Heróis ou Juízes?
O Código Penal Brasileiro, em seu artigo 345 [1] , prevê o crime de “exercício arbitrário das próprias razões”, que consiste na seguinte conduta:
Art. 345 – Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite:
Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.
Traduzindo do juridiquês para o português: esse crime se refere à situação de alguém que teve um direito violado (daí o texto falar em “pretensão, embora legítima”) e que, ao invés de buscar a reparação de seu direito pela via do Poder Judiciário, decide resolver o problema ela mesma. O que se procura proteger aqui é o bom funcionamento do sistema de justiça, tanto que o artigo 345 se encontra no capítulo referente aos Crimes contra a Administração da Justiça.
É interessante notar que a lei usa textualmente a expressão “fazer justiça pelas próprias mãos” para descrever a conduta do crime de exercício arbitrário das próprias razões, pois os heróis que recheiam as histórias em quadrinhos (e outros produtos da cultura pop) são, precisamente, os caras que fazem justiça pelas próprias mãos, combatendo o crime, protegendo os cidadãos “de bem” e tomando o espaço do Estado ineficiente na segurança pública. Porém, sob outro ponto de vista, os heróis são, em geral, personagens com severos problemas pessoais, a lidar com lutos, traumas e sentimentos de inadequação social, externando um comportamento violento e praticando crimes a pretexto de “fazer justiça com as próprias mãos”- e tanto isso é um problema que os heróis precisam se esconder sob uma identidade secreta. Houvesse consenso sobre o “heroísmo” de seus atos, não haveria porque fazê-los sem revelar seu verdadeiro “Eu”, não é mesmo?
Não pretendo aqui me aprofundar no arquétipo do herói e as implicações sociais desses perfis psicológicos – deixo a tarefa ao encargo dos estudiosos da psicologia e psicanálise, sem dúvida mais avalizados do que eu para essa discussão. Mas senti necessidade de lançar esses elementos para refletir sobre uma tendência atual de se representar pessoas reais, que estejam vivenciando momentos de maior expressão em debates públicos e políticos, como heróis (ou como vilões, o que é assunto para outro texto!).
Refiro-me mais especificamente às representações que cercaram o interrogatório de Lula pelo juiz Sérgio Moro no processo criminal em que o primeiro é réu. Muito embora se trate de um ato judicial absolutamente cotidiano, os muitos fatores sociais e políticos que rodeiam o caso levaram a uma intensa cobertura midiática, na qual alguns meios de comunicação construíram a narrativa sobre o caso em termos de uma “luta” entre Moro e Lula, um grande embate entre “mocinhos” e “bandidos”, com torcidas escolhendo seus vilões e… heróis.
Podemos deixar para uma outra ocasião a conversa sobre os problemas de colocar Lula na posição de herói ou vilão – aliás, problemas estes que entrevejo na representação de qualquer pessoa sob esta chave, pois será que as pessoas reais podem ser condensadas na figura bidimensional e maniqueísta de herói ou de vilão? Por hoje, quero falar a respeito dos problemas conceituais em se classificar um juiz de Direito (seja Sérgio Moro ou qualquer outro) como um herói atuando no combate ao crime.
Para identificar esses problemas a que me refiro, comecemos pensando no que consiste a figura do juiz. Imaginemos uma luta de boxe (que, aliás, serviu para ilustrar algumas das matérias jornalísticas a respeito de Lula e Moro, nas quais ambos eram representados como lutadores em lados opostos): visualizamos, imediatamente, um espaço especificamente construído para aquele acontecimento (pois os socos e outros golpes do boxe somente são admitidos dentro do ringue), dentro do qual duas partes iniciam um confronto em igualdade de condições, acompanhadas por um terceiro que não faz parte da disputa e que está ali para assegurar a aplicação justa e correta das regras do jogo e declarar qual dos dois é o vencedor e assim assegurar um resultado justo.
A ação judicial (penal ou não) guarda várias semelhanças com a luta de boxe: o processo pelo qual a ação se realiza também é formado por duas partes, que confrontarão não golpes, mas argumentos baseados em provas, e esse conjunto será avaliado e julgado por um terceiro que não faz parte dessa relação – o juiz de Direito.
Quando se trata de ação penal, há algumas especificidades: são partes deste processo, de um lado, o cidadão acusado de crime, que é o réu, que irá argumentar para sustentar seu direito a ser absolvido e permanecer em liberdade. De outro lado, está a sociedade, representada pelo membro do Ministério Público, o Promotor de Justiça, que, como o próprio nome revela, é o servidor público que tem por função promover a Justiça, e que pode até mesmo pedir que o juiz absolva o réu se concluir ao final do processo em que ele é parte que não há provas o suficiente para condenação, ou mesmo que está provado ser o réu inocente. Mas, claro: quando a promoção da Justiça implicar uma acusação criminal e um pedido de condenação, é isso que o representante do Ministério Público deverá fazer.
Cabe ao Ministério Público, portanto, a atribuição de acusar em uma ação penal a pessoa sobre a qual haja indícios de ter praticado um crime, conforme investigado previamente – atribuição das instituições policiais como a Polícia Civil no âmbito nos Estados, e a Polícia Federal, nos crimes julgados pela Justiça Federal. Já a repressão da prática de crimes é atribuição dos órgãos de segurança pública, como a Polícia Militar.
Ainda que possamos apontar diversos problemas na execução do trabalho de todas as instituições acima mencionadas e indicar em que esses serviços poderiam melhorar, o fato é que ao juiz cabe apenas e tão-somente julgar. Juiz não investiga, juiz não acusa e juiz não toma partido de um ou de outro lado – ou seja, é imprescindível que seja imparcial.
A imparcialidade do juiz é direito correlato às garantias processuais conferidas a qualquer cidadão acusado de crime em um processo. Se até meados da Idade Média o sistema inquisitorial contava com a figura única do acusador/julgador, o desenvolvimento do Direito Penal a partir do Iluminismo [2] e da tripartição de poderes – quando se criou o Poder Judiciário – possibilitou que se propusessem julgamentos mais justos dividindo as funções de quem acusa e de quem investiga. Acreditar que cabe ao juiz combater o crime por meio de punições severas não só é um equívoco quanto às funções do magistrado como também quanto à questionável função preventiva da pena [3].
Mas para além dessas questões históricas sobre como se formaram e como foram distribuídas as funções dos operadores do Direito no sistema de justiça, parece-me importante refletirmos o porquê de surgir essa necessidade tão premente de encontrar heróis (aparentemente) moralmente perfeitos que nos livrem e guardem dos perigos oferecidos pelos vilões, numa crença pueril de que bastaria encontrar a fonte de todo mal, e que, uma vez derrotada pelo herói da vez, poderíamos ser felizes para sempre. Se sequer Gotham City encontrou seu “final feliz” pelas mãos de Batman, não seria tempo de tomarmos consciência de que os processos históricos, sociais e políticos da vida real demandam soluções mais complexas?
Notas de rodapé:
[1] Confira o texto legal original aqui.
[2] Falei sobre o surgimento do Direito Penal e sua relação com os Direitos Humanos nesta coluna.
[3] Falei a respeito do “combate à impunidade” nesta coluna.