O que significa assinar um tratado internacional sobre Direitos Humanos?
Quem acompanha a coluna Direitos Humanos e Sociedade aqui no portal do Observatório do 3º Setor sabe que um dos meus objetivos centrais destes nossos encontros mensais é procurar desconstruir preconceitos e estereótipos muitas vezes presentes no senso comum a respeito do tema dos Direitos Humanos, e também trazer um pouco de informação sobre questões correlatas que acredito serem de curiosidade geral, para além do público jurídico.
Já há algum tempo tenho a sensação de que as percepções gerais sobre os Direitos Humanos se alternam entre duas representações distintas. A primeira – e bastante comum – é aquela que associa os Direitos Humanos a “direito de bandido”, deixando transparecer a (falsa) ideia de que trabalhar com Direitos Humanos é ser leniente e bondoso com pessoas que não mereceriam tal tratamento, e mais, que isso seria um fator de estímulo para a prática de crimes. Dessa “lenda urbana” já tratamos na coluna Afinal, direitos humanos é direito ‘de bandido’?, na qual espero ter esclarecido o porquê todos esses chavões são equivocados.
Mas há também uma segunda representação dos Direitos Humanos no imaginário coletivo, relacionada a questões de política internacional, ativistas em manifestações contra perseguições políticas, e órgãos internacionais responsáveis por ações diplomáticas regidas por tratados internacionais. Embates entre organizações como a ONU e a Anistia Internacional, ou assembleias com representantes de mais de uma centena de países com seus fones de ouvido para a tradução simultânea de debates sobre direitos podem parecer uma realidade muito distante do dia a dia do cidadão, ou mesmo do cotidiano de quem trabalha na área jurídica. Mas, na verdade, a adesão de um país a um tratado internacional de Direitos Humanos pode gerar consequências bastante concretas, e que, creio eu, valem a pena conhecer um pouco melhor.
Para melhor compreender o impacto dos tratados internacionais de Direitos Humanos na vida das pessoas, é necessário remontar ao período que se seguiu ao fim da 2ª Guerra Mundial, mais exatamente ao ano de 1948, quando é fundada a Organização das Nações Unidas e que é considerado um marco na história contemporânea dos Direitos Humanos.
A 2ª Guerra Mundial, em razão das violações perpetradas pela Alemanha nazista (que elaborou normas fundamentadas em ideologia racista pretensamente científica, e determinou legalmente a perseguição dos cidadãos não arianos) e a bomba atômica contra populações civis japonesas (cujos efeitos de seu alto poder de destruição ultrapassaram em muitas gerações além daquelas atingidas pelo ataque) foi considerada como uma ruptura com todos os antecedentes de direitos fundamentais que vinham se construindo desde o século XVIII. Estes fatos históricos, que significaram total negação do valor inato do indivíduo, levantaram a pergunta: esta situação poderia ter sido evitada (ou minimizada) pela previsão de proteção internacional aos indivíduos que se vissem desprotegidos pelo ordenamento jurídico de seus próprios países (como os judeus na Alemanha), ou por uma limitação ao uso da força contra populações não envolvidas no conflito armado (caso dos civis japoneses atacados em Hiroshima e Nagasaki)?
Este questionamento cria o ambiente político para a criação de sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos, que correspondem à articulação de órgãos e instituições nas esferas nacional e internacional que possibilita a demanda jurídica no caso de violação de direitos humanos. No âmbito global, a ONU é fundada em 1948, e nas décadas seguintes são formados sistemas internacionais regionais (europeu, interamericano e africano).
Este processo histórico é conhecido como internacionalização dos Direitos Humanos, que tem como consequência a relativização do conceito de soberania e a transformação dos indivíduos em sujeitos de Direito Internacional. E aqui já começam a ficar mais claros os impactos que o Direito Internacional dos Direitos Humanos e seus tratados têm na vida das pessoas: quando um país passa a integrar um desses sistemas internacionais de Direitos Humanos (como a ONU, ou a OEA), isso é feito pela assinatura de um tratado internacional no qual este Estado limita seus próprios poderes políticos quando estes violarem direitos fundamentais, e abre a possibilidade de um cidadão seu, que se veja violado em um destes direitos, recorrer a um destes órgãos internacionais para que o país seja responsabilizado.
Esta limitação dos poderes políticos acontece da seguinte forma: ao ratificar o tratado, o país se compromete internacionalmente a adequar sua política e ordem jurídica internas aos termos do pacto (ou seja, fica obrigado a alterar políticas públicas do Poder Executivo, normas produzidas pelo Poder Legislativo, e decisões proferidas pelo Poder Judiciário), o que fortalece os sistemas domésticos de proteção aos Direitos Humanos. E, caso não cumpra com aquilo a que se comprometeu, deverá submeter-se à jurisdição internacional.
É claro que existem regras e requisitos para que um cidadão acesse um sistema internacional de proteção aos Direitos Humanos para denunciar que um país descumpriu um tratado e violou um direito. Cada sistema terá seus requisitos específicos, mas em geral, exige-se que já se tenha recorrido a todos os meios jurídicos internos; ou que se demonstre que o Estado está se mantendo inerte para evitar a responsabilização internacional.
E essa responsabilização internacional ocorre? Sim! Ainda que os mecanismos para compelir um Estado a se responsabilizar por uma violação de direitos encontrem desafios na sua implementação (afinal, obrigar um país por meio da força a cumprir uma determinação pode gerar conflitos internacionais e políticos graves), há diversos casos concretos – inclusive no Brasil – de países que foram internacionalmente julgados e considerados responsáveis por não terem cumprido um tratado anteriormente assinado. São exemplos paradigmáticos o “caso Maria da Penha” (relatório 54/01 do caso 12.051), em que foi recomendado ao Brasil pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos elaborar legislação específica para o combate à violência doméstica contra a mulher, como responsabilização pelo descumprimento da Convenção de Belém do Pará, e também o “caso Damião Ximenes Lopes” (caso 12.237), no qual o Estado brasileiro, por não cumprir recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos de indenizar a família de um paciente psiquiátrico torturado e morto em um hospital da rede pública no Ceará, foi julgado responsável pelo não cumprimento do Pacto Interamericano de Direitos Humanos e compelido ao pagamento da indenização – o que foi determinado via decreto presidencial.
É claro que há outros casos – referentes ao Brasil e outros Estados – em que o acesso aos sistemas internacionais é menos produtivo. Isso para não mencionar as muitas contradições em se pretender estender valores culturais pretensamente universais para todos os países que integram estas convenções, não raro formuladas em processos políticos de intensas disputas. Mas, acho que vale o otimismo de perceber que há uma estrutura jurídica para proteção de direitos fundamentais que tem reflexos bastante concretos na vida dos cidadãos, e que vão bem além de meras cartas de intenções.
Para conhecer melhor o sistema interamericano (composto pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ambas pertencentes à Organização dos Estados Americanos) e os casos brasileiros submetidos a essa jurisdição internacional, acesse o site da OEA. Até o mês que vem!