As consequências da seletividade penal brasileira para a população negra
Bárbara Querino e Marcelo Dias tiveram de responder por crimes que não cometeram. O motivo? A cor de sua pele
Por: Mariana Lima
Em 2017, o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), do Ministério da Justiça e Segurança Pública, apontou que 61,6% da população carcerária no país era composta por pretos ou pardos. Brancos correspondiam a 34,38% dos presos.
De acordo com o relatório ‘Mulheres em Prisão: enfrentando a (in)visibilidade das mulheres submetidas à justiça criminal’, divulgado pela Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), 68% das mulheres presas no país são negras.
A população negra, pobre e periférica é a mais afetada pela seletividade do sistema judiciário. E muitas pessoas acabam sendo vítimas do sistema apenas por serem negras.
Um ano depois da divulgação destes dados, em 2018, Marcelo Dias e Bárbara Querino sentiram na pele a desigualdade do sistema judiciário.
“É a senzala das periferias. As senzalas do novo século”
O educador social Marcelo Dias estava carregando cadeiras emprestadas de uma creche para a sede de sua ONG, onde ocorreria um bingo, na periferia da Zona Sul da capital paulista.
Enquanto realizava a atividade, notou uma movimentação estranha. Ele observou dois jovens que subiam a rua. Eles fizeram contato visual. De repente, soltaram uma sacola que estavam carregando.
“Nós trocamos um olhar demorado. Eles estavam com uma atitude estranha. Achei que tinham roubado alguém”, conta Dias.
Passaram duas motos da ROCAM – Ronda Ostensiva Com Apoio de Motocicletas – e o educador falou sobre os jovens para eles. As motos seguiram na direção indicada por Marcelo, que continuou com o carregamento das cadeiras.
“Fui abrir o portão da ONG, e acabei me aproximando da sacola. Tinha um táxi parado perto, e aí um dos ocupantes falou para eu não mexer”.
Neste momento, os policiais retornaram já enquadrando Marcelo e os ocupantes do táxi. “Já começaram com aquela abordagem bruta, me chamando de negrinho, de filho da p***. Aí eu falei ‘vou colocar a mão na cabeça, mas não sou filho da p***’ ”.
A abordagem policial continuou a agredir verbalmente Marcelo, que tentou dialogar com os policiais e mostrar que era trabalhador. “Ficavam perguntando qual era o meu artigo – termo utilizado para se referir ao tipo de crime no Código Penal –, e eu falava que não tinha. Só porque eu sou negro, então para eles, automaticamente, tinha algum artigo”.
Marcelo acabou respondendo os policiais. “Falei que o único artigo que tinha era o acadêmico. Aí só piorou, já fui jogado na grade. Comecei a gritar pelo pessoal que estava na ONG”.
Quando as pessoas começaram a filmar, os policiais apontaram as armas para elas. Apenas o namorado de Marcelo conseguiu continuar a filmar. Ele é branco.
Marcelo revela que neste momento ficou muito indignado. Ele não sabia o que havia na sacola, nem a comunidade que acompanhava a situação. O educador passou a exigir que mostrassem o que havia na sacola.
“Eles provavelmente teriam liberado todos nós, mas minhas exigências deixaram eles bravos. Mostraram que era cocaína, e um dos policiais falou para mim ‘agora você vai assinar esse B.O’ “.
Os ocupantes do táxi utilizaram do direito de permanecer em silêncio. Marcelo preferiu dar seu depoimento assim que chegou à delegacia.
“Era apenas a palavra dos policiais contra a minha. Não fizeram perícia na sacola para checar as digitais, nada. E o delegado tentava me fazer entrar em contradição durante o depoimento”.
No final, Marcelo e os 4 ocupantes do táxi foram acusados de tráfico de drogas e associação para o tráfico. Foram 6 meses preso no Centro de Detenção Provisória (CDP) II de Pinheiros.
“Foi um verdadeiro inferno. Era uma desumanidade. Não havia água e se havia era suja, a comida, por vezes, vinha estragada. Tinha racionamento na hora do banho. Os medicamentos eram escassos. Tinha que dividir um espaço minúsculo com 50 pessoas”.
Marcelo chegou à conclusão de que as penitenciárias são feitas para o povo negro e periférico. “É a senzala das periferias. As senzalas do novo século”.
Ele conta que nos 3 primeiros meses considerou o suicídio. Mas acompanhar a luta de familiares e amigos do lado de fora pela sua liberdade lhe deu forças para continuar.
Familiarizado com o trabalho social, Marcelo promoveu a realização de projetos de alfabetização, reforço escolar, oficinas, saraus, festivais de poesias e festas comemorativas no CDP.
“Antes, eu não atuava pelos direitos humanos, mas não consigo mais me desvincular dessa luta. Não dá para fechar a porta e fingir que não é comigo”.
Marcelo saiu em dezembro de 2018, respondendo ao processo em liberdade através de habeas corpus. A absolvição chegou em abril de 2019.
Ainda em janeiro deste ano, Marcelo foi vítima de racismo em um shopping. Um segurança o abordou e o acusou de vender produtos ilegalmente no espaço. Marcelo foi expulso do local.
Ele recebeu uma indenização pelo caso, o que acabou o ajudando e também a ONG que ele preside. Com sua prisão, havia sido demitido do emprego em que estava e os projetos da ONG Novos Herdeiros Humanísticos haviam sido paralisados.
“A sociedade fecha os olhos para o racismo. Falam que é ‘mi, mi, mi’. Se a pessoa não sente na pele, ela acha que não existe. A abolição nunca ocorreu. Tivemos uma falsa abolição, porque mudou o cenário, mas o alvo não”.
“Essa revolta não vai passar”
Bárbara Querino estava na praia realizando um trabalho como modelo. A dançarina tinha testemunhas e fotos que provavam onde e com quem estava no dia 10 de setembro de 2017. Na data em questão, uma quadrilha de assaltantes de carro estava agindo na região da Zona Sul de São Paulo.
Bárbara, um irmão e um primo foram ligados ao crime. Todos foram para a delegacia e prestaram depoimento. Lá, eles foram fotografados ilegalmente pela polícia.
A vida seguiu e, dias depois, Bárbara descobriu que as fotos tiradas na delegacia haviam vazado e estavam sendo compartilhadas em grupos de WhatsApp da região.
“Um amigo veio me mostrar. Eu fiquei em choque. Depois, uma reportagem da Band já me colocava como culpada e informava que estava sendo ‘procurada’, o que não era verdade. A polícia sabia onde eu estava”.
Em janeiro de 2018, Bárbara foi convocada para uma audiência e de lá já saiu presa. Uma das vítimas havia a “reconhecido” por uma das características de que mais se orgulhava e que compartilhava com diversos brasileiros: o cabelo cacheado.
A mesma testemunha, uma mulher branca, havia informado em outro depoimento que a ação dos bandidos fora rápida demais, e que não conseguia identificá-los. Também não havia informado a presença de nenhuma mulher durante o crime.
A presença de Bárbara no local do assalto passou a ser considerada após a vítima ver as fotos tiradas ilegalmente na delegacia.
“Eu fiquei sem entender. Pensei que a moça era louca. Como assim me reconhecer pelo cabelo?! Causou muita revolta em mim, porque era tudo baseado em achismo. Era uma coisa muito absurda”.
Com a prisão, amigos e familiares passaram a reunir conteúdos que provassem a inocência de Bárbara, conhecida pelo apelido de Babiy, que acabou dando origem à página no Facebook Todos por Babiy.
Ao longo do processo, Bárbara acabou sendo acusada por um segundo roubo. Do segundo crime, contra um casal de irmãos, ela foi absolvida. O irmão de Bárbara confessou sua participação no assalto, mas negou o envolvimento da irmã e do primo.
A acusação pelo primeiro continuava. “O racismo foi muito grande, eu sei. Ela falou que era eu porque sou negra e periférica. Essa revolta não vai passar. Não tem como esquecer a forma como ela me acusou”.
Apesar de ter álibi para a data do assalto, Bárbara foi condenada pelo roubo ao casal com uma pena de 5 anos e 4 meses. Bárbara passou 1 ano e 8 meses presa, até sair em liberdade condicional em setembro deste ano.
“Ficar presa me trouxe uma nova visão sobre o racismo. Só vi pessoas negras e periféricas. É outra realidade. Tiram tudo de você. Te quebram de todas as formas”.
Bárbara considera que o engajamento de seus amigos e familiares junto à mídia alternativa foi fundamental para o sucesso de sua luta.
“As grandes mídias não apuraram, não investigaram. O pessoal do Brasil de Fato vieram me ouvir, investigaram e comprovaram o meu álibi. Ouviram todos que estavam lutando por mim. Depois os veículos maiores vieram”.
Pensando na experiência que passou e no significado de ser negra e mulher no Brasil, Bárbara diz que a mulher negra sempre carregou o mundo nas costas.
“Eu estou cansada de ficar resistindo, de estar sempre ali ajudando. O mundo não seria forte sem a mulher negra. As mulheres negras estão cansadas, mas não param de lutar”.
Bárbara aguarda a revisão de sua pena, que espera vir com sua absolvição. Para o futuro, espera conseguir voltar a estudar no próximo ano e encontrar um emprego fixo na dança. No momento ela está escrevendo sobre esse período de sua vida.
Hoje, ela faz acompanhamento psicológico em consequência do período em que ficou presa. “Às vezes, quando eu lembro de tudo, fico com muita raiva ou indignada, e isso vem de forma muito expressiva ou nos meus silêncios. Esse acompanhamento me ajuda”.
Ela reflete sobre a forma como a sociedade trata os indivíduos negros e a luta necessária desta população.
“Eles [brancos] querem a população negra burra, nos querem calados, que deixemos que nos matem sem revidar. Mas a população negra aprendeu a lutar no mesmo grau em que é agredida. Não vamos ocupar os espaços, vamos criar os nossos”.
A necessidade da luta coletiva
Movimentos em prol da luta por direitos da população negra sempre existiram. De forma plural, cada movimento se organiza e atua à sua maneira. No entanto, existem consensos nesta luta que os fazem agir em conjunto.
A Coalizão Negra por Direitos é um exemplo destes consensos, como aponta Douglas Belchior, fundador e professor do cursinho popular UNEAFRO – Brasil, e membro da Coalizão.
“Desde o desembarque dos escravos no país existe o movimento negro. Sempre houve movimento contra a escravidão e pelo direito à vida. Atualmente, estamos lidando com um governo explicitamente racista e genocida. A união se faz necessária em um momento assim”.
A Coalizão já atuou contra a proposta de revogar a Lei de Cotas, proposta pela Deputada Dayane Pimentel (PSL-BA). Também já se colocou contra o avanço do Pacote Anticrime proposto pelo Ministro da Justiça, Sérgio Moro.
“O Estado é o grande carrasco de um sistema de justiça racista, atuando contra a população negra de forma direta e indireta. É fundamental a existência dos movimentos para denunciar a violência policial”.
Segundo o 13° Anuário Nacional de Segurança Pública, a população negra representa 75,4% dos mortos pela polícia no país. E o estudo ‘Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil’, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que pessoas pretas ou pardas têm quase três vezes mais chances (2,7) de serem vítimas de assassinato do que pessoas brancas.
“O país não se comove com a morte das pessoas negras. A mídia educa a sociedade ao vender os interesses das classes mais altas. O branco é o suspeito, o negro é o ladrão”.
Douglas ressalta que a militância política não é uma escolha para a população negra, mas “uma necessidade de sobrevivência. Se você não lutar, acaba sendo engolido pelo sistema. Lutamos pelo respeito e pela dignidade diariamente, apesar de ser desgastante, física e mentalmente”.
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