A dura rotina de profissionais da saúde no combate à Covid-19
Profissionais da saúde que atuam no combate à Covid-19 relatam os problemas e as angústias de trabalhar neste momento no Brasil
Por: Mariana Lima
João*, 32, é médico generalista de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) na zona norte da cidade de São Paulo e de um pronto-socorro no centro da capital paulista. Ele relata que na UBS em que atua não houve nenhum treinamento para o atendimento dos pacientes com suspeita de Covid-19.
“Já no pronto-socorro tem uma demanda ainda maior do que a equipe consegue dar conta. Além disso, estamos racionando os equipamentos de proteção individual (EPIs), tendo um uso mais cuidadoso porque podem faltar”.
Entre 19 de março e 20 de abril, a Associação Médica Brasileira registrou 3.181 denúncias feitas por médicos sobre falta de EPIs no atendimento a pacientes com Covid-19. As cidades de São Paulo (375), Rio de Janeiro (181) e Porto Alegre (132) estão entre as que mais registraram reclamações. Até o momento o país já tem 7.987 registros de reclamações sobre a falta de EPIs entre profissionais da saúde.
João tem observado muitos colegas tomando atitudes extremas devido aos turnos longos, a falta de segurança e o risco da doença.
“Profissionais mais velhos tiveram que adiar a aposentadoria apesar da idade e o risco ao trabalharem com casos de Covid. Tenho colegas que faltam ou se afastam assim que apresentam algum sintoma sem poder fazer o teste”.
O presidente da Sociedade Brasileira para a Qualidade do Cuidado e Segurança do Paciente (Sobrasp), Victor Grabois, informou em entrevista à Abrasco que um trabalhador da saúde pode infectar até nove pessoas. Outros indivíduos contaminam de duas a três.
De acordo com o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), mais de 100 profissionais, entre enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, foram mortos pela Covid-19 no país, entre 14,1 mil casos reportados da doença entre esses profissionais.
“Colegas se demitiram por não estarem aguentando a situação. É só observar que o número de internações não é condizente com o número de óbitos. Alguma coisa não está funcionando”.
Escolha de Sofia
Outro ponto abordado por João é em relação aos equipamentos e à demanda dos pacientes. Como único clínico na UBS em que trabalha, ele se preocupa com a “escolha de Sofia”.
“Se quatro pacientes graves derem entrada ao mesmo tempo na UBS, não tenho como atender a todos. Teria que fazer uma escolha sem nenhum respaldo legal”, diz João.
Apesar do colapso nos sistemas de saúde em cidades como Manaus (AM) e Belém (PA), o Conselho Federal de Medicina (CFM) ainda não publicou nenhuma norma que oriente os profissionais da saúde nestes casos.
A médica generalista L. M.*, 33, teme a chegada desta fase. “Por aqui, não há qualquer orientação. Para um médico é extremamente doloroso. Nos formamos para salvar, não para escolher”.
L. M. atende em uma UBS na zona leste de São Paulo e vem acompanhando relatos de colegas que tentam lidar com a nova demanda de trabalho.
“Alguns estão fazendo turnos de 72 horas. Eles ficam com o rosto marcado pelo uso constante da máscara. Um enfermeiro que conheço se isolou no escritório de casa. Faz tudo lá para não contaminar a filha recém-nascida e a esposa”.
Outra preocupação da médica é em relação ao período pós-pandemia que pode gerar uma demanda ainda maior para o sistema público de saúde.
“As UBSs funcionam como porta de entrada para o SUS (Sistema Único de Saúde). Os exames e atendimentos comuns não estão sendo realizados. As agendas irão lotar no primeiro sinal de normalidade”.
A médica está afastada devido a uma doença autoimune, mas pretende retornar assim que melhorar.
“É difícil sair de casa todos os dias sem a certeza de que não vai voltar infectado. Tenho uma avó que pode morrer a qualquer momento por conta da idade e não sei se vou poder estar com ela antes disso”, desabafa L. M.
O primeiro atendimento
O conselheiro do Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo (Sindsep), Douglas Cardozo, 36, atua como técnico de enfermagem em um hospital municipal da capital ligado a uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Enfermeiros e técnicos de enfermagem são os responsáveis pelo primeiro atendimento e pela triagem dos pacientes que chegam.
“A demanda é muito grande. Ficamos neste clima de alerta e a preocupação é diária. Até a suspeita se tornar confirmação você já teve o contato e pode estar infectado e contaminar seus familiares”.
Douglas ressalta que essas preocupações são compartilhadas pelos profissionais no hospital em que trabalha.
“Gera muita angústia e pressão psicológica. O clima entre as equipes também acaba sendo afetado. O ambiente de trabalho se torna hostil por causa de toda essa tensão”.
O técnico de enfermagem revela que a preocupação atual é em relação à qualidade dos EPIs que chegam aos serviços de saúde.
“No Brasil temos a máscara cirúrgica e o avental descartável, enquanto em outros países as equipes de saúde usam aquelas roupas de ‘astronautas’. Aqui, mesmo com os equipamentos, não temos a sensação de segurança”.
A situação do SUS já era precária antes da chegada da pandemia de Covid-19, mas a crise apresenta também uma oportunidade de valorização.
“Estamos aumentando a demanda sobre um serviço sobrecarregado, com um subfinanciamento. Espero que após essa pandemia, esse respeito aos profissionais de saúde continue. O respeito não deve acabar junto com a pandemia”, desabafa.
Glaucia Cabrino, 51, é enfermeira no Hospital Municipal Maria Braido, no município de São Caetano do Sul (SP). Ela atua na unidade de isolamento, mas sem contato direto com os pacientes de Covid-19.
“Assim que os primeiros casos apareceram, percebi que estávamos despreparados. Tínhamos equipamentos para os trabalhos diários, mas não para lidar com uma pandemia”.
Ela revela que os funcionários conseguiram manter um diálogo com o hospital para que se adequassem aos protocolos necessários. A conversa vem se mostrando uma importante ferramenta.
“Funciona como uma ajuda mútua. Tranquilizamos uns aos outros. O medo é nosso parceiro, o medo de errar, de perder um paciente. Sem ele não tem como trabalhar. Ele valida nossas preocupações”.
Antes da pandemia de Covid-19, Glaucia estava aguardando a finalização do seu processo de aposentadoria.
“Eu não deveria estar aqui. Essa situação mexe muito comigo. Fico pensando: cheguei até aqui na minha vida profissional e agora posso morrer ou contaminar minha família”.
Glaucia já acompanhou surtos e epidemias como a de HIV/AIDS, e apesar de não lidar com casos de Covid a preocupação é constante.
“Tenho um colega de enfermagem internado aqui, na UTI, em estado grave. É triste ver qualquer pessoa nesta situação, mas ver um companheiro de profissão assim mostra como estamos mais vulneráveis”.
A enfermeira ainda aponta para as diversas situações de ataques contra profissionais da saúde, que vêm ocorrendo no município, entre agressões verbais e físicas no transporte público.
“As pessoas não respeitam a figura do enfermeiro. Na família, se alguém cursa enfermagem logo perguntam: por que não fez medicina? Como se a saúde dependesse apenas dos médicos”.
Sobre quem vê as UTIs
Nicolle Queiroz, 34, é médica clínica membro do corpo clínico do Hospital Albert Einstein e do Hospital São Luiz. Ela vem atendendo na UTI de Covid-19 no Hospital São Camilo e no Hospital São Luiz desde o final do mês de março. A rotina na UTI é angustiante, principalmente quando envolve a perda de um paciente de apenas 38 anos.
“Ele era um Covid grave e não tinha muito que fazer, apesar de todos os recursos. Em 12 horas ele veio a óbito. A família não chegou a tempo de se despedir, nem por videochamada. É muito doloroso quando você não consegue fazer aquilo que você se forma para fazer”.
Apesar de ser asmática, característica que a coloca no grupo de risco, a médica optou por lidar com casos de Covid-19 na linha de frente.
“Mesmo dentro do grupo de risco, eu fiz um juramento de que iria salvar e aqui [na UTI] estou cumprindo isso. No entanto, a sociedade também precisa colaborar e seguir os protocolos de higiene”.
Eles combatem, mas também morrem
O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) vem monitorando de perto o número de profissionais de enfermagem contaminados ou mortos devido à Covid-19. Já o Conselho Federal de Medicina (CFM) ainda não apresentou nenhum balanço geral em relação aos médicos mortos ou contaminados.
No Rio de Janeiro, o Conselho Regional de Medicina do RJ (Cremerj) contabilizou oito médicos mortos pelo novo coronavírus. Em São Paulo, o Sindicato dos Servidores Municipais de SP (Sindsep) registrou 28 mortes na cidade entre funcionários públicos e terceirizados da saúde. Esse monitoramento colabora para identificar como a doença se espalha entre os profissionais na saúde e a qualidade dos locais de trabalho.
No dia 20 abril, o médico Frederic Jota Silva Lima, de apenas 32 anos, morreu após ser contaminado pelo novo coronavírus. De acordo com os familiares, Lima não tinha nenhuma comorbidade ou doença pulmonar, mantendo um estilo de vida saudável. O médico trabalhava em UPAs em São Bernardo do Campo (SP) e na Vila Carmosina, na zona leste da cidade de São Paulo. Lima chegou em estado grave no hospital Emílio Ribas e apesar de ter sido intubado não resistiu.
Outro caso que chamou atenção foi da enfermeira Marluce Barcelos Gomes, 72, que trabalhava no Hospital do Andaraí, na zona norte do Rio de Janeiro. O quadro dela piorou e devido à falta de respiradores no hospital em que trabalhava precisou ser transferida para outro local em que veio a óbito. Apesar de fazer parte do grupo de risco, a enfermeira continuou trabalhando.
*A pedido dos entrevistados, os nomes foram trocados ou ocultados.