Como a pandemia impacta a saúde mental dos profissionais que atuam em hospitais
Além dos plantões exaustivos, esses profissionais precisam enfrentar o medo constante de serem infectados e de levarem o vírus para suas casas. Na região chinesa de Wuhan, onde tudo começou, 50% dos médicos e enfermeiros já apresentam sintomas de depressão
Por: Isabela Alves
Um estudo chinês, publicado no Jornal da Associação Médica Americana, apontou que 50,4% dos profissionais da saúde que trabalham na região de Wuhan (onde o surto do novo coronavírus começou), na China, estão com sintomas de depressão e 71,5% estão com sintomas de sofrimento psíquico. Ainda, 44,6% relataram ansiedade e 34% relataram insônia.
A pesquisa entrevistou mais de 1.200 médicos e enfermeiros de 34 hospitais, no período de 29 de janeiro a 3 de fevereiro deste ano. Os resultados foram publicados no dia 23 de março.
Diante de uma pandemia como a que vivemos, os profissionais da saúde são um dos grupos mais afetados, pois precisam se expor ao risco de contágio o tempo todo e são sobrecarregados por um volume muito acima da média de pessoas que chegam aos hospitais em busca de ajuda – parte delas com poucas chances de sobrevivência.
Rafael Alves Lima, psicanalista e doutorando em Psicologia Clínica pela USP, ressalta que neste momento é preciso ficar atento ao aumento dos casos da síndrome de burnout, que traz entre seus sintomas a sensação de exaustão completa no trabalho, angústia para ir trabalhar e a impressão de que tudo que você produz é insatisfatório.
“A carga horária de trabalho será mais intensa e o contato diário com a experiência da morte, por mais que seja algo cotidiano da profissão, não será fácil. Os profissionais da saúde precisam procurar tratamento psicológico para lidar com a situação. Por mais heroico que seja, ninguém é sobre-humano”, diz.
O psicanalista também afirma que é fundamental fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS), que vem sendo atacado e sucateado há anos. O descontentamento da população com os hospitais públicos é grande, mas a raiz do problema é o Estado. “Os profissionais da saúde estão dando o sangue e se arriscando por nós. Eles estão honrando o seu juramento de Hipócrates, portanto devem ser valorizados”.
Quando a profissão se torna uma bomba-relógio
Ariana Aparecida Vieira, de 31 anos, trabalha como enfermeira na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Fazendinha, em Santana de Parnaíba, município da Grande São Paulo, e afirma que está vivendo em uma bomba-relógio.
Desde que o novo coronavírus, causador da Covid-19, chegou ao país, muitos colegas de profissão pediram afastamento e ela passou a fazer plantões de 24 horas, ao invés de 12.
Há pressão de todos os lados e a sensação é de medo em relação ao futuro. Os profissionais choram com mais facilidade e, por conta do afastamento, eles não podem se abraçar para se consolar.
Os hábitos também mudaram ao sair do trabalho. Os profissionais tomam banho, lavam os cabelos todos os dias e passam muito álcool gel antes de ir para casa, mas a insegurança persiste. “A gente pode estar propagando o vírus ou o levando para os nossos familiares. A cada nova suspeita que chega no hospital, um filme se passa na minha cabeça”, conta.
A máscara nem sempre é uma barreira efetiva. Em casos de suspeita de Covid-19 dentro da equipe, a pessoa é automaticamente afastada, pois o exame para a doença está em falta e só é feito em pacientes em estado grave.
“Nós também não sabemos como o vírus se comporta, então não sabemos se quem já pegou não vai voltar a pegar. Portanto, se o paciente não está em situação de risco, não deve ir ao hospital”, afirma.
As ruas ao redor do local estão vazias e ela fica triste ao pensar em como ficará o sustento dos trabalhadores informais que vendiam os seus produtos por ali. Mesmo assim, a enfermeira reforça a importância da quarentena.
“Se as pessoas continuarem indo para as ruas, vai se perder o controle. As pessoas vão relaxar com os cuidados e os números vão aumentar. Vão faltar leitos para tratar todos e chegaremos ao ponto de escolher quem colocamos ou não no respirador”, relata com preocupação.
Ela ainda acredita que vai haver muita subnotificação no país. Isso significa que muitos vão morrer por causa do vírus e não vão saber. Serão atestados com pneumonia ou outra doença respiratória, pois o Instituto Médico Legal (IML) não vai conseguir fazer a análise de cada paciente em detalhes, por conta da grande demanda.
Ariana também ressalta que fica indignada com o descaso com o qual a maioria da população está tratando as pessoas idosas. “Toda vida que se perde é sentida. O idoso viveu a sua vida sim, mas ele tem o mesmo valor que qualquer outro paciente e a gente luta como se fosse um membro da nossa família. A gente sempre se coloca no lugar do outro”.
Para ela, o futuro é incerto. Até a vacina chegar, muitas pessoas vão morrer e ela teme que a situação se agrave ao ponto de os parentes não conseguirem enterrar o ente querido: “Dias piores virão e eles estão próximos. Eu não quero pagar para ver”, conclui.
O dilema da profissional que trabalha diretamente com pacientes de risco
Carla Gutschov, de 32 anos, afirma que essa é a primeira vez em que vai para o trabalho com medo. Fisioterapeuta, ela tem especializações em áreas como gerontologia, oncologia e terapia intensiva, e lida diretamente com pacientes idosos na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do Hospital Santa Paula, localizado no Brooklin, bairro nobre da cidade de São Paulo.
O hospital estabeleceu ordens para que os profissionais não circulem por todo o local e a higienização dos equipamentos foi redobrada. Neste cenário de insegurança, a saúde mental de todos está muito abalada. “As pessoas choram muito. É uma responsabilidade muito grande e a gente tem muito medo de não conseguir dar conta”, desabafa.
No hora de atender algum paciente, ela usa Equipamentos de Proteção Individual (EPI), que incluem óculos, luvas, touca e uma vestimenta apropriada. Leva cerca de 5 a 10 minutos apenas para fazer essa preparação.
Quando chega o momento do contato, a ansiedade fica à flor da pele, porque os pacientes pioram muito rápido. “A gente coloca o aparelho em um, vira as costas e no instante seguinte ele já está com problemas respiratórios muito graves”. Essa aflição em relação à morte se estende aos colegas médicos e enfermeiros, pois, só nesta semana, Carla perdeu dois amigos da área da saúde para o coronavírus.
Segundo Carla, muitos trabalhadores do hospital estão sofrendo com a solidão, já que optam por alugar temporariamente lugares para viverem sozinhos, para não correrem o risco de infectar os familiares. “Alguns chegam a adoecer e ter febre. Não por causa da doença em si, mas pela saudade. O pior de tudo é que não se sabe quanto tempo isso irá durar”.
Uma das lições mais valiosas que a pandemia lhe trouxe foi que não é errado mostrar a sua vulnerabilidade como profissional para o paciente e dizer a ele que também está com medo.
Em todos os anos de profissão, seu celular nunca tocou tanto. Alguns de seus pacientes, que ela trata há mais de 8 anos, sempre ligam para ouvir o som de sua voz ou fazem chamadas de vídeo para vê-la e se tranquilizarem.
“Tem um paciente que está em fase terminal por causa de um câncer, e ele disse que sente falta de ver o meu sorriso, já que agora só uso máscara. Eu disse a ele ‘você já aguentou tanto, vai passar por essa’. Apesar de tentar manter o bom humor, ouvir isso dói muito”, conta.
Nessa situação tão delicada, ela sente que a união ficou maior entre os profissionais da saúde, e afirma que essa é uma corrente de solidariedade que deve se estender para toda a sociedade.
Nesta época de isolamento, Carla relata que se emociona ao lembrar de todas as pessoas que aplaudem os profissionais da saúde das suas janelas e dos pacientes que saem dos seus leitos para agradecê-los. “Nesse momento, é importante que as pessoas digam à pessoa amada o quanto ela é querida, não só por ser médico ou enfermeira, mas por ela ser quem ela é”, conclui.
A população mais vulnerável será a mais afetada pela pandemia
Clarice Pimentel Paulon, psicanalista e pós-doutoranda pelo Instituto de Psicologia da USP, teme pelo futuro, pois o governo não tem tomado medidas efetivas para proteger as populações mais vulneráveis, como as pessoas da periferia, a população em situação de rua, e as comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas.
“Muitos não têm acesso ao saneamento básico e à informação, que chega truncada por conta das fake news, sendo que muitas delas foram espalhadas pelo próprio Governo Federal”, diz em referência ao discurso que o presidente da República Jair Bolsonaro fez no dia 24 de março.
Paulon conta que é fundamental que o governo e as grandes empresas protejam o cidadão brasileiro nessa época de crise. “As empresas, ao invés de dar um suporte, estão pagando salários menores e demitindo em massa. Em outros países, houve até a anistia das contas de água e luz para toda a população”, diz.
O psicanalista Rafael Alves Lima afirma que a disputa política, as fake news e a desvalorização do discurso científico estão prejudicando a disseminação da conscientização sobre o vírus.
“O governo precisa preservar as pessoas, ou então a população vulnerável terá que escolher entre morrer de coronavírus ou de fome. Falar que é ‘uma gripezinha e grande histeria’ faz com que as pessoas interpretem que elas podem seguir as suas vidas normalmente, o que não é verdade. Os governantes precisam tomar consciência sobre a importância do seu cargo, guiar as pessoas, e não dificultar a situação”.
Os psicanalistas contam que esta é uma epidemia dinâmica, portanto as instruções podem mudar a todo instante. Até o momento, é fundamental manter a higiene pessoal, lavando as mãos com água e sabão, evitar ao máximo contato com outras pessoas e se informar diariamente sobre o assunto.