Depois de ficar 4 anos preso, homem negro foi inocentado após carta para STF
João não havia cometido o crime, e através da biblioteca do presidio que cumpria pena, estudou e descobriu que seu caso havia muitos procedimentos incorretos.
João (nome fictício), um homem negro de 23 anos, pedreiro, foi condenado a oito anos e dez meses de reclusão por um assalto ocorrido em 2018 em um bairro da periferia de São Paulo. João não havia cometido o crime, e através da biblioteca do presídio que cumpria pena, estudou e verificou que seu caso havia muitos procedimentos incorretos.
“Comecei a ler até entender a lei. Vi que reconhecimento por foto não era correto. Falei com funcionários do presídio e todo mundo me falava que isso não existe, que eu tinha de recorrer. Alguém me orientou a escrever para Brasília.”
Na correspondência, ele credita sua prisão ao preconceito por causa de uma condenação anterior — ele estava cumprindo regime semiaberto por um roubo. “Os policiais pegaram o primeiro que apareceu na frente, viram que eu tinha passagem e me prenderam”, diz.
Começa assim a carta que libertou João (nome fictício) da cadeia depois de quatro anos em regime fechado: “Aos excelentíssimos senhores ministros, declaro para os devidos fins que sou pessoa humilde, não podendo pagar um advogado particular. Pedindo então o auxílio de um defensor público”.
O assunto do texto: “Pedido de Revisão Criminal”. O destinatário era o Supremo Tribunal Federal (STF). A correspondência, escrita na cela de um presídio no interior de São Paulo, chegou a Brasília e foi encaminhada à Defensoria Pública da União (DPU), que assumiu o caso e entrou com um recurso no STF.
Para três dos cinco ministros da 2ª turma do Supremo, a detenção não seguiu a lei e o jovem fora condenado sem provas. Ele foi inocentado em fevereiro.
O caso de João começou em uma noite chuvosa no final de 2018, quando três pessoas foram assaltadas em frente a uma casa na periferia paulistana.
Eram três os ladrões, um deles armado. O trio levou um relógio, um celular e R$ 100. A Polícia Militar foi chamada, e passou a circular pelas ruas.
Uma hora depois, em uma ciclovia que liga vários bairros da região, os policiais “avistaram um indivíduo correndo em desabalada carreira”, segundo o boletim de ocorrência.
Era João. “Eu estava voltando de uma balada, não sabia de roubo nenhum. Estava correndo porque chovia forte, e eu queria chegar rápido em casa. Quando passava embaixo de um viaduto, apareceram uns policiais atrás da pilastra”, conta.
Os agentes relataram que não foi encontrado “nada de ilícito” com o jovem — o paradeiro da arma usada no crime é desconhecido. “Indagado acerca do roubo, este negou ?a conduta”, os PMs disseram ao delegado, mais tarde.
Os policiais então tiraram uma foto do jovem e a enviaram pelo WhatsApp para colegas que estavam com as três vítimas. Elas disseram ter reconhecido João pela imagem no celular. Ele foi preso em flagrante — ninguém mais foi detido. Mais tarde, na delegacia, as três vítimas o reconheceram pessoalmente.
O problema é que todo o processo criminal que se seguiu, calhamaço que por anos mobilizou promotores, defensores, desembargadores e até ministros do STF, foi baseado nesse reconhecimento produzido de uma maneira considerada ilegal pela própria Justiça.
Pessoas parecidas fisicamente devem ser colocadas lado a lado, e a vítima vai apontar quem ela acredita ser o autor do crime. Ou seja, não é permitido colocar uma pessoa baixa, branca e loira ao lado de um homem negro, alto e corpulento.
Com João essas regras nunca foram seguidas. Na delegacia, as vítimas o reconheceram novamente, mas ele foi a única pessoa apresentada pelo delegado. Em audiência no fórum, aconteceu da mesma forma.
O argumento da defesa sempre versou sobre esse ponto: João foi reconhecido de maneira ilegal, e não havia outras provas contra ele.
Para a mãe de João, a abordagem policial e a condenação foram influenciadas pelo racismo. Ela acredita que a história teria sido outra se seu filho fosse branco.
“Se você é negro, se anda na rua com determinada roupa, de chinelo, já te veem como maloqueiro, ladrão. Passei por isso também, muitas vezes. Em qualquer abordagem tem essa diferença. Se meu filho fosse loiro, cabelo liso, teria sido solto, porque ele não estava com nada, não estava com arma, nada.”
Ela conta que, depois de quatro anos, a cadeia mudou seu filho.
“Ele voltou outra pessoa: magro, sem vontade de comer, não consegue dormir, não sai de casa, não tem ânimo para nada. E eu morro de medo de ele sair e ser preso de novo, não paro de ligar para saber onde ele está”, diz.
João, que parou de estudar no Ensino Médio, é um exemplo do perfil majoritário dos presos do Brasil: negro, jovem, de pouco estudo e baixa renda. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, dois em cada três detentos são negros — apenas 51% concluíram o Ensino Fundamental. Já 62,3% têm entre 18 e 34 anos.
Em 2020, o Brasil tinha 919.651 pessoas detidas, alta de 209% em relação a 2005 — os dados são do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O número de vagas no sistema, porém, era de 442 mil.
Embora o Código Penal preveja mais de mil crimes, apenas três deles correspondem a 71% de todo o sistema carcerário: tráfico, furto e roubo. Já delitos contra a pessoa, como homicídio, respondem por 11,3% do total.
Fonte: BBC Brasil