Donas de si: empreendedoras negras aliam inovação e ancestralidade
Empreendedoras negras apostam em produtos inovadores que valorizam sua ancestralidade e ajudam a empoderar a população negra. Conheça iniciativas que envolvem materiais escolares, livros e brinquedos focados na representatividade
Por: Isabela Alves
De acordo com a pesquisa Global Entrepreneurship Monitor (GEM), de 2018, 40% dos empreendedores brasileiros são pretos ou pardos.
Outro estudo, chamado Empreendedorismo Negro no Brasil, feito pela PretaHub em 2019, apontou que as mulheres representam 52% dos empreendedores negros brasileiros.
Dos empreendedores negros, 81% se identificam como pardos, 69% têm menos de 40 anos, 40% moram na região Sudeste e 49% estudaram até o Ensino Médio.
Passados mais de 130 anos após a abolição da escravatura no Brasil, a população negra ainda luta contra o racismo estrutural e a falta de oportunidades no mercado de trabalho.
Mesmo diante de tantas vulnerabilidades, empreendedoras negras conseguem criar produtos inovadores que valorizam sua ancestralidade.
De professora a criadora da 1ª papelaria inclusiva do país
Ana Claudia Silva, de 36 anos, é formada em pedagogia e passou 17 anos trabalhando em sala de aula. Após ter passado por um período de depressão profunda, ela decidiu fazer uma transição de carreira como uma maneira de se curar.
Foi assim que nasceu a Afra Design, a primeira papelaria inclusiva do país. Vendo a grande lacuna no mercado de materiais escolares com representatividade negra, ela enxergou ali uma oportunidade para criar algo inovador.
“Como criança e agora como mãe de três filhos, sempre procurei por materiais que se aproximavam dos meus atributos físicos. Após abrir o negócio, eu encontrei com uma felicidade que não tive durante a infância. As crianças olham o material e gritam ‘esse é meu’ com um brilho no olhar”, conta.
A linha de materiais atende de crianças a adultos, e possui também mochilas e vestuário. Nos produtos, Ana Claudia procura transmitir a sua identidade ancestral.
“Muitas pessoas que consomem os produtos afirmam que se tivessem tido acesso a esse material, provavelmente teriam muito mais motivação para estudar”, afirma.
Ana Cláudia ressalta que esta não é apenas uma questão de vendas, e sim de representatividade, pois, com uma capa de caderno diferente, a vida de muitas pessoas pode ser transformada.
Nas páginas, é possível encontrar a história do continente africano e diversos símbolos desta cultura tão rica.
Após a finalização da compra, os clientes deixam uma avaliação.
Ana Claudia afirma que todas as mensagens são positivas, que expressam gratidão e apontam que o negócio está no caminho certo.
“Estamos formando uma nova geração que é mais empoderada. Eles se enxergam e se amam da maneira que são. Precisamos de uma geração com mais equidade, antirracista, que respeite a diversidade”, diz com emoção.
O processo criativo para criar os materiais vem de uma pesquisa extensa. Ana Claudia contrata pessoas de maneira terceirizada para realizar os designs e também a gráfica, sempre dando preferência pela contratação de mulheres pretas.
A inspiração para cada desenho e forma vem dos seus sonhos e ideais.
“A ilustradora modela os personagens com as características que eu tenho em mente e cria o personagem da maneira que imaginei, e todas as cores são inspiradas em alguma bandeira ou simbologia africana”.
É válido ressaltar que quando o produto é colocado à venda, cada pessoa envolvida no projeto recebe uma percentagem.
Em breve, a iniciativa completará três anos de funcionamento e, apesar de estarem há pouco tempo no mercado, eles já são reconhecidos.
No entanto, com a chegada da pandemia e a economia desfavorável, Ana acredita que ainda há muito o que avançar. Com a loja online disponível, ela sonha em abrir uma sede física logo.
Por ser uma empreendedora negra, ela afirma que muitas pessoas enxergam o seu negócio apenas como artesanal e que não chegará a ser uma grande empresa.
No entanto, ela tem sonhos grandes: quer ser reconhecida internacionalmente e criar uma rede de revendas em todo o país.
“Se eu não me enxergar como uma grande empresária, as pessoas também não vão me enxergar como uma”, afirma. Para alcançar seus objetivos, ela está estudando o campo de atuação e o mercado.
Ana Claudia diz que a partir da Afra Design, ela conseguiu se encontrar e realizar muitos sonhos que estavam guardados dentro do seu coração. Agora, ela também realiza palestras para motivar outras empresárias como ela.
Para conhecer mais sobre a marca, acesse: useafra.com.
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A livraria que destaca autoras negras e suas próprias narrativas
Ketty Valencio, de 38 anos, é graduada em Biblioteconomia e Ciência da Informação. Seu amor pela literatura surgiu desde a infância, já que a sua família costumava lhe contar muitas histórias.
A primeira vez que se viu representada nos livros foi através de uma narrativa dos itans, (conjunto de mitos, canções, histórias e outros componentes culturais dos iorubás) e das yabás, orixás femininas.
“A minha sensação foi de admiração, pois nesse período eu achava que todas as pessoas eram pretas. Na época, eu era uma criança que quase não tinha contato com pessoas brancas e com isso as vivências e saberes que fazem parte da população negra eram situações que tinham uma grande valorização no meu cotidiano”, relata.
Ketty teve então a ideia de reunir obras que a representassem de uma forma inspiradora e verdadeira, e a toda a população brasileira. Assim surgiu a Livraria Africanidades, que divulga escritoras negras.
O acervo possui grande variedade de gêneros literários. Há uma curadoria para representar a interseccionalidade de autoras nacionais e internacionais, como idade, sexualidade e outros fatores para mostrar o quanto as pessoas negras são plurais.
Na livraria é possível encontrar as obras de escritoras como Alice Walker, Angela Davis, Jarid Arraes e Maria Firmino. Os livros mais procurados falam sobre poesia, afrofuturismo e feminismo.
Valencio afirma que as mulheres negras são as pessoas mais excluídas da vida social e por isso essa realidade também está refletida no mercado editorial.
“Não podemos esquecer que a maioria das editoras são comandadas pela branquitude. E, mesmo com a grande invisibilidade, as mulheres são as pessoas que mais produzem literatura nacional”.
Ela ainda reforça que no Brasil existem duas leis obrigatórias (nº 10.639/03 e nº 11.645/08) para o ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas e indígenas nas redes públicas e particulares, porém essas leis não são efetivas.
Para ela, as instituições brasileiras contribuíram com o apagamento histórico, além de ajudar na criação de estereótipos para populações que são consideradas minorias sociais.
“Daí eu pergunto, por que um dos maiores escritores do Brasil, Machado de Assis, foi embranquecido? Por que até hoje a escritora Carolina Maria de Jesus possui a sua narrativa questionada?”
Para ela, é necessário que a palavra seja espalhada: com pessoas lendo livros de autoras negras em locais públicos, com a indicação das obras nas grades curriculares e também ao convidar autoras negras para participarem de mesas em eventos.
“É importante incentivar que os leitores sejam protagonistas das suas próprias narrativas”, conclui.
Para conhecer a livraria, acesse: livrariafricanidades.com.br/.
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A loja que vende bonecas negras e leva autoestima para as crianças
As irmãs Joyce, Maria Cristina e Lucia Venancio nunca se viram representadas nos seus brinquedos na época de crianças. A avó materna, sensibilizada com essa situação, passou a criar bonecas com as características delas.
“Quando eu ia em uma loja de brinquedo, só as bonecas brancas eram bonitas. As bonecas negras eram estereotipadas com boca grande, tecido de qualidade inferior e com avental”, conta Joyce, diretora comercial da Loja Preta Pretinha e presidente do Instituto Preta Pretinha, que promove palestras, oficinas e exposições sobre inclusão.
A avó foi fundamental para que as meninas crescessem com orgulho de sua cor de pele e com consciência de que a educação seria fundamental em suas vidas. Foi também com a avó que elas aprenderam que precisariam enfrentar diversas barreiras e preconceitos por serem negras. Com o alerta, também vinha o acolhimento, pois ela fazia questão de ressaltar que as netas eram bonitas e inteligentes.
Quando chegaram na fase adulta, as três seguiram carreiras diferentes. Apenas em 2000, elas se uniram para realizar um desejo que pulsava desde a infância: criar uma loja de bonecas inclusivas.
Apesar de trabalhar com o que ama, Joyce conta que para ser uma empreendedora no Brasil é preciso estar preparada para matar um leão por dia: “Um dos desafios é que a cada dia surge um desafio novo e você precisa provar que é boa o tempo todo. Além disso, mesmo em posições de destaque, as mulheres negras são desvalorizadas e recebem menos”, afirma.
Entre as peças que podem ser encontradas na loja estão bonecos negros com dreads, trança raiz e black power.
É válido ressaltar que os brinquedos são feitos com todo o cuidado para que não sejam estereotipados, principalmente no caso das bonecas negras.
Além da representatividade negra positiva, as irmãs decidiram ir além e também criar brinquedos com síndrome de Down, cegos, amputados, com vitiligo, lábio leporino, obesos e representando diferentes culturas, como indígenas e muçulmanos.
Os preços variam de R$ 10 a R$ 200 e a loja também produz bonecos personalizados, que são feitos sob medida, e com preços negociáveis. Para conhecer mais sobre a iniciativa, acesse o site da loja.
“Os negros precisam ter muita determinação e coragem, e muitas vezes precisam começar o negócio sem nenhum recurso. Tem que ter força de vontade e perseverança para alcançar os seus sonhos”, conclui.
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