“Ser negro no Brasil é uma luta permanente pela sobrevivência”
No Brasil, os negros têm mais chances de serem assassinados, recebem menores salários e precisam provar todos os dias que merecem os mesmos direitos das pessoas brancas; veja relatos de quem vive essa realidade
Por: Mariana Lima
Em julho de 2015, Juarez Tadeu de Paula Xavier, hoje com 60 anos, foi alvo de ofensas racistas no ambiente universitário. Frases como “Negros fedem” e “Juarez Macaco” foram encontradas em um banheiro do campus de Bauru da Unesp, instituição em que o jornalista dá aulas. O responsável nunca foi identificado.
Em 2015, quando questionado sobre os casos de racismo, Juarez afirmou que eram “uma cicatriz que nunca fecha”.
“Quando você faz parte de uma minoria, não tem um dia que você passe sem sofrer uma violência. Toda vez que essa ferida está perto de cicatrizar, algum novo episódio acontece e abre novamente”.
Foi o que ocorreu no último 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Juarez foi chamado de macaco por um homem branco, no estacionamento de um supermercado em Bauru, no interior de São Paulo, e, ao revidar o comentário, foi atingido por golpes de canivete no ombro e no braço. Ele passa bem.
Quando questionado sobre o que é ser uma pessoa negra no Brasil, Juarez é direto. “É uma luta permanente pela sobrevivência, contra o homicídio, o genocídio e a negação da sua cultura, dos seus direitos, de ser você”.
Juarez trabalhou em uma banca de jornal. Foi lá, motivado pelo dono, que desenvolveu o interesse pelo jornalismo. Hoje, possui mestrado e doutorado pela USP e coordena o Núcleo Negro Unesp para Pesquisa e Extensão (Nupe).
O Núcleo e diversos movimentos começaram a surgir após as pichações na universidade, feitas no período em que a Unesp estava implantando a política de cotas.
“O espaço universitário estava ficando mais diversificado, não só por pessoas negras, mas por mulheres e indígenas também. Os alunos buscaram criar esse debate e passaram a não aceitar o racismo na sala de aula”.
O Atlas da Violência 2019 revelou que, em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios eram indivíduos negros. Entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios da população negra cresceu 33,1%, enquanto a de pessoas negras cresceu 3,3%.
“Os índices de homicídio geram debates em qualquer parte do mundo, mas aqui não. Jovens negros enfrentam o racismo em todas as esferas”, apontou Juarez.
Desigualdade definida pela cor
Em 2018, 55,8% da população se declarava preta ou parda, de acordo com a pesquisa ‘Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil’, realizada pelo IBGE. Esse mesmo relatório traz um panorama da desigualdade crescente entre brancos e negros.
Em 2018, pretos e pardos representavam 64,2% dos desempregados no país. Além disso, as pessoas de cor ou raça preta ou parda receberam, em média, apenas 57,5% dos rendimentos daquelas de cor ou raça branca. Quando se trata de mulheres pretas ou pardas, o rendimento médio representa apenas 44,4% do recebido pelos homens brancos, isto é, menos da metade.
Uma mulher, professora, mestra em educação pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e ganhadora da Medalha da Inconfidência, mais alta comenda concedida pelo Governo de Minas Gerais, é parada na rua por uma senhora, que a questiona: “Você faz faxina? ”
Elas nunca haviam se visto. Luana Tolentino é a mulher em questão. Ela é negra, enquanto a senhora que a parou é branca.
O caso ocorreu em 2017. A resposta de Luana para a mulher repercutiu em seu post compartilhado nas redes sociais. “Não, sou professora e faço mestrado”. Luana ainda se surpreende que seu relato seja lembrado até hoje.
“Onde está escrito que por ser negra eu tenho que ser doméstica? Tem que desconstruir essa imagem das mulheres negras. A faxina em si não é o problema, eu já trabalhei como doméstica. Mas é isso, sempre colocar a mulher negra neste lugar”.
Esse não foi o único caso de racismo com o qual Luana teve de lidar nos últimos anos. Ao entrar em uma loja de roupas e ir para o provador, foi informada por uma atendente que só poderia experimentar as roupas se deixasse a bolsa no caixa, como garantia.
“Essa desconfiança é sempre com a população negra. Ao visitar amigos que moram em condomínios de classe média alta, sempre vem um funcionário que pergunta se sou a nova empregada”.
Para Luana, ser mulher negra no Brasil é “ser alvo de uma tripla violência: de classe, gênero e raça”. Ela chama atenção para os índices de feminicídio, em que as mulheres negras aparecem como 61% das vítimas. Elas também são as principais vítimas da violência sexual, com 50,9%.
Ser médica depende da cor?
Em 1995, o Datafolha realizou um levantamento sobre o racismo no Brasil. 87% dos entrevistados não-negros manifestaram algum tipo de preconceito ao responder o questionário, mas apenas 10% percebiam o preconceito naquilo que faziam.
Kleriene Souza, 27, é estudante de Medicina na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Ela é natural de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, mas se mudou para conseguir estudar.
Ela sempre contou com o apoio dos pais, que ofereceram a ela e a seus irmãos acesso ao ensino de qualidade. Mas a condição de vida confortável da família não foi o suficiente para barrar o racismo.
“Eu tinha 6 anos e estava em uma rodoviária com a minha família. Estava brincando com meus irmãos quando um homem gritou para mim ‘volta aqui, sua negrinha’. Corri para a minha mãe, que foi questionar o homem. Neste momento, eu percebi que não era igual aos meus colegas brancos da escola”.
A mãe de Kleriene é professora, e sempre conversava com os filhos sobre racismo. “Ela alimentava a nossa autoestima. Falava que éramos descendentes de pessoas importantes e que, portanto, também éramos importantes”.
Ser a única pessoa negra em um lugar dominado por brancos não era algo estranho para a estudante. Era assim no condomínio em que a família vivia. Foi assim no cursinho pré-vestibular que ela e a irmã fizeram.
“A renda não acaba com o racismo. É um problema estrutural que você está fadado a passar desde que você nasce, não importa o quanto seus pais te protejam”.
A entrada na universidade iniciou uma nova caminhada de luta para Kleriene. Alunos e professores, em grande parte brancos, reproduziam o discurso contra cotas por todo o ambiente.
“Que eu saiba, a sala com mais pessoas negras é a minha, que tem apenas 4 pessoas. Enfrento pequenas agressões diárias, vindas de todos os lados, de alunos e professores que não aceitam minha permanência ali”.
A pressão diária da universidade fez com que Kleriene desenvolvesse um quadro grave de depressão, levando-a para o psiquiatra, que apontou a necessidade de medicamentos.
“Eles não querem ver a pessoa negra como igual. Eu percebo que os funcionários negros não são tão agredidos como eu e os outros alunos, porque eles estão no lugar que os brancos acham correto”.
Kleriene já está no período de residência, parte prática do curso, que realiza em uma unidade do SUS. Foram diversos os momentos em que foi barrada ou confundida com uma paciente.
“Sou sempre confundida com a paciente ou a técnica de enfermagem. Nunca com a médica ou a estudante”.
A violência mais recente a fez retornar para a terapia. Kleriene foi expulsa de um hospital maternidade em que estava fazendo residência. Ao chegar, foi proibida de subir pelo segurança, apesar de seus colegas brancos já terem entrado.
“O segurança falou que eu só poderia entrar quando a professora responsável chegasse, eu o questionei e me obrigaram a sair. Meus colegas vão lembrar da universidade de um jeito positivo, mas, para mim, sempre será um momento muito difícil da minha vida. Não vou sentir falta”.
Uma preocupação que ela leva é em relação aos seus pacientes. Ela tem medo de que eles sejam racistas e até mesmo recusem seu atendimento. “A maioria das pessoas que atendi foram gentis, mas teve alguns grossos. Parece que por conta da minha cor eu não mereço respeito”.
Ela ressalta que suas conquistas continuarão a ser questionadas, pois a sociedade não quer mudar. “Todo dia vou sofrer uma violência racista. Não sei qual, mas sei que vai acontecer. É um jeito muito violento de se viver”.
Uma educação que valoriza as cores
De acordo com a PNAD 2018, do IBGE, a taxa de analfabetismo entre pessoas pretas e pardas é de 9,1%, mais que o dobro observado entre pessoas brancas (3,9%). Também segundo o IBGE, no ano passado, pretos e pardos brasileiros somavam 50,3% dos estudantes do ensino superior da rede pública.
A educomunicadora Denise de Oliveira, 26, aponta que esse dado não é palpável. “Não consigo enxergar essas pessoas na realidade. Onde estão e quem são essas pessoas? Não as vejo nos mesmos espaços que eu, na minha sala, na universidade”.
Denise construiu junto com Raísa Amaral o Projeto Adeola, em 2015. O projeto busca levar para escolas e ONGs, de forma lúdica, a cultura e história da África para crianças.
Elas se vestem como princesas africanas que, através de uma viagem no tempo, surgem nas escolas para conversar com as crianças. As duas mulheres sempre notaram a dificuldade de abordar a cultura africana no currículo escolar.
“É a estrutura da sociedade brasileira. Incomoda quando falamos de princesas negras nas escolas. É quase um movimento, uma vez que estamos sub-representados na educação. Mas as crianças mostram uma alegria intensa quando nos veem”.
Por trabalhar com crianças, Denise percebe que muitas não conseguem verbalizar o racismo, mas que já o mostram no comportamento. “O racismo institucionalizado afeta a criança, por isso trabalhamos junto com a escola para desenvolver ferramentas para dialogar com elas”.
Denise luta pela valorização da ancestralidade africana no país, e teve diversos momentos que mostraram a ela a necessidade desta luta.
“Eu entrei na USP pelo SISU, e no dia da matrícula estava acompanhada da minha mãe e estávamos muito felizes. Aí fomos conversar com o secretário responsável pela matrícula e ele comentou: ‘Ah, entrou pela forma mais fácil’. Isso marcou muito a minha mãe”.
Denise ressalta que essa experiência é comum para os alunos cotistas que são considerados “indignos” do espaço que ocupam na universidade por terem entrado pelo sistema de cotas.
Em relação a ser uma mulher negra na sociedade brasileira atual, Denise se considera sortuda por viver cercada de representações femininas negras e fortes como Lélia Gonzalez, Eli Carneiro, sua companheira do Adeola e sua mãe.
“Ainda existe o desafio de dialogar com todas as esferas da sociedade. Hoje, posso ser mãe de um jovem que a cada 23 minutos pode ser morto. No entanto, ainda é um cenário com possibilidades e caminhos positivos”.
Afinal, o que é ser negro no Brasil? – Mais Que Diferente
11/07/2020 @ 00:35
[…] Ser negro no Brasil é uma luta permanente pela sobrevivência” […]
victor mateus
11/11/2020 @ 14:56
eu li essas entrevistas e achei bastante interessante pois aborda temas atuais e tb aprendi muito com cada entrevista
Malundo Kudiqueba
23/12/2020 @ 16:12
Sou negro africano e vivo na Inglaterra e acompanho de perto a situação no Brasil. Há mais racismo no brasil que na europa. O brasileiro é mais racista que o alemão. O brasileiro é mais racista que o inglês.
Perguntem aos brasileiros que vivem em portugal. Toda américa do sul é mais racista que a europa ocidental. O racismo na américa do osul é semelhante a europa do leste (comunista).