A justiça com as próprias mãos
Recentemente a imprensa brasileira noticiou o linchamento da dona de casa Fabiane Maria de Jesus, espancada por moradores da comunidade de Morrinhos, no Guarujá, no litoral de São Paulo. Ela foi agredida por um boato sobre sequestros de crianças para rituais macabros. Ariadne Natal, mestre em sociologia, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo vem estudando o tema “linchamento” e nos concedeu uma entrevista exclusiva sobre o assunto.
Observatório do Terceiro Setor: O que está acontecendo com a sociedade que resolveu fazer justiça com as próprias mãos?
Ariadne Natal: A explicação mais recorrente para os linchamentos é de que eles são resultado da incapacidade do Estado em cumprir suas funções e garantir a lei e a ordem. Diante da sensação de medo e insegurança, da percepção de impunidade e da desconfiança com relação às instituições públicas, parte da população agiria por conta própria, alegando legítima defesa. Por um lado, o diagnóstico negativo a respeito do sistema de segurança e justiça tem um respaldo na realidade e contribui para desencadear linchamentos. No entanto, como considerar legítima defesa uma situação em que uma multidão imobiliza e espanca covardemente um indivíduo, visando sua morte?
Para entender esta dinâmica é preciso compreender que vivemos em um país no qual os direitos civis não são completamente legitimados e são questionados por parte da população. Valores e princípios democráticos básicos como o direito à vida e à dignidade não são vistos como direitos universais, e sim considerados benefícios exclusivos do “cidadão de bem” que cumpre a lei.
Os linchamentos são uma consequência deste tipo de leitura de mundo, o que motiva este tipo de ação não é a busca pela justiça nos moldes democráticos, mas um desejo de vingança, uma compulsão punitiva que é imediata e principalmente física, que visa atingir o corpo do outro para humilhar, infligir dor, fazer sofrer e, por fim, eliminar.
Observatório: Seu estudo fala sobre 30 anos de linchamento na região metropolitana de São Paulo. O que mudou nesse período?
Ariadne: Os linchamentos não são fenômenos recentes em nossa sociedade, eles ocorrem há mais de um século no País. Embora não existam dados oficiais sobre estes casos, é possível afirmar que os linchamentos se tornaram mais frequentes a partir da formação das grandes metrópoles.
Em minha pesquisa trabalhei com casos de linchamentos noticiados pela imprensa ao longo de um período no qual o País passou por profundas transformações. Nas décadas de 1980 e 1990 destacam-se a abertura democrática e a nova constituição, mas também as crises econômicas, o aprofundamento das desigualdades, a incapacidade do Estado em suprir as necessidades dos cidadãos e a explosão da criminalidade urbana. Os anos 2000 marcam uma certa inflexão com melhoras em indicadores sociais e queda dos homicídios, mas também a ascensão do crime organizado em São Paulo.
Os dados dos casos de linchamentos refletem estes diferentes momentos, desde o volume de registros, que se concentram principalmente nas décadas de 1980 e 1990, até com relação o próprio papel do Estado, por meio da polícia que ao longo deste período gradativamente aparece como um elemento cada vez mais presente, com um importante papel de inibir e muitas vezes impede que um linchamento tenha desfecho fatal.
Observatório: Qual a sua opinião sobre a atuação da polícia em casos como estes envolvendo manifestações populares?
Ariadne: A atuação das polícias civil e militar é muito importante para prevenir e esclarecer casos de linchamentos. De maneira preventiva, quando as polícias fazem um bom trabalho e a população confia na sua capacidade de lidar satisfatoriamente com as ocorrências, aumentam as chances de que, diante de um conflito ou um crime, ou invés de agir privadamente, a população acione estas instituições. Além disto, em casos de ameaça ou até mesmo diante de um linchamento em curso, a polícia tem a função de impedir a ação e proteger a vítima de linchamento, evitando que ela seja agredida. Por fim, quando um linchamento ocorre, a polícia também tem um papel fundamental para esclarecer e apontar quem foram os agressores, impedindo que eles fiquem impunes.
Observatório: De que forma as transformações socioeconômicas podem afetar os linchamentos?
Ariadne: Os dados da pesquisa apontam que a maior parte dos casos de linchamentos acontece em áreas periféricas da cidade, são locais com grande demanda e que raramente são atendidas adequadamente pelo Estado, nos quais muitas das necessidades são resolvidas de maneira privada, em uma espécie de autogestão (é a lotação clandestina, a vizinha que olha os filhos da colega que vai trabalhar, o gato de luz no poste etc). Os direitos que existem no papel, ali não chegam como fato, criando a impressão de que direitos são bens escassos e em disputa, privilégios para poucos e não um valor universal.
As transformações socioeconômicas que testemunhamos na última década envolvem a diminuição das desigualdades econômicas, um certo aumento na escolaridade, e aumento considerável do poder de consumo, mas isto não significou melhora na qualidade dos serviços públicos prestados. Precisamos ir muito além do que temos hoje para garantir que as pessoas confiem no Estado e nas suas leis.
Observatório: Como você enxerga a atuação da imprensa na cobertura desses acontecimentos?
Ariadne: A imprensa noticia os casos de linchamento e isto é importante para que possamos ter uma dimensão do fenômeno, uma vez que não dispomos de dados oficiais sobre ele. No entanto, não basta noticiar, é preciso problematizar, discutir os temas que um linchamento traz à tona, como a questão da justiça, do respeito às leis e à dignidade das pessoas.
Os jornalistas, principalmente aqueles que se propõe a opinar sobre estes casos, têm uma reponsabilidade muito grande na medida em que se colocam no papel de formadores de opinião. O jornalismo policialesco, que faz sensacionalismo a partir de casos de violência, é um modelo que existe no rádio há muito tempo, chegou aos jornais populares na década de 1980 e finalmente à TV no começo dos anos 1990. Comentários como o da Sheherazade não são novidade, a novidade aqui está no fato deste tipo de jornalismo chegar ao que seria o horário nobre, o principal jornal da emissora, aquele do qual se espera uma certa credibilidade.
No caso da morte da Fabiane, em específico, foi questionado o papel da página Guarujá Urgente, um site que parece seguir o modelo policialesco, mas sem o verniz de jornalismo, pois divulgou um boato sem apurá-lo, propagando o pânico entre os moradores daquela comunidade. Atualmente há um debate a respeito do papel da internet, na qual temos acesso à muitas informações, mas poucas condições de avaliar a credibilidade e veracidade do que lemos. Precisamos ser melhor educados para uma leitura crítica.
Observatório: O que podemos esperar da sociedade?
Ariadne: É difícil saber o que esperar, a sociedade é dinâmica, as coisas mudam com muita velocidade. Em nossos registros, os casos de linchamento apresentavam declínio na primeira década dos anos 2000 e agora nos deparamos com este problema novamente. O anseio é de que possamos nos tornar uma sociedade em que o respeito à lei e as pessoas seja garantido e, quando houver desrespeito, as instituições sejam capazes de atuar a contento.
Observatório: Os casos que estudou tem alguma característica em comum?
Ariadne: Os casos de linchamento seguem sempre um roteiro muito similar. A partir da notícia de um crime ou delito considerado inaceitável (que pode ser real ou apenas um boato), a culpa é atribuída a alguém (sem existência de uma apuração), forma-se uma turba de pessoas indignadas que aos gritos solidificam as opiniões em uma narrativa única, de quem o incriminado é um elemento mal e perigoso. A partir de então, tem-se início a perseguição do acusado, que normalmente resiste e tenta fugir, mas é incapaz de se desvencilhar da multidão e acaba sendo capturado, muitas vezes imobilizado, e passa a ser vítima de todo tipo de violência.
O objetivo da multidão é fazer o acusado sofrer, infligir a dor por meio de instrumentos variados como paus, pedras, facas, armas de fogo, além de chutes, socos e pisoteamento, não apenas para exterminar, mas também para deformar, denegrir e despojar o corpo de qualquer humanidade ou respeito à integridade. Muitas vezes, mesmo findada a vida, a crueldade se manifesta de maneira simbólica e dramática sobre o corpo falecido por meio do vilipendio do cadáver: estupradores têm o pênis decepado, ladrões perdem as mãos, pessoas cospem sobre o morto etc. Após a ação forma-se uma espécie de vínculo entre os participantes e um acordo tácito que impõe o silêncio sobre os eventos ocorridos. O linchamento se torna então um precedente, um fato que visa regular condutas e manter uma ameaça implícita a quem vier a quebrar os códigos locais. Estas são as etapas que identifiquei na pesquisa por meio da leitura de relatos dos casos, é claro que nem todos seguem o mesmo roteiro, pois muitas vezes a polícia ou outras pessoas conseguem agir e impedir a ação.