Como a falta de representatividade gera violência contra as pessoas trans
O Brasil é o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. A violência é tanta que a expectativa de vida dessas pessoas é de apenas 35 anos, menos de metade da média nacional. Para mudar este cenário, pessoas trans têm lutado por mais espaço na política
Por: Isabela Alves
Ser uma pessoa transexual no Brasil é uma luta pela sobrevivência. O país continua sendo o que mais mata travestis e pessoas trans no mundo. E isso se reflete na baixa expectativa de vida desta população: 35 anos. Isso representa menos de metade da expectativa de vida da população brasileira em geral, que é de 75 anos.
A exclusão social marca todas as etapas da vida dessas pessoas, em diferentes grupos e ambientes, como família, escola e mercado de trabalho.
Em média, pessoas trans e travestis são expulsas de casa pelos pais com apenas 13 anos, segundo estimativa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA).
O acesso à educação é pouco: apenas 0,02% dessas pessoas estão na universidade, 72% não possuem o ensino médio e 56% não possuem o ensino fundamental.
Outro dado que chama atenção é que 90% das travestis e transexuais utilizam a prostituição como fonte de renda e possibilidade de subsistência, já que elas encontram grandes dificuldades em conseguir emprego.
Keila Simpson Souza, presidenta da ANTRA, destaca o grande preconceito em torno das pessoas trans e a necessidade de lutar contra ele.
“Para a população cisgênero, é melhor que as pessoas trans fiquem à margem da sociedade, para que a gente não transite nos mesmos espaços que elas. A marginalização ocorre, muitas vezes, de maneira velada através da grande estigmatização, não nos dando direitos e não ajudando na diminuição do preconceito”, diz.
A falta de representatividade no governo e na mídia também impacta diretamente na violência contra essa população: de acordo com dados divulgados no documentário ‘Revelação’, da Netflix, 80% da população mundial nunca conviveu com uma pessoa trans. Por isso é tão importante que essas pessoas sejam representadas de forma realista no cinema e na televisão.
Filmes como ‘Uma Mulher Fantástica’ e ‘Tudo Sobre a Minha Mãe’, e séries como ‘Pose’ e ‘Euphoria’, são exemplos de obras com representatividade trans.
No Brasil, Keila afirma que este ainda é um movimento recente. E, cada vez que há um diálogo sobre essa pauta, a discussão fica no campo da polêmica. Exemplos disso são a polêmica em torno da jogadora de volêi Tifanny quando ela recebeu autorização para jogar em equipes femininas, e do ator Thammy Miranda, que participou recentemente de uma campanha publicitária de Dia dos Pais.
Ainda é válido ressaltar que, apenas em 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) removeu da sua classificação oficial de doenças, a CID-11, o chamado “transtorno de identidade de gênero”, definição que considerava como doença mental a situação de pessoas trans.
“A sociedade sempre olha a população trans pelo genital que ostenta. A pessoa anda vestida, mas a sociedade idealiza que uma travesti tem um pênis entre as pernas e que um homem trans tem uma vagina, portanto não pode se designar como um homem ou mulher. Precisam respeitar as pessoas como elas desejam”, explica.
O desafio de crescer sem referências
Mesmo a passos lentos, as mudanças estão acontecendo. Nascida nos anos 90, Bárbara Aires, hoje com 30 anos, afirma que crescer sem referências foi difícil, pois não se entendia. A única representatividade na sua época era a modelo brasileira Roberta Close e drag queens que participavam de shows de calouro, como o “Topa Tudo Por Dinheiro”.
Ela também cresceu em um lar muito conservador. Seu pai, que era militar, não aceitava o seu jeito feminino, e agressões verbais como “vira homem” e “viadinho” eram comuns. Aos 5 anos, ela fugiu de casa por conta dos espancamentos que sofria.
Apesar de até a adolescência viver entre abrigos e as ruas de São Paulo, ela continuava sem referências sobre o que era ser trans. Para ela, as mulheres trans e travestis nunca saíam à luz do dia, apenas à noite para se prostituir.
Começou a fazer a transição de gênero durante o ensino médio, época que também estava trabalhando como garçonete.
Ela acabou abandonando os estudos por causa do bullying e foi demitida. “O gerente me disse que os clientes e os funcionários não queriam alguém como eu por perto. Vivi 10 meses com a ajuda de amigos e depois tive que recorrer à prostituição”, conta.
Bárbara realizou, então, um anúncio em um site de prostituição, o que a levou posteriormente à indústria dos filmes pornográficos. “Desde criança, sempre sonhei em ser atriz de novela, porque essa é uma profissão que possibilita viver e celebrar a vida. Mas a partir do momento que me tornei trans, não tinha meios para sobreviver”, conta.
Um fato que vale ser citado é que, ao mesmo tempo em que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans, ele também é o que mais consome pornografia com essa população no mundo. Entendendo que não conseguia emprego por ser quem era, Aires começou a ser ativista política.
Suas ideias lhe abriram portas no mercado de trabalho: ela atuou por dois anos como consultora do programa ‘Amor e Sexo’, participou da produção da série ‘Quem Sou Eu?’ do Fantástico, ambos da Rede Globo, e da série ‘Liberdade de Gênero’, da GNT. Em 2018, arriscou-se na carreira política, como candidata a Deputada Estadual do Rio de Janeiro pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
Mesmo tendo esse extenso currículo, Bárbara conta que ainda hoje precisa recorrer à prostituição para se sustentar. Ela também criou um financiamento coletivo para receber doações. “Estou nessa situação exclusivamente por ser trans. A maioria das pessoas não quer conviver e estar nos mesmos lugares que a gente. Querem uma segregação”, conta com tristeza.
Hoje o seu sonho é se tornar uma digital influencer através da sua conta do Instagram para dar dicas de moda e maquiagem, e também falar sobre seu ativismo. Para ela, humanizar os corpos trans é fundamental para a quebra de preconceitos.
“As pessoas precisam descobrir as figuras importantes, como a cantora Liniker, a banda Cozinha Baiana Mineira, e Valentina Sampaio, a primeira mulher trans brasileira e nordestina a estampar a capa da Vogue e a participar de um desfile da Victoria’s Secret”, diz.
Mudança de gênero, educação e política
Duda Salabert, de 39 anos, começou a sua transição tardiamente, aos 35 anos. Ao viver todos esses anos sendo lida como uma pessoa cisgênero, ela teve a oportunidade de se tornar professora de literatura, estudar Gestão Pública pela Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG) e entrar no mercado de trabalho.
Após a sua transição, ela sentiu a diferença no olhar da sociedade. “Há um olhar patologizador que entende que a transexualidade causa sofrimento, transtornos e angústias, mas quem causa isso é o preconceito da sociedade sobre as nossas identidades. A transexualidade se torna um peso quando somos excluídos e violentados”, diz.
Ao perceber essa realidade, ela também começou a usar o seu corpo para o ativismo político. Entendendo que a educação é a principal ferramenta para a transformação social, criou a ONG Transveste, que oferece educação gratuita para travestis e transexuais.
O espaço pedagógico mais acolhedor oferece curso pré-vestibular, de defesa pessoal, aulas de libras, idiomas, grupo de teatro e oficinas para qualificar a mão de obra das pessoas trans. A iniciativa também atua nos espaços prisionais. “A escola tradicional é um espaço de reprodução de ódio. Por meio da educação, as pessoas trans poderão ocupar espaços de poder, como as universidades, para combater o estigma e criar representatividades positivas”, conta Duda.
Não apenas isso, Salabert aponta que as práticas pedagógicas atuais apagam qualquer debate sobre diversidade. Um exemplo disso é o projeto Escola Sem Partido. “O ser humano é diverso e plural, e não pode ser colocado em duas caixas de duas cores. O que há por trás deste projeto de lei é um projeto de sociedade que busca excluir a diversidade e reduzir o ser humano a duas únicas possibilidades”.
Continuando com a militância política, Duda tornou-se a primeira travesti da história da América Latina a se candidatar ao Senado Federal, recebendo mais de 350 mil votos na última eleição em Minas Gerais. Ela não foi eleita, mas se tornou a terceira mulher mais votada da história do Estado.
Salabert vem conquistando feitos históricos desde então. A ativista, que é casada com Raísa Novaes desde 2011, teve a sua primeira filha, Sol, no dia 19 de junho de 2019. Após o seu nascimento, Duda conseguiu uma licença maternidade e ficou afastada por 120 dias, o que é considerada uma vitória para o movimento. Não se sabe de outra mulher trans que tenha conseguido este feito.
Este ano, ela está como pré-candidata a vereadora em Belo Horizonte, Minas Gerais. “Quero permanecer viva e trabalhando se for possível, se o preconceito não ceifar esse projeto. Eu me mantenho na luta política, porque eu entendo que não tem como transformar a sociedade sem ser pela luta política”, conclui.
Linguagens "neutras" e "inclusivas": doulas refletem sobre o impacto em seu trabalho e no direito à saúde das mães e bebês - No Corpo Certo
30/09/2020 @ 04:00
[…] do termo “mãe”, também se demanda o reconhecimento de pessoas do sexo masculino como mães, como é o retrocitado caso de Duda Salabert (PDT-MG, ex-PSOL-MG); em alguns casos, exige-se […]
rena
01/12/2020 @ 15:10
esse artigo das doulas é um desserviço a comunidade LGBT