Como será quando o coronavírus chegar às favelas?
O novo coronavírus, trazido ao Brasil pela classe alta, ameaça, principalmente, a vida já vulnerável de moradores de comunidades carentes
Por: Júlia Pereira
No dia 26 de fevereiro deste ano, o Ministério da Saúde confirmou o primeiro caso de coronavírus no Brasil. Tratava-se de um homem de 61 anos de idade que viajou para a região da Lombardia, no norte da Itália, a trabalho, entre os dias 9 e 21 de fevereiro. O paciente foi atendido em um dos principais hospitais privados do País, localizado na região sul da capital paulista. Mas e se ele não tivesse acesso a um atendimento médico particular?
O estado do Rio de Janeiro teve como primeira vítima fatal da Covid-19 uma mulher de 63 anos, que morreu no dia 17 de março. A paciente era empregada doméstica e entrou em contato com o vírus por meio da patroa, que viajou para a Itália no período do Carnaval.
Mesmo com a empregadora de quarentena, a vítima continuou trabalhando normalmente no apartamento do Alto Leblon, bairro nobre do Rio e localizado a 100 km da sua casa, em Miguel Pereira.
O coronavírus foi importado para o Brasil pelos grupos mais ricos do país, pessoas que têm condições financeiras de viajar para a Europa, seja a trabalho, seja a lazer.
Ao chegarem aqui, essas pessoas puderam seguir as recomendações médicas de ficar em isolamento em suas casas e lavar as mãos com frequência para evitar contaminação. Mas o novo coronavírus, causador da Covid-19, é contagioso e também contamina quem não tem condições financeiras para manter esses mesmos cuidados.
O que acontecerá quando ele atingir as favelas do país, com famílias grandes que moram em pequenas casas – às vezes, dividindo um cômodo – e não conseguirão obedecer ao distanciamento social? O que acontecerá quando atingir famílias sem água encanada para lavar as mãos constantemente e sem dinheiro para comprar um frasco de álcool gel?
O coronavírus tem se espalhado de forma muito rápida pelo Brasil. Em diversas partes do país, já ocorre a transmissão comunitária, ou seja, quando não é possível rastrear a origem da infecção.
Não é somente por contato físico com pessoas que viajaram ao exterior que se pode contrair o vírus, mas também no dia a dia, por meio das aglomerações que muitos grupos enfrentam, principalmente, em grandes centros urbanos.
“Muitas pessoas, provavelmente, vão se contaminar nesse transporte público de má qualidade que nós temos, apinhado de gente, sem o menor respeito pelo conforto e pela distância necessária entre as pessoas”, diz o médico sanitarista da Fundação Oswaldo Cruz, Paulo Buss.
Uma das principais recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para evitar o contágio pelo novo coronavírus é ficar em casa. Por isso, muitas empresas têm possibilitado que seus funcionários trabalhem em seus lares, no chamado sistema home office, ou oferecido as férias coletivas neste período.
No entanto, o isolamento social é um privilégio que não atinge a classe mais baixa da sociedade. “Tem muita gente que trabalha de forma pontual, como ambulantes, que dependem do movimento das pessoas. Como essas pessoas vão ficar agora, visto que muitas delas não possuem garantias trabalhistas, não possuem proteção previdenciária? Como elas vão fazer se essa quarentena se estender por mais de 20 dias?”, pontua André Lima, morador da comunidade de Manguinhos (RJ), ativista social e conselheiro de saúde.
“O pai de família não vai ficar esperando cair do céu o alimento pros seus filhos que estão chorando de fome. Então, é preciso solidariedade das favelas, solidariedade das pessoas que estão fora das favelas, mas é preciso que o poder público também faça a sua parte”, completa.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em janeiro deste ano, na média nacional, a taxa de trabalhadores informais é de 41,1%. Os trabalhadores informais são aqueles que trabalham sem carteira registrada e que não contam com direitos como salário fixo e férias remuneradas.
“A recomendação de ficar em casa, tanto no asfalto quanto na favela, é importante, mas é praticamente impossível, porque as pessoas vão tirar seus sustentos de onde? De dentro de casa? Então não há muito como a gente deixar de reconhecer que, se a gente quer que as pessoas fiquem em casa, vamos ter que criar uma renda adicional para as pessoas”, reforça o médico sanitarista Paulo Buss.
Mesmo que seja possível ficar em casa num momento de quarentena ou isolamento social, os moradores das favelas brasileiras encontram outro problema: o adensamento populacional. “Tem muitas kitnets, tem muitas casas de quatro metros por quatro metros – com cozinha e banheiro incluídos nesses 16 metros quadrados. E como você mantém uma família acondicionada nesse espaço físico num período de 20 a 30 dias?”, questiona o morador de Manguinhos, André Lima.
As favelas brasileiras possuem uma série de vulnerabilidades. No que diz respeito à estrutura, as políticas públicas não chegam a estes locais, resultando em serviços precários de coleta de lixo, fornecimento de água e de esgoto. Este é um cenário propício para proliferação de bactérias e de contágio por vírus.
“Nem todas as favelas têm um fornecimento de água adequado. Então, essa é outra questão: como o morador da favela vai lavar suas mãos, usar o álcool em gel e outras questões se isso lhe é negado no cotidiano, no dia a dia?”, diz André.
Essa é a realidade de 13,6 milhões de brasileiros, como Rosane Soares, estudante de Direito, integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP e moradora da Vila Moraes, comunidade localizada em São Bernardo do Campo (SP).
Morando em uma casa com outras seis pessoas, Rosane ressalta a falta de acesso a materiais de higiene devido ao alto custo deles. “A divulgação aqui na periferia tem chegado, sim. Mas não tem uma efetividade, porque a gente não consegue fazer com que essa prevenção aconteça na prática. Os materiais para a prevenção estão muito caros. Falta a disponibilidade desses materiais para nos ajudar, porque se é uma casa que tem muita gente, ou a gente compra esses materiais de prevenção ou a gente compra um botijão de gás, por exemplo”.
Por conta da alta demanda causada pelo coronavírus, materiais como álcool gel e máscaras cirúrgicas estão sendo encontrados para comercialização com preços absurdos. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) até abriu um processo no último dia 18 para investigar o aumento abusivo.
“Meu menino é barbeiro. Então ele corta um cabelo, em média R$ 20 pelo valor do corte. Disso, desconta a parte que fica pro salão, então são R$ 10. Esses R$10 não pagam nem o material de prevenção que ele tem que comprar”, explica a estudante de Direito.
Com condições precárias de moradia e de higiene, os moradores das favelas do país logo estarão entre os mais afetados pelo novo coronavírus.
Para muitos, a preocupação é como o novo vírus afetará o Sistema Único de Saúde (SUS). “O SUS vem sendo desmontado, especialmente a partir da Emenda Constitucional 95”, afirma André Lima.
A Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016, que impôs o Teto dos Gastos, prevê limitação das despesas primárias do orçamento público à variação inflacionária por 20 anos. No período, não haverá crescimento real das despesas que englobam áreas como saúde e educação. A longo prazo, a política irá acentuar as desigualdades no país, comprometendo as condições de sobrevivência da população, principalmente de grupos pobres.
Em tempos de coronavírus, a EC 95 pode levar ao colapso da saúde pública, que já é, historicamente, sucateada. “Provavelmente, 5% ou 6%, ou seja, menos de uma em cada dez, quinze, vinte pessoas que estiverem contagiadas com o vírus vai precisar de um hospital. Mas isso multiplicado pelo número de habitantes que a gente tem na cidade vai gerar um caos muito grande no serviço público, que não tem leitos suficientes para uma explosão de necessidade”, explica o médico sanitarista Paulo Buss.
A doença que chegou ao Brasil pela classe alta vai impactar ainda mais a vida já vulnerável dos grupos pobres e extremamente pobres do país. É preciso que cidadãos e poder público tenham esse cenário claro e busquem colaborar com aqueles que mais precisam. E que essa preocupação vá para além do período de pandemia de Covid-19.
Como a Covid-19 impacta a saúde mental dos profissionais que atuam em hospitais
01/04/2020 @ 12:48
[…] o governo não tem tomado medidas efetivas para proteger as populações mais vulneráveis, como as pessoas da periferia, a população em situação de rua, e as comunidades indígenas, quilombolas e […]