A luta dos negros pela valorização de sua cultura no Brasil
Uma estilista empreendedora, um quadrinista premiado, uma empresária do mundo do rap e a primeira mulher negra a presidir o Centro Acadêmico de direito da USP: conheça histórias de pessoas negras que, apesar dos desafios, conseguiram conquistar espaços de destaque na sociedade com trabalhos relacionados à diversidade e hoje são inspiração para outras pessoas
por Artur Ferreira
Mais de metade (55,8%) da população brasileira é negra: 9,3% dos brasileiros se autodeclaram pretos e 46,5%, pardos. Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A população que se autodeclara branca representa 43,1% do total no país.
E, pela primeira vez no Brasil, negros são maioria no ensino superior público, representando 50,3% dos alunos em universidades e faculdades públicas. Além disso, os índices de analfabetismo entre pretos e pardos diminuiu para 9,1%.
Apesar desses números, problemas sociais como a desigualdade e o racismo são empecilhos para os negros progredirem em suas carreiras e terem maiores índices de escolaridade e qualidade de vida.
De acordo com os dados da pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, do IBGE, em média, a renda de um trabalhador negro equivale a 57% do salário de um trabalhador branco. E a situação se torna pior ainda quando se trata da renda da mulher negra, equivalente a 44% do salário de um homem branco.
Para o sociólogo e professor da Unicamp Mário Medeiros, é visível a desigualdade que a população negra enfrenta no país. Ele afirma que são “aqueles que têm menos escolaridade, menores salários, maiores chances de falecer por morte violenta e ação policial, e habitam os piores espaços”.
Mesmo quando se trata da violência contra policiais, os negros são os mais atingidos. O Anuário Brasileiro de Segurança 2019 revelou que 51,7% dos policiais assassinados no Brasil em 2018 eram negros.
Apesar de ainda sofrerem com tantas violações de direitos, os negros tiveram e continuam tendo um papel fundamental na cultura brasileira. “A população preta e parda foi e é formadora da sociedade brasileira”, afirma Medeiros.
“A construção de nossas cidades, a defesa de nossos territórios, a modificação de nossa língua portuguesa. A luta por direitos civis e de igualdade formal e real entre os cidadãos tiveram pessoas e demandas negras no seu foco”, completa.
Além disso, o sociólogo explica que cada vez mais historiadores e cientistas sociais têm estudado a história negra no Brasil e a diáspora africana. E, para ele, o empreendedorismo negro hoje tem sido uma das principais frentes para a valorização e autoafirmação do povo negro. Entre exemplos citados pelo professor universitário estão a Feira Preta, o Instituto Geledés e a ativista e estilista Ana Paula Xongani.
Empreendedora e estilista
A empreendedora Cristina Mendonça, sócia-fundadora da Xongani, marca de moda afro-brasileira, fala com orgulho sobre sua idade (61) e o quanto se sente bem com seu trabalho. Cristina fundou junto com a filha, Ana Paula Xongani, há 10 anos, o próprio ateliê. O objetivo era fazer roupas e acessórios tipicamente afro-brasileiros, com tecidos africanos.
Cristina conta que tudo começou quando Ana Paula viajou para a África, estava estudando as relações entre o Design de Interiores e a cultura Africana, e se encantou com tantas cores, texturas e formas de compor e criar roupas que se diferenciavam totalmente de tudo que ela havia visto antes.
A mãe brinca dizendo que pediu para a filha largar todas as roupas que havia levado e comprar o máximo de tecidos da região que pudesse.
Hoje, em seu ateliê, localizado na Zona Leste de São Paulo próximo à estação de metrô Artur Alvim, além das diversas plantas, as cores tipicamente africanas dominam todo o ambiente.
A estilista explica que antes de trabalhos como os da Xongani, que produz, além de turbantes e acessórios já conhecidos pela comunidade afro-brasileira, vestidos, jaquetas e calças – todas inspiradas nas roupas africanas -, eram poucas as formas de um homem ou mulher negra expressar sua ancestralidade através de sua roupa.
A palavra Xongani, pertencente ao idioma Changane, língua do sul de Moçambique, significa “se arrumem”, “se enfeitem” ou “fiquem bonitas”.
Hoje, Cristina afirma que o empreendedorismo negro vem crescendo no Brasil e que já ouviu em diversas ocasiões que o trabalho dela e da filha é uma inspiração.
Um dos carros chefes da Xongani são os vestidos de festa sob encomenda, principalmente os vestidos de noiva que misturam a estética do vestido de noiva branco convencional com o colorido dos tecidos africanos. “Acredito que sejamos a única marca com essa proposta”, diz Cristina.
Ela também conta que sempre foi incentivada, no seio familiar, a valorizar sua cor de pele e sua ancestralidade, e que isso a ajudou a não se deixar abalar diante do racismo que enfrentou fora de casa.
Quadrinista e ilustrador
*Marcelo D’Salete é formado em Artes Plásticas, autor de histórias em quadrinhos, ilustrador e professor.
No mundo dos quadrinhos, Marcelo já ganhou dois prêmios, o HQMix 2018 por Angola Janga, história produzida durante 11 anos sobre o Quilombo dos Palmares, e o Eisner, maior prêmio de quadrinhos do mundo, com a sua obra ‘Cumbe’.
Quando questionado sobre as inspirações para o seu trabalho, ele cita autores como Laerte e Robert Crumb, revistas como ‘Chiclete com Banana’ e ‘Piratas do Tietê’ e mangás japoneses como o ‘Lobo Solitário’ e ‘Akira’.
Para a produção de seus livros mais recentes, Marcelo fez uma pesquisa profunda sobre o período colonial e a resistência negra no período da escravidão.
Marcelo explica que o Brasil é um dos países com a maior produção acadêmica sobre o seu período colonial e diz que foi um processo de montar um quebra-cabeça para encontrar histórias interessantes para serem contadas no formato de ficção. “Considero que é importante fazer com que esse tipo de produção acadêmica chegue a um público maior”. O quadrinista também considera fundamental que autores negros falem sobre essa realidade.
Nascido em uma família humilde e hoje um autor premiado, Marcelo dispensa o discurso de meritocracia. Para ele, “é um discurso que serve a uma certa ‘aristocracia’ no Brasil” e não se pode garantir que uma pessoa que não teve livros ou acesso à educação básica de qualidade vá conseguir competir em um vestibular com quem teve condições de vida muito mais favoráveis. Segundo Marcelo, sua trajetória contou com o apoio de diversas pessoas.
Advogada e empresária no mundo do rap
Eliane Dias é advogada, CEO da produtora e gravadora Boogie Naipe e empresária do grupo de rap Racionais MC’s.
Mãe de dois filhos, ela passou um período fora do mercado de trabalho para se dedicar à maternidade, até que decidiu voltar a estudar. Em 2003, começou a faculdade de Direito, profissão que não abandonou mais.
Em 2013, foi convidada para trabalhar no grupo Racionais MC’s, do qual o marido, Mano Brown, faz parte.
De acordo com a advogada, ela percebeu que precisava organizar os direitos autorais do grupo, já que essa é também a herança de seus filhos.
O que era para ser um trabalho temporário dura até hoje, e brinca dizendo: “estou quase terminando de organizar tudo”.
Antes de se tornar empresária do grupo de rap, ela atuou por três anos e meio como coordenadora do SOS Racismo, um serviço de orientação contra a intolerância e a discriminação racial e cultural, dentro da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp).
Eliane conta que gostava muito desse trabalho, mas foi vítima de machismo enquanto ocupava o cargo. Em três anos e meio, ela não teve uma cerimônia oficial de nomeação para o cargo. Após sua saída, em poucos dias o coordenador seguinte teve sua cerimônia.
A empresária ficou abalada pelo ocorrido, mas afirma ter se recuperado, e estar focada atualmente em sua produtora e no ativismo.
Eliane também relata que um dos desafios ao entrar no mundo do rap foi se fazer ser escutada em um meio que ainda é machista. “Eu fiz o mercado me respeitar”. Ela afirma também que mulheres têm tido cada vez mais voz em mercados em geral: “o momento é feminino e vão ter que aceitar!”.
A empresária cita que a mulher negra acaba sempre tendo que se sobressair mais que a mulher branca, devido tanto ao machismo quanto ao racismo nas relações sociais e de trabalho.
Eliane também não gosta do conceito de meritocracia, principalmente quando se trata da pessoa negra no mercado de trabalho. “É um discurso de gente racista e covarde. Ninguém consegue nada sozinho”.
Ela desabafa ao dizer que se sente cansada em alguns momentos devido à política brasileira e a casos recentes de racismo e violência contra o povo negro, porém, diz se manter confiante na causa negra no Brasil.
Eliane também afirma que para recarregar as baterias é importante lembrar dos bons momentos da vida. Uma de suas formas para se inspirar é “ver uma criança negra dando risada”, diz. “A minha primeira inspiração é viver”, conclui.
Presidente do Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da USP
Letícia Chagas é estudante de direito na Universidade de São Paulo (USP), na capital paulista, e está cursando o segundo ano da faculdade. Nascida em Campinas, no interior do estado, Letícia assumiu este ano a presidência do Centro Acadêmico (CA) XI de Agosto, tornando-se a primeira mulher negra a ocupar esse cargo.
A atual presidente do CA nem sempre se considerou uma mulher negra. Filha de pai negro e mãe branca, durante muitos anos passou por processos estéticos para alisar seu cabelo.
Foi só através do processo de aprender a amar a própria aparência e, principalmente, seu cabelo, black power, que surgiu o desejo de pesquisar mais sobre o movimento negro, as questões raciais e a história do povo negro brasileiro.
O direito surgiu em sua vida na época do vestibular. Sempre quisera cursar história na Unicamp, em Campinas, e conta que durante todo seu ensino médio em uma ETEC se preparou para passar no vestibular de uma universidade pública.
Uma de suas principais inspirações era sua irmã mais velha, que havia sido a primeira pessoa a família a cursar uma universidade pública.
Quando percebeu que havia passado tanto em história na Unicamp quanto em direito na USP, teve que fazer sua escolha. Ela optou pela USP. Começava então uma nova etapa de sua vida, com muitos desafios, entre eles o de sair de sua cidade natal. “Foi um ato de coragem ir para lá sozinha”.
Letícia conseguiu uma vaga na moradia estudantil da Faculdade de Direito, mas encontrou o local em condições precárias de estrutura. Atualmente, em sua gestão no CA, reformar a Casa do Estudante virou uma de suas prioridades.
Para chegar à presidência do Centro Acadêmico, Letícia precisou encarar os desafios do período eleitoral. Ela e alguns colegas criaram o coletivo Travessia, comandado principalmente por mulheres negras.
O objetivo era tornar o Centro Acadêmico mais diverso e representativo, tornando o ambiente da faculdade um lugar que relembre a história do povo negro no Brasil. Além disso, os discursos de sua chapa sempre debateram sobre finanças.
As polêmicas vieram quando a oposição tentou desclassificar seus discursos através de distorções ideológicas.
Hoje, a presidente do CA sonha em ser professora e pretende se dedicar à vida da política universitária. Deseja contribuir para mudanças positivas no ambiente acadêmico e fora dele.
*A entrevista com o autor foi transcrita a partir de um áudio enviado pelo mesmo.
A luta dos negros pela valorização de sua cultura no Brasil – Human Rights Contents
18/02/2020 @ 12:35
[…] Mais de metade (55,8%) da população brasileira é negra: 9,3% dos brasileiros se autodeclaram pretos e 46,5%, pardos. Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A população que se autodeclara branca representa 43,1% do total no país. E, pela primeira vez no Brasil, negros são maioria no ensino superior público, representando 50,3% dos alunos em universidades e faculdades públicas. Além disso, os índices de analfabetismo entre pretos e pardos diminuiu para 9,1%. Apesar desses números, problemas sociais como a desigualdade e o racismo são empecilhos para os negros progredirem em suas carreiras e terem maiores índices de escolaridade e qualidade de vida. Continue lendo… […]
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