O mistério das crianças sequestradas na ditadura militar do Brasil
Ao menos 19 crianças foram sequestradas e adotadas ilegalmente por famílias de militares durante a ditadura no Brasil. A descoberta veio com uma investigação do jornalista Eduardo Reina, que se debruçou sobre o assunto ao longo de 20 anos
Ao menos 19 crianças foram sequestradas e adotadas ilegalmente por famílias de militares ou de pessoas ligadas às Forças Armadas durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985). A descoberta veio com uma investigação do jornalista Eduardo Reina, que se debruçou sobre o assunto ao longo de 20 anos.
Nessas duas décadas, Reina percorreu mais de 20 mil quilômetros em território brasileiro em busca das vítimas e acessando milhares de documentos militares, oficiais ou secretos, além de consultar mais de uma centena de livros e quatro mil edições de jornais sobre o tema. Eduardo Reina reuniu essas histórias no livro ‘Cativeiro Sem Fim’ (Editora Alameda), publicado em 2019.
Rosângela Serra Paraná não sabe quantos anos tem ou onde nasceu. Sua certidão de nascimento, registrada em 1967 no Catete (Rio de Janeiro) e datada de 1º de outubro de 1963, é falsa. A maternidade no número 160 da Rua Marquês de Abrantes, no Flamengo, nunca existiu: o prédio pertence à autarquia de previdência dos servidores públicos desde 1958. O documento foi forjado pelo seu “avô”, o sargento do Exército Arcy de Paiva Paraná, que, assim que ela nasceu, tirou-a dos braços de sua mãe e entregou-a ao filho, o também militar Odyr de Paiva Paraná, e à nora, Nilza Serra Paraná, que não podia gerar crianças. Essa história ela só foi conhecer em 2013.
O jornalista considera que o caso de Rosângela, que ele acredita ter nascido no Rio Grande do Sul ou no Rio de Janeiro, representa o modus operandi da apropriação de bebês e crianças filhas de “dissidentes” na época. “Na maioria dos casos, as pegavam assim que nasciam, uma prática comum às ditaduras na Argentina ou no Chile, por exemplo,” explica o jornalista.
Aos seis anos, Juracy Bezerra de Oliveira foi confundido por militares com o filho de um líder guerrilheiro e levado a Fortaleza pelo tenente Antônio Essilio Azevedo Costa, que o registrou em cartório como seu pai biológico. Aos 20 anos, Juracy voltou ao Araguaia em busca da mãe e descobriu que o irmão mais novo, Miracy, havia sido levado pelo militar. Jamais se reencontraram. “Essa é a mágoa que tenho deles, de terem me tirado da minha família”, relata Juracy em ‘Cativeiro Sem Fim’.
O jornalista Eduardo Reina conta que, em uma semana de divulgação do livro, outras 14 pessoas procuraram-no com suspeitas de haver passado por algo parecido.
Ele começou a investigar os sequestros quando surgiram as primeiras histórias de apropriação de crianças pelas ditaduras chilena e argentina. “Não me parecia possível que não houvesse algo parecido no Brasil”.
Depois de décadas de trabalho sobre o tema, Reina descobriu um manual de militares argentinos sobre o que deveria ser feito com os filhos pequenos de “revolucionários”: crianças com até quatro anos ainda eram consideradas “puras”, livres das ideologias dos pais, e deveriam ser entregues a boas famílias que cuidassem delas. Aquelas acima dessa idade deveriam morrer. “Foi exatamente isso que aconteceu no Araguaia, por exemplo”, lamenta o jornalista.
Fonte: El País