis e a primazia do indivíduo são valores centrais e orientadores de todo o sistema de pensamento.
As críticas feitas à direita em geral orbitam em torno da questão da desconsideração de fatores históricos, culturais e socioeconômicos que, na prática, inviabilizam a meritocracia. No seu extremo, já houve historicamente vertentes da direita que sustentaram ser insuperáveis as desigualdades sociais concretas, atribuindo as diferenças entre as pessoas a características inatas (como nas doutrinas do racismo científico, nas noções que afirmavam a inferioridade biológica das mulheres, ou ainda nos argumentos que associam de forma causal a pobreza a determinados grupos sociais, atribuindo-lhes uma tendência ao vício e à degenerescência) e que procuraram, por exemplo, justificar segregações, como ocorreu no apartheid sul-africano, na segregação racial imposta pelas Leis Jim Crow nos EUA e no nazismo alemão [2] .
Já o alinhamento político ao que chamamos de “esquerda” pode ser descrito como aquele em que se acredita que a igualdade perante a lei é insuficiente para assegurar igualdade concreta, porque há fatores socioeconômicos, culturais e históricos que impedem a igualdade de acesso a condições mínimas de sobrevivência, inviabilizando, na prática, a meritocracia. Por essa constatação, nesse modelo de pensamento, o Estado teria o dever de prover esse mínimo acesso a todos (como saúde e educação universais e gratuitas), e, se necessário, estabelecer medidas de promoção de direitos de minorias (como cotas e outros programas sociais). Também seria dever do Estado intervir nas relações de trabalho por reconhecer que, ainda que empregador e empregado sejam pessoas iguais perante a lei, na prática o empregador detém mais poder que o empregado (que dispõe exclusivamente de sua força de trabalho para seu sustento), devendo reger condições mínimas para que essa relação se estabeleça, tais como salário mínimo e descanso semanal remunerado, além do direito à previdência no caso de incapacidade laborativa. Nos posicionamentos à esquerda, o acesso a direitos sociais e o bem-estar coletivo são alguns dos principais valores orientadores.
Da mesma forma que o pensamento político de direita, o pensamento de esquerda não é imune a críticas: afirma-se que é injusto ao premiar quem não se esforçou para merecer, e que o sistema se aproximaria de um assistencialismo que impediria o crescimento e amadurecimento individual, vias incontornáveis para o ganho de autonomia pessoal e moral do cidadão. E, da mesma forma que ocorreu com a direita, a esquerda também teve seus exemplos históricos de extremismo, com vertentes que sacrificaram liberdades individuais – como a liberdade de expressão e de pensamento – censurando opiniões e o exercício de posições políticas contrárias a regimes muitas vezes impostos pela força, em nome da manutenção de uma ideologia (segundo o entendimento de seus seguidores) “benéfica para o povo”, como ocorreu com as ditaduras socialistas.
E os direitos humanos, onde ficam nessa h(H)istória?
Conforme já vimos no texto “Como surgiram os Direitos Humanos?”, os direitos humanos de 1ª geração têm origem histórica nas revoluções liberais que demandavam redução do poder soberano do monarca (e posteriormente do poder do Estado) para assegurar o exercício das liberdades dos cidadãos. Já os direitos humanos de 2ª geração se originaram nos movimentos sociais que perceberam a desigualdade socioeconômica decorrente de relações injustas de trabalho e demandavam intervenções do Estado para tentar corrigi-las. Os debates sobre a compatibilidade ou incompatibilidade desses conjuntos de direitos foram de grande relevância no início da Guerra Fria, a ponto de impossibilitar a adoção de um pacote de direitos humanos no sistema ONU que incluísse todos esses direitos, sendo produzidos dois pactos distintos (falamos sobre isso no artigo “Os Direitos Humanos no papel”).
Assim, vai se tornando claro que os direitos que hoje chamamos de “direitos humanos” têm origem histórica em revoluções e movimentos sociais tanto de esquerda quanto de direita. Por outro lado, esses mesmos sistemas de pensamento político produziram, além do reconhecimento de direitos, regimes ditatoriais que vitimaram milhões de pessoas no século XX [3].
Processos históricos são fenômenos complexos demais para serem lidos sob o critério de “mocinhos” e “bandidos”, assim como as desgastadas definições de esquerda e direita. Em tese, ambos os sistemas são compatíveis com a democracia e com a garantia de direitos humanos, apenas apontando caminhos diversos e priorizando problemas diferentes. Porém, defender posições de apoio à violência policial, ao extermínio de populações minoritárias e segregações higienistas não significa qualquer identificação nem com a direita e nem de esquerda, mas apenas com a violência e o autoritarismo, esses sim, inconciliáveis com qualquer sistema de pensamento democrático.
Notas de rodapé:
[1] Uma sugestão de leitura sobre o tema é o livro “Direita e Esquerda – razões e significados de uma distinção política”, de Norberto Bobbio (Editora UNESP, 2001).
[2] Embora seja importante destacar que, para diversos autores, o nazismo configura uma manifestação política sui generis, sendo inadequado defini-lo como movimento estritamente de direita ou de esquerda, até porque a distinção que usamos atualmente foi cunhada após a queda do regime alemão.
[3] Sobre o tema, sugiro a leitura do livro “Tiranos – de Hitler a Pol Pot: Os Homens que ensanguentaram o século XX” (Antonio Ghirelli, Ed. Difel, 2004), que traz biografias de vários líderes ditatoriais de regimes à esquerda e à direita.
O nazismo e as raízes dos Direitos Humanos na contemporaneidade
03/05/2018 @ 10:39
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