A angústia de quem precisa ir ao hospital em meio à pandemia
Para pacientes com doenças graves, como o câncer, ficar longe do hospital até a pandemia passar não é uma opção. O medo cada vez que saem de casa é igualmente inevitável
Por: Mariana Lima
Em dezembro de 2019, quando o governo chinês revelou à Organização Mundial da Saúde (OMS) o surgimento de uma “pneumonia de origem desconhecida”, a jornalista Kelly Cristina Pinheiro, de 34 anos, iniciava o tratamento contra um câncer de mama. Enquanto Kelly encarava as primeiras sessões da quimioterapia, o mundo conhecia o novo coronavírus (Sars-Cov-2), causador da Covid-19.
A doença logo se alastrou pelo mundo, e até o dia 26 de maio havia causado a morte de 24,5 mil brasileiros e de 343,5 mil pessoas em todo o mundo. O número de casos confirmados da doença em todo o planeta já beira os 5,5 milhões.
Diante da velocidade de contágio da doença, muitos países adotaram medidas de isolamento social e a recomendação passou a ser de que as pessoas evitem ao máximo sair de casa. Além disso, mesmo a ida a unidades de saúde só é recomendada em caso de grande necessidade, já que a exposição ao vírus nesses ambientes é maior. Para muitos grupos, no entanto, evitar hospitais não é uma opção, e o medo de contrair o novo coronavírus é grande.
O câncer não espera a pandemia passar
Nos primeiros meses de 2020, Kelly precisava ir ao hospital a cada 15 dias para receber a medicação da quimioterapia diretamente na veia, após uma alergia que a impedia de usar o cateter. Com o crescimento nos casos de Covid-19, Kelly terminou a quimioterapia e seguiu o tratamento em casa por ordens médicas.
Só voltou a frequentar o hospital na hora de fazer os exames para realizar a mastectomia bilateral – processo cirúrgico para a retirada das mamas. Ainda no pré-operatório precisou redobrar os cuidados.
“Eu sou do grupo de risco, então me isolei no quarto da minha filha dias antes da cirurgia. As idas ao hospital eram angustiantes, apesar de tomar todos os cuidados”.
Kelly revela que o hospital criou protocolos para os pacientes oncológicos, que ficavam em um andar específico, com uma rota específica para eles evitarem a circulação pelo hospital.
A jornalista foi liberada no dia seguinte após a cirurgia, devido à boa resposta que teve. Ainda assim, Kelly precisava retornar para fazer acompanhamento semanalmente.
“Não pude comemorar o fato de estar curada. Havia essa outra ameaça, e eu estava mais suscetível a ela. Entrei em desespero um mês após a minha cirurgia, quando os médicos apontaram a suspeita de Covid”.
Kelly teve uma infecção grave e muita febre. Apesar do pulmão limpo, os médicos optaram por interná-la. O resultado do teste deu negativo, mas a equipe médica informou a ela que poderia ser um falso negativo.
“Foi horrível. Eu estava sozinha o tempo todo, só tinha os enfermeiros mascarados que iam e vinham, e ainda tive que passar o dia das mães longe da minha filha. Chorei muito naquele dia”.
Foram cinco dias internada até a infecção ser estabilizada. Kelly já tinha ficado sem acompanhante nas suas últimas sessões de quimioterapia realizadas em março, devido ao novo protocolo do hospital, mas com a suspeita de Covid foi mais difícil.
“O câncer ainda permite o apoio familiar, enquanto o coronavírus tira até isso de você. Penso nas pessoas que continuaram internadas e em quão solitárias devem se sentir. Isso faz muita diferença no tratamento”.
Kelly ainda precisa retornar ao consultório médico para as consultas com a mastologista, além do acompanhamento geral do tratamento, que deve seguir pelos próximos 10 anos.
“Quando preciso sair para o hospital vou igual a um ET, mas vou. Meu foco sempre foi na cura. Meu marido é o único que sai com mais frequência, mas assim que chega faz todo o processo de higienização”.
A mãe de Kelly também vem tratando um câncer de pulmão raro. Como as duas estão no grupo de risco, não podem conviver no mesmo espaço.
“Ela queria me acompanhar na cirurgia, cuidar de mim. Pedi que ela ficasse em casa. Não a vejo desde março, mas sei que se ela pegar [Covid-19] não vai conseguir resistir. O câncer dela é ainda mais grave. O jeito é aceitar a distância”.
Um carro a caminho
Aos quatro anos, Albert Santos Silva foi diagnosticado com meduloblastoma, um tipo de tumor cerebral que cresce rápido atingindo o cerebelo – parte do cérebro responsável por controlar a coordenação e o equilíbrio.
Desde então, Nária Silva Santos, 30, acompanha o filho, hoje com 11 anos, para realizar os diversos acompanhamentos médicos necessários no GRAACC – Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer, na zona sul de São Paulo.
A família vive na altura do km 15 da Rodovia Raposo Tavares (SP-270), na região oeste da cidade de São Paulo, em situação de vulnerabilidade. Para conseguir levar o filho para as consultas semanais, Nária conta com o apoio da AHPAS – Associação Helena Piccardi de Andrade Silva.
A associação oferece transporte gratuito para crianças e adolescentes em tratamento contra o câncer no município de São Paulo, além de atividades socioeducativas e grupos de apoio para os pais.
“Isso que estamos vivendo é surreal. Não sei como seria para levar ele até o hospital nesta situação com o transporte público. Não sei se aguentaríamos sem o suporte que a AHPAS oferece”.
Nária sabe a importância de seguir com o tratamento e os acompanhamentos necessários, mas a preocupação é permanente.
“Tá sendo bem difícil, mas não tem o que fazer. O medo é constante porque ele já tem uma imunidade mais frágil. Já avisaram que se ele tivesse qualquer sintoma tinha que ser levado direto para o hospital”.
Atualmente, Albert precisa ser acompanhando por diversos profissionais (neurologista, fisioterapeuta, oftalmologista e ortopedista), que auxiliam no seu desenvolvimento após concluir o tratamento do meduloblastoma. No entanto, a pandemia impediu o início de um novo tratamento.
“Íamos começar a passar com um dermatologista oncológico para tratar uma escoliose causada pela cirurgia de retirada de um câncer da coluna que surgiu por causa do meduloblastama. Mas os médicos pediram para esperar”.
Albert estava começando a se habituar a uma rotina escolar e aos passeios constantes em um parque próximo de sua casa quando a quarentena foi decretada no estado.
“Ele é uma pessoa muito sensível. Como ele passou por tratamento muito rígido, qualquer coisa pode abalar ele psicologicamente. Tento explicar essas mudanças de um jeito mais calmo quando pergunta por que não podemos mais sair”.
Nária se dedica ao cuidado com o filho em casa diariamente, além de levá-lo para as consultas. O marido dela ainda está saindo com frequência devido ao trabalho, mas assim que chega segue uma rotina de higienização.
“Deixo o álcool em gel na garagem, e ele já tira a roupa lá e vai direto para o banho. Só espero que essa situação melhore para que a gente consiga seguir com o tratamento direto”, desabafa.
Além do marido, Nária recebe o suporte dos irmãos para conseguir dar andamento ao tratamento do filho. No momento, ela evita receber visitas em casa. Celso Rodrigues, presidente da AHPAS, comenta a importância de manter um diálogo com as famílias.
“Nenhuma das famílias que atendemos pensou em abandonar o tratamento, mas ainda assim reforçamos a importância de continuar. Deixamos o canal aberto para eles e oferecemos o que precisam”.
Até o momento, nenhum dos atendidos apresentou sintomas do novo coronavírus, mas o acompanhamento constante com as famílias permite que auxiliem em casos potenciais.
“A avó de um dos nossos atendidos pegou a doença, e ela era a principal responsável por ele. Levava para o tratamento, acompanhava em tudo. Através da assistente social, conseguimos outro parente que pudesse ficar com ele até ela se recuperar”, conta Rodrigues.
“Bate um desespero pensar em ter que passar novamente por toda aquela angústia de um tratamento intensivo, caso eu pegue esse vírus”
Uma necessidade semanal
Nós últimos cinquenta anos, Merula Steagall, 53, acostumou-se a passar pelos menos um dia no hospital a cada semana, devido à necessidade de tratar a talassemia, um tipo grave de doença sanguínea que a faz necessitar de transfusões de sangue.
“Entendo a necessidade de ficar em casa, e venho cumprindo isso. Mas não posso interromper as minhas idas ao hospital. Algumas pessoas podem fazer consultas por videoconferência, mas não tem como funcionar com a transfusão”.
Em meio à pandemia, Merula teve uma complicação: apresentou um quadro de infecção pulmonar e precisou passar 28 dias internada.
“Eles permitiram apenas um acompanhante fixo. Meu marido ficou esses 28 dias comigo. Antes da alta fizemos o teste e, apesar de não ter sintomas, o do meu marido deu positivo”.
Assim, após a alta de Marula, o marido foi cumprir o período de isolamento fora do apartamento, para que ela não corresse o risco de contrair a doença. As transfusões agora são realizadas em consultórios isolados no hospital.
“Está tendo uma queda no número de doações de sangue, mas como o hospital em que faço as transfusões não está tendo muitas cirurgias acabamos tendo um equilíbrio, então o risco de faltar ainda não me preocupa”.
Merula é presidente da Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale) e da Associação Brasileira de Talassemia (Abrasta) e relata estar mais preocupada com pacientes que realizam tratamentos semelhantes e necessitam das doações no Sistema Único de Saúde (SUS).
Agora Merula precisa realizar as transfusões sem nenhum acompanhante. Além disso, o hospital em que vai estabeleceu uma entrada separada para os pacientes que estão no grupo de risco.
Sensação de insegurança
A psicóloga Teresinha Ferreira da Silva, 59, mora em São Caetano e precisa ir até o centro da cidade de São Paulo para dar continuidade ao tratamento contra um câncer de mama que teve em 2016.
Ela aponta para o impacto duplo que a pandemia pode ter sobre pessoas com doenças graves que necessitam do contato mais próximo com hospitais.
“A pandemia tira a liberdade do tratamento. É um momento obscuro, só vemos os números de mortos aumentarem e acaba causando uma sensação de insegurança. Para alguém em tratamento, a imunidade baixa se torna um inimigo”.
Teresinha precisa fazer uma sequência de exames que necessitam que passe o dia todo no hospital. Esses exames são mensais e já haviam sido adiados por 60 dias. Ela vem conversando com seu médico para avaliar a necessidade de adiá-los novamente.
“Os exames são uma garantia de que tudo está bem, uma vez que o câncer pode voltar do nada. Bate um desespero pensar em ter que passar novamente por toda aquela angústia de um tratamento intensivo, caso eu pegue esse vírus”.