Direitos Humanos no ENEM: quem tem medo de “polêmica”?
A palavra “polêmica” costuma ser empregada para designar uma discussão acalorada sobre um assunto que gera controvérsia e sobre o qual haja mais de um ponto de vista, em geral, conflitantes. E os Direitos Humanos costumam ser o tipo de assunto que gera polêmica, havendo até mesmo quem se declare ser “contra os Direitos Humanos”. No último texto deste ano, quero dividir com as leitoras e leitores aqui da coluna do Observatório do Terceiro Setor algumas impressões sobre essa suposta natureza “polêmica” dos Direitos Humanos.
Em 2017, foi a (potencial) abordagem de temas de Direitos Humanos na redação do ENEM que, mais uma vez, “gerou polêmica”: a Associação Escola Sem Partido ingressou com ação no Supremo Tribunal Federal para suspender trecho do edital que determinava nota zero automática nas redações que desrespeitassem os Direitos Humanos[1]. O STF acatou o argumento dos autores da ação no sentido de que a proibição de manifestação contrária aos Direitos Humanos na redação violaria o direito à liberdade de expressão – este, outro dos Direitos Humanos fundamentais, o que nos coloca diante de um complicado paradoxo: é válido demandar proteção ao direito fundamental à liberdade de expressão para ter direito de atacar direitos fundamentais de outras pessoas? A expressão da opinião e do pensamento deve ser absolutamente livre, mesmo que configure um discurso de ódio contra pessoas ou grupos de pessoas? É democrático o direito de atacar os próprios valores democráticos[1]? As palavras contêm ideias, e ideias tem potência de transformar a realidade, e negar seu poder talvez seja negar a própria essência do fundamento à proteção da liberdade de pensamento e de expressão.
Essa discussão é longa e em vários países democráticos há diferentes soluções para lidar com o problema: desde a criminalização do discurso de ódio até sua liberdade total, limitada apenas pela prática de atos violentos encorajados pelo discurso[2]. Mas, no caso em questão, ainda que se argumente que um posicionamento contrário aos Direitos Humanos faria zerar a redação pela previsível dificuldade de se produzir um texto que sustente logicamente argumentos em que se defenda violência e violações a direitos fundamentais (e que então, na prática, o candidato seria desclassificado de qualquer forma), creio que não dá para ignorar que a Ação Civil Pública proposta contra o edital se insere em um contexto político mais amplo em que se torna legítimo pleitear (e obter) judicialmente o “direito” de defender posições como apoio à tortura, ao extermínio, à segregação em nome de uma leitura canhestra do direito à liberdade de expressão. A quem interessa construir uma tese jurídica de que é legítimo e democrático atacar valores democráticos? Será que o problema (ou o alvo) dos autores da ação é, realmente, o ENEM e a defesa da liberdade de expressão dos estudantes? Além disso, me causa receio (para dizer o mínimo) um Poder Judiciário que afirma ser “excessivamente vaga” a expressão “violação de Direitos Humanos” (embora diga muito a respeito de como se produzem muitas das decisões judiciais no Brasil). Se nos ativermos apenas ao que diz literalmente o artigo 5º da Constituição Federal, já teríamos um bom critério: manifestar posição que contrarie o direito à vida, à igualdade, à liberdade, à propriedade e à segurança é defender violações de Direitos Humanos.
Mas, se em 2015, a questão do ENEM envolvendo um excerto escrito pela filósofa Simone de Beauvoir foi considerada “polêmica” por tratar das bases de uma vertente feminista, assim como a redação sobre “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”, o tema da redação da prova deste ano teria “fugido da polêmica” ao propor que candidatas e candidatos discorressem sobre “Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil”. Ora, o direito à educação (e especificamente à educação inclusiva no caso de pessoas com deficiência) é um tema de Direitos Humanos: aliás, a Lei Brasileira de Inclusão[1] foi produzida a partir da Convenção da ONU[2] sobre os Direitos Humanos destas pessoas.
Mas sou forçada a concordar que o tema dá pouca margem para a temida “polêmica”: me parece improvável que, nos dias de hoje, na segunda década do século XXI, alguém defendesse abertamente a segregação e/ou extermínio de pessoas com deficiência. Também me parece pouco provável na atualidade – e friso novamente, apenas nos dias de hoje – que alguém considere que pessoas com deficiência não devem participar da sociedade “normal” ou “sadia” (termos que já foram empregados em oposição à deficiência), então restaria pouco espaço pra polemizar mesmo.
E aí é o caso de nos perguntarmos: por que os Direitos Humanos são considerados “um tema polêmico”? Por que o medo de levar esse debate – que diz respeito ao conhecimento histórico, à capacidade crítica, ao fomento à análise política? E mais do que isso: será que qualquer tema relacionado aos Direitos Humanos é considerado “polêmico”?