Cyda Baú: do quilombo para os palcos, onde mostra luta das mulheres negras
Bisneta de escravizados e nascida em um quilombo, Cyda Baú começou a trabalhar como empregada doméstica aos 12 anos e precisou enfrentar muitos desafios até realizar o sonho de se tornar atriz. Hoje, ela conta nos palcos as histórias de outras mulheres negras que a inspiram
Por: Isabela Alves
Maria Aparecida da Silva Santiago, conhecida popularmente como Cyda Baú, carrega em sua história a luta de muitas mulheres negras do Brasil. Bisneta de escravizados, ela nasceu em 10 de julho de 1975 e foi a irmã mais velha de seis irmãos. Cresceu no Quilombo Baú, localizado no Vale do Jequitinhonha, no estado de Minas Gerais.
Cyda diz que cresceu em um lugar muito rico, cheio de amor, e que tem boas lembranças do frescor da natureza do local. “Lá nós vivemos de acordo com as estações do ano: tinha a estação para se plantar, a de esperar e a de colher o fruto. Seguíamos o ritmo da natureza e também tínhamos as nossas rezas, rodas de conversa e a cultura da oralidade, em que o mais velho ensina os seus conhecimentos espirituais para as gerações mais novas”.
Atualmente, 45 famílias vivem no local. De acordo com um levantamento realizado pela Fundação Cultural Palmares, o número de comunidades remanescentes de quilombos pode chegar a cinco mil em todo Brasil.
Aos 12 anos, por incentivo de sua avó Heroína, Cyda deixou a comunidade para trabalhar como empregada doméstica na casa de uma família branca de classe média alta em Montes Claros (MG).
“Toda mulher negra sem mentalidade esclarecida serve para o homem branco. Atualmente, as mulheres negras vivem nos quilombos ou nas periferias. Que horas ela vai estudar e se letrar se o tempo todo ela está passando pano?”, reflete.
Na casa dos patrões, Cyda sentia falta de afeto. Ela também se sentia vulnerável e violentada pelo tratamento dos patrões, e conta que só não se abatia porque seu espírito alegre ia driblando as adversidades diárias.
Chegou a trabalhar um ano no local sem receber seu salário. “Se você não ganha dinheiro, mas ganha roupas velhas e um pouco de comida, você pensa que está tudo certo. Isso está ligado ao sistema escravocrata enraizado na nossa cultura”. Só começou a estudar aos 16 anos e foi na escola que percebeu que trabalhar sem receber não era algo normal.
Em Belo Horizonte, ela passou a assistir e admirar as novelas brasileiras. Após se encantar com a novela Pantanal, produzida pela extinta Rede Manchete, ela começou a imaginar a possibilidade de se tornar atriz. Aos 25 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro para concretizar seu sonho.
Foi trabalhar novamente como empregada doméstica, desta vez ao lado da tia, então com 50 anos. Ficou surpresa ao ver que o apartamento dos patrões era enorme, enquanto o quarto em que a tia dormia era tão pequeno que mal cabia um colchão inteiro, e por isso elas precisavam dormir em posição fetal todas as noites.
Inconformada com essa realidade, passou a trabalhar como vendedora de loja e depois passou a ser figurante nas novelas da Rede Globo. As horas de trabalho como figurante eram muito exaustivas e não lhe davam nenhuma segurança de renda. Ela então decidiu de vez que queria estudar teatro.
Foi aprovada na Martins Pena em 2002, a escola teatral mais antiga da América Latina, e considera que esta foi a sua primeira grande conquista como mulher negra. Na época, ela precisou participar de diversas manifestações e panelaços contra o governo do Rio de Janeiro, que queria sucatear a cultura e fechar a escola. Hoje em dia, a luta para preservar a cultura no país ainda continua.
Foi também neste período que Cyda passou a enxergar o seu papel como mulher negra. “O Brasil está longe dos espaços de representação. Penso em quantas mulheres, como a Conceição Evaristo, por exemplo, que deveriam ser vistas como faróis para a nossa sociedade, mas só vivem como empregadas domésticas e não conseguem quebrar o ciclo. Porque os negros ainda estão na margem da sociedade?”
Pouco depois, ela fez a inscrição para participar da Casa dos Artistas 4, reality show produzido pelo SBT. Nessa edição do programa, 14 participantes ficaram confinados em uma escola de dramaturgia recebendo aulas de interpretação, canto e dança. O prêmio seria protagonizar uma telenovela da emissora.
A notícia de que havia sido selecionada para participar do reality show veio como um choque, pois ela estava sem trabalho, vivendo sozinha e precisava andar a pé duas horas todos os dias para chegar à escola de teatro. Trancou o seu curso e foi para São Paulo, onde fica a sede do SBT.
O programa fez com que ela estivesse mais próxima de realizar o sonho de ser atriz. Cyda foi a única negra daquela edição, mas acabou sendo eliminada na sétima semana. “Quem ganhasse, seria a principal da novela ‘Esmeralda’. Eu me colocava como uma protagonista, mas me disseram que não era o perfil do papel. Escolheram a mulher branca de olhos verdes”. A vencedora dessa edição do programa foi Carol Hubner, que não ganhou o papel de protagonista em nenhuma novela da emissora.
Pouco tempo depois do fim do programa, Cyda recebeu uma ligação do SBT para que ela fizesse parte do elenco da novela ‘Esmeralda’. Cyda interpretou a empregada Jacinta e, apesar do papel pequeno, ela sempre negociava para ter mais falas e aparição nas telas. A novela foi um dos maiores sucessos de audiência da emissora.
Depois disso, mudou-se para a Alemanha, onde se casou. Quando voltou para o Brasil, repensou toda a sua carreira. Em 2015, ao ler o livro ‘Quarto de Despejo’, de Carolina Maria de Jesus, ela teve a ideia de criar a sua própria peça: ‘Os Rastros das Marias’.
O monólogo de 50 minutos foi produzido ao longo de um ano, com texto da dramaturga Gabriela Rabelo. O espetáculo narra a história de uma mulher negra nascida em um quilombo que sai pelo mundo em busca de um destino melhor que o que lhe aguarda ali.
A peça reúne histórias de mulheres negras brasileiras que não aceitaram o destino da servidão, como Tereza de Benguela, Maria Firmina dos Reis, Clementina de Jesus e Luiza Mahin, com o objetivo de valorizar a luta, a identidade e a cultura negra. A peça estreou em 2018, e a última apresentação foi em João Pessoa, na comunidade quilombola Caiana dos Crioulos, com mil pessoas assistindo ao espetáculo.
“O livro completa 60 anos este ano. Carolina revela através da sua escrita a forma cruel do olhar para as pessoas negras e pobres. Uma vez que você lê, não sai ileso, pois ela te acorda sobre as questões sociais do país. Ela foi a minha maior professora e a história dela reflete a minha trajetória e de muitas outras mulheres”, conclui.