Além da deficiência
Como pessoas com limitações físicas ou intelectuais estão ingressando no mercado de trabalho
Acordar cedo, pegar um ônibus ou entrar no carro, ir trabalhar. Estas são ações que muitas pessoas fazem todos os dias, às vezes quase de forma automática. Para aqueles que têm uma deficiência, no entanto, os desafios de ter uma rotina assim são muitos. A começar pela própria conquista de uma vaga no mercado de trabalho.
De acordo com o Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 45,6 milhões de pessoas no país têm algum tipo de deficiência, seja ela visual, auditiva, motora e mental ou intelectual. O número representa 23,9% da população total do país ou quase uma em cada quatro pessoas. Mas apenas 19,4 milhões de pessoas com deficiência com 15 anos ou mais estão empregadas. Isso apesar de o trabalho ser um direito humano universal e de a Constituição Federal do Brasil proibir em seu Artigo 7º a discriminação na remuneração e nos critérios de admissão dos trabalhadores com deficiência.
Outra lei que tenta garantir a inserção de pessoas com deficiência no mercado é a chamada Lei de Cotas, criada em 24 de julho de 1991, e que estabelece que empresas com 100 ou mais funcionários são obrigadas a preencher de dois a cinco por cento dos seus cargos com pessoas com deficiência e reabilitadas. De 100 a 200 funcionários, a companhia deve destinar 2% de suas vagas para essas pessoas; de 201 a 500 empregados, deve reservar 3% das vagas; de 501 a 1.000, 4%; e a partir de 1.001, 5%.
A Lei de Cotas representou um avanço, elogiado por especialistas e por quem tem deficiência, mas não resolveu o problema, apenas o amenizou. Um dos motivos para isso é que a desigualdade de oportunidades no mercado de trabalho é, frequentemente, resultado de uma desigualdade que acompanha a pessoa desde que ela nasce – no caso de deficiências congênitas – ou desde que ela adquire a limitação.
Mais de 60% das pessoas com deficiência não têm nem mesmo o ensino fundamental completo e 19,3% são analfabetas. Os números são bem diferentes para quem não possui nenhuma deficiência: 38,2% e 9,4%, respectivamente. Estes dados revelam a dificuldade da educação brasileira em atender àqueles que têm necessidades especiais.
Apesar dos obstáculos, há quem consiga dar um jeito de estudar e conquistar uma colocação no mercado de trabalho. Rejane Olimpio, de 35 anos, é um exemplo disso. Nascida com má formação dos membros inferiores, ela sempre estudou e aos 19 anos decidiu que era hora de procurar um emprego. “No começo, eu enfrentava muito preconceito. Às vezes, alguém me indicava para uma vaga e quando eu chegava na empresa diziam que as vagas já estavam preenchidas, mas eu sabia que não era verdade”, conta. Mas ela não se deixou desanimar. Após diversas tentativas, conseguiu um emprego na área de telemarketing e a partir daí não passou mais nenhum período muito longo sem trabalhar.
A vontade de fazer um curso superior também não saía da cabeça de Rejane e ela disse a si mesma que conseguiria. Tentou primeiro o curso de Radiologia, por atuar na época em uma empresa do ramo da saúde e ter sido incentivada a estudar na área. Viu, no entanto, que aquela não era sua vocação e parou no primeiro semestre. Depois, entrou no curso de Direito, um sonho antigo. Mas se deparou com tantas dificuldades que acabou não o concluindo. “A faculdade não era nada acessível: não tinha banheiro adaptado, nem vaga reservada no estacionamento, nem nada que ajudasse na acessibilidade. Estudei lá por três anos e saí”.
Após duas tentativas malsucedidas de cursar o ensino superior, Rejane procurou meios alternativos para conseguir se formar. Encontrou como opção fazer a distância o curso de Segurança Pública e formou-se no ano passado, pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), entrando no grupo dos 6,7% dos portadores de deficiência que possuem nível superior. Agora, vai perseguir o sonho de passar em um concurso público para trabalhar na polícia.
Outro que não deixou que a deficiência o impedisse de estudar foi Giuliano Felix Bueno, 35, graduado em Gestão de RH. Com baixa visão congênita, ele teve que aprender desde cedo a se virar para garantir sua independência. Mas admite que contou com a ajuda dos colegas de escola e da faculdade para conseguir estudar. “Eu fiz até o ensino médio em escola normal. Meus colegas ditavam as matérias e as questões das provas para mim. Na faculdade, foi a mesma coisa: os colegas ditavam a matéria e eu fazia as provas em dupla”.
Mesmo pertencendo a um grupo restrito de pessoas com deficiência que têm ensino superior e já tendo trabalhado em diversas funções e empresas, Bueno está desempregado desde dezembro de 2014. E ele suspeita do porquê: “As empresas têm procurado pessoas com deficiências leves, como visão monocular (quando se perde a visão de um dos olhos) ou perda de apenas uma porcentagem da visão, essas coisas, e a minha deficiência é moderada”. Para trabalhar, ele precisa que as companhias realizem algumas adaptações, como configurar os computadores com fontes ampliadas e lupas, e criar rotinas que não incluam, por exemplo, excesso de leitura – já que isso é especialmente cansativo para alguém com baixa visão.
Apesar da dificuldade para conseguir uma nova colocação no mercado de trabalho, Bueno não é do tipo que reclama da vida. Pelo contrário, ele se orgulha em dizer que tem uma mobilidade muito boa, a ponto de as pessoas que andam com ele às vezes até esquecerem que ele não enxerga como elas, e deixa claro que a deficiência nada mais é do que uma limitação, algo que faz parte da vida de qualquer pessoa, com ou sem deficiência. “Eu tento passar para as pessoas que eu tenho uma deficiência, não sou uma deficiência”.
Os entraves para a inclusão
De acordo com Carolina Ignarra, consultora em contratação de pessoas com deficiência, há três grandes obstáculos para a inclusão desse grupo no mercado de trabalho: despreparo das empresas, falta de formação adequada dos profissionais com deficiência e desconhecimento da Lei de Cotas.
O primeiro ponto diz respeito ao fato de que a maioria das empresas não tem um departamento de recursos humanos ou gestores preparados para incluir de forma natural pessoas com deficiência. “Falta conhecimento, informação mesmo, sobre como integrar essas pessoas. Tanto que 61% dos profissionais com deficiência saem da empresa em até três meses – o que é um número bem alto”, aponta.
Segundo Carolina, um erro comum das empresas é tentar tratar seus profissionais com deficiência de forma “igual demais”, ou seja, em vez de realizarem adaptações, como contratar um intérprete de libras para traduzir o conteúdo de reuniões para funcionários surdos, elas agem como se não houvesse ninguém com uma necessidade específica ali. A intenção de tratar todo mundo igualmente até pode ser boa, mas na prática a pessoa com uma deficiência não conseguirá trabalhar sem as ferramentas adequadas, o que vai gerar frustração.
O segundo obstáculo, já mencionado nesta reportagem, é a baixa escolaridade da maioria das pessoas com deficiência. Como as empresas estão cada vez mais exigentes na hora de contratar, quem tem poucos anos de estudos fica sempre em desvantagem, mesmo que essa condição não seja uma escolha.
“Algumas empresas até já estão começando a se flexibilizar e a gerar um desenvolvimento muito positivo, ao aceitarem contratar pessoas com deficiência que têm baixa escolaridade, por entenderem que isso é consequência de uma educação pouco acessível física e culturalmente para elas, e ao exigirem que esses novos funcionários se qualifiquem”, afirma Carolina.
Assim, quando essas pessoas conseguem entrar no mercado de trabalho, elas também voltam muitas vezes a estudar, o que traz benefícios para o contratado e para quem contrata.
Por fim, o terceiro entrave citado pela consultora é a falta de entendimento da Lei de Cotas. Se por um lado as empresas com mais de 100 funcionários entendem que são obrigadas a destinar parte de suas vagas para profissionais com deficiência, por outro elas frequentemente não refletem sobre o porquê dessa obrigação – que é incluir essas pessoas. Oferecer um emprego é uma coisa, criar um ambiente de inclusão em que a pessoa com deficiência poderá se sentir parte de um grupo e se desenvolver junto com ele é outra.
Da parte dos próprios contratados também há certo desconhecimento da Lei. De acordo com Carolina, há casos em que o funcionário com deficiência acredita que por ter cotas a seu favor não precisa se esforçar tanto quanto deveria, acreditando que não pode ser demitido, quando, na verdade, ele é um profissional como os outros e pode, sim, ser desligado da empresa caso não execute seu trabalho de forma adequada.
“A verdade é que a inclusão é uma questão de responsabilidade compartilhada. Ela requer atitude do poder público, das empresas e das próprias pessoas com deficiência”, conclui a consultora, que é cadeirante.
O Terceiro Setor como aliado
Nas últimas décadas, o Brasil avançou na criação de oportunidades para pessoas com deficiência. A maior presença delas na rede de ensino regular é um exemplo disso. Hoje, mais de 90% das crianças e adolescentes entre seis e 14 anos frequentam a escola, segundo o Censo 2010 do IBGE. Mesmo assim, ainda há exclusão, especialmente quando a pessoa tem uma deficiência severa. Para tentar mudar este cenário, organizações da sociedade civil sem fins lucrativos entram em ação.
Após perder um filho com paralisia cerebral, a psicóloga Suely Katz decidiu lutar pela inclusão social e no mercado de trabalho de pessoas como o filho dela. Assim, nasceu em 2007 a Associação Nosso Sonho, que hoje atende 45 pessoas com paralisia cerebral (PC) – a maioria com grau severo.
Na associação, crianças e jovens com a deficiência neuromotora encontram profissionais das áreas de fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, psicologia, arte terapia e pedagogia, além de equipamentos adequados para pessoas com PC. Tudo sem nenhum custo para o paciente.
“Tem gente que chega aqui com 16 anos ou mais, vindo da escola regular, e que não aprendeu nada em todos esses anos, nem mesmo a ler e escrever”, conta Suely, mostrando que estar matriculado em uma escola regular não é sinônimo de inclusão. “Pessoas com paralisia cerebral de grau severo precisam de apoio profissional e de equipamentos adequados para desenvolverem seu potencial”, completa.
Relembre a participação de Suely Katz no programa de rádio do Observatório
Além de oferecer aulas e oficinas, a Nosso Sonho cria projetos para que seus pacientes tenham a oportunidade concreta de trabalhar. “As empresas têm uma enorme resistência em contratar pessoas com paralisia cerebral. Muitos jovens atendidos aqui hoje mandavam currículos, passavam nas primeiras etapas, mas na hora da entrevista eram eliminados. Ouviam que não tinham ‘o perfil da vaga’. Alguns chegaram aqui em depressão por isso. Achavam que era o fim da linha, que não conseguiriam uma colocação”, conta. Para ajudar essas pessoas, a associação começou a criar projetos pensados especialmente para elas.
Um desses projetos se chama ‘Transformando cheiro em cor’ e é voltado para jovens que, além da paralisia cerebral de grau severo, têm deficiência intelectual. A partir dele, uma empresa importadora de perfumes contratou seis jovens para trabalharem com a identidade visual dos produtos. O processo funciona da seguinte forma: antes de lançar um perfume no mercado brasileiro, a empresa leva o produto até a associação, onde alguém conta aos jovens contratados a história daquela fragrância. Após ouvirem a história, eles sentem o cheiro do perfume e pintam de acordo com as sensações que a fragrância lhes transmite. Depois, esta arte criada pelos pacientes da associação é transformada na arte usada para a embalagem do produto e os itens de divulgação.
Outra iniciativa consistiu em propor que uma empresa contratasse quatro jovens atendidos pela Nosso Sonho para criarem um informativo. A proposta foi aceita e a partir dela nasceu o primeiro jornal do mundo feito totalmente por pessoas com paralisia cerebral. O trabalho deu tão certo que até representou o Brasil no Congresso de Comunicação Alternativa em Barcelona. Depois, o jornal virou revista, com o nome de Bem-vindo A.Nó.S., e hoje tem uma equipe de 10 pessoas – todas com paralisia cerebral de grau severo, mas com cognitivo preservado, isto é, sem deficiência intelectual. Para produzirem a revista, os jovens usam ferramentas adaptadas, presentes na Nosso Sonho.
Um dos jovens envolvidos no projeto da revista desde o início é Jony da Costa, 27, hoje coordenador da publicação. Ele é um dos exemplos citados por Suely de jovens que antes de chegarem à ONG tentaram entrar no mercado de trabalho, mas que tiveram apenas respostas negativas. “Eu tentei várias vezes uma colocação, mas sempre escutava que não tinha o perfil. Eu nem sei que perfil é esse e olha que eu tentei várias áreas”, desabafa Costa.
Hoje, além de coordenar a equipe da revista, ele se dedica a outra paixão: escrever peças de teatro. “Eu comecei o teatro há nove anos, como um hobby, mas hoje eu quero me especializar na área”, diz. Já é autor de duas peças: ‘Eficiência’, que conta a história da deficiência e foi montada por colegas da turma de teatro, e ‘O pássaro sem cor’, que ele escreveu diretamente para os pacientes da Nosso Sonho.
Para Costa, a deficiência não pode ser um empecilho para realizar sonhos. É isso que ele tenta mostrar a seu ainda pequeno público. “As coisas estão evoluindo, a questão da deficiência está sendo discutida. Mas ainda falta enxergar as pessoas com deficiência simplesmente como pessoas e não como deficientes”, afirma. E ele está fazendo a parte dele para mudar isso.