A solidão tem cor: o sofrimento das mulheres negras no Brasil
A solidão está presente em diversos aspectos de suas vidas, da falta de representação na mídia à sexualização
Por: Isabela Alves
O período da escravidão foi um dos mais sombrios e cruéis do Brasil. Por conta da cor da pele, os negros eram vistos como seres inferiores e eram submetidos a todo o tipo de atrocidade. Capturados nas terras onde viviam no continente africano, foram trazidos à força para a América em grandes navios e, nessas embarcações precárias, muitos morreram por conta das doenças, dos maus-tratos e da fome.
Os que sobreviveram à travessia, logo que chegaram ao Brasil, foram afastados dos seus familiares, cultura e religião. Eram vistos como seres sem alma e sentimentos, e, por conta dessa visão, foram submetidos a trabalhar sob pena de castigos violentos.
Açoitados, humilhados e flagelados. Essa história perdurou por cerca de 300 anos no país, e até os dias atuais é possível ver seus impactos sociais, políticos e culturais.
“Nossa sociedade tem uma herança patriarcal e escravocrata que até hoje impacta nas possibilidades de ser, falar e existir. Infelizmente, ainda se tem na sociedade a percepção de que alguns são mais ou menos humanos do que outros. Isso leva a uma naturalização das desigualdades e da violência sofrida por determinados grupos”, explica a psicóloga Mariana Cancoro de Matos, que atua com foco em saúde mental da mulher e relações étnico-raciais.
A violência contra os negros continua se manifestando de diversas maneiras na atualidade. No Brasil, sete em cada dez pessoas assassinadas são negras, segundo o Atlas da Violência 2017. E, na faixa etária de 15 a 29 anos, cinco pessoas negras são vítimas de violência a cada duas horas. Outro dado alarmante, este divulgado pelo IBGE, aponta que pretos e pardos recebem salários menores e são os mais afetados pelo desemprego, o trabalho infantil e o analfabetismo.
Neste contexto, as meninas e mulheres negras acabam sendo as mais vulneráveis a diferentes formas de violência. Segundo dados do Mapa da Violência, em 10 anos, os homicídios de mulheres negras aumentaram 54%, passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. Em contrapartida, o número de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%, indo de 1.747 em 2003 para 1.576 em 2013.
De acordo com a psicóloga Mariana de Matos, o racismo não é um tema superado e não pode ser visto como algo naturalizado na cultura brasileira. “Não tem nada de ‘natural’ sobre as desigualdades que vivemos e as diferenças de oportunidade. Isso é uma construção histórica e social. Já passou da hora de entendermos que o racismo não tem relação com o quanto você é uma pessoa ‘do bem’. Não se resume apenas aos xingamentos diretos contra pessoas negras. Sendo um sistema de opressão, vai além disso. É preciso olhar criticamente para o contexto social, repensar nossa história, nomear essas questões, pensar soluções”.
As trajetórias das mulheres negras brasileiras são permeadas pela solidão. Elas se sentem, muitas vezes, solitárias por não se verem representadas na mídia e por serem sexualizadas. Com isso, sua autoestima é afetada e as mulheres negras ficam mais vulneráveis a relacionamentos abusivos, por exemplo.
“A solidão da mulher negra começa muito cedo e nós todos precisamos ter pressa por mudança, para termos meninas e mulheres negras vivendo plenamente a afetividade em todas as suas formas. Essa realidade só vai mudar a partir do combate ao racismo, machismo e outros sistemas de opressão”, completa.
“A mulher negra é vista como carne barata. A sociedade também tem essa ideia de que a mulher negra aguenta tudo, por isso somos tão maltratadas”
Jozileia Belisiario, de 30 anos, lembra que estava na terceira série do ensino fundamental (hoje quarto ano) quando sofreu racismo pela primeira vez. Por conta da sua pele escura e tranças no cabelo, sua professora fazia piadas e degradava sua imagem o tempo todo. “Ela falava que meu cabelo era uma cortina e também sempre me falava que os negros deviam agradecer que um dia foram libertados da escravidão”.
Por conta disso, ainda muito pequena, a menina se via excluída e diferente dos demais. Não tinha amigos e ninguém queria sentar próximo a ela na sala de aula. Apesar de sempre tirar boas notas, só a usavam como exemplo quando o assunto era escravidão ou carnaval. “Na época eu não entendia o que aquilo significava, mas hoje vejo que era um racismo estrutural. Eu só não consigo entender como um adulto consegue fazer isso com uma criança. É um tipo de redução devastadora”.
Jozileia não se sentia bonita e nem boa o suficiente, e esse pensamento a acompanhou até a adolescência. Começou então a ter compulsão por magreza e a alisar os cabelos para se encaixar nos padrões. “Eu não me reconhecia. Quando alisava o cabelo, por exemplo, sentia que não tinha identidade. Eu chegava às sete horas da manhã no cabeleireiro e às três da tarde ainda não havia saído de lá”, lembra.
Engravidou no último ano do ensino médio e achou que seu futuro estava acabado. Não sabia como iria criar aquela criança e nem para onde iria. No início, o pai do menino, com quem a moça namorava fazia 3 anos, foi a pessoa que mais a apoiou e disse que os dois passariam por isso juntos.
“Achei que tudo ia dar certo, mas assim que o menino completou 6 meses de nascido, de repente, ele disse que não tinha mais dinheiro para nada e foi deixando o filho de lado. Chegou um momento que eu cansei de pedir 20 reais para comprar uma dipirona ou 50 reais para comprar fraldas… Atualmente faz quatro anos que ele não vê o filho”, conta. A mãe dela, que também havia sido mãe solteira, foi a única que a apoiou o tempo todo.
Anos depois, Jozileia se casou novamente, teve o segundo filho e foi nessa época que ocorreu outra frustração em sua vida: era um relacionamento abusivo. Ela relembra que sofria muita violência psicológica. O marido a obrigou a se afastar dos amigos e familiares, e, quando Jozileia estava totalmente vulnerável, ele começou a tratá-la como inferior.
“A mulher negra é vista como carne barata. A sociedade também tem essa ideia de que a mulher negra aguenta tudo, por isso somos tão maltratadas. A falta de afeto faz com que a gente fique mais vulnerável e por isso muitas conseguem ser facilmente enganadas”, conta.
Entrou em depressão e ficou doente por três anos. Foi através de grupos nas redes sociais que ela conseguiu conhecer outras mulheres negras que passavam pela mesma situação. Isso foi fundamental para que ela se fortalecesse, terminasse o relacionamento e reconstruísse sua vida.
“No período de depressão, eu sentia vontade de conversar com as pessoas. Posteriormente criei a página Resista, Preta para ajudar outras mulheres. Às vezes, a gente só está precisando de um apoio e saber que nós não estamos sozinhas”.
Jozileia criou os dois filhos, conseguiu comprar o seu apartamento e se formou na faculdade. Atualmente, trabalha como educadora e o que mais preza é o empoderamento na primeira infância. “Elogiar um sorriso e um cabelo faz a diferença na vida dessas crianças. É preciso empoderá-las para que sejam fortes e criem a consciência que podem chegar aonde quiserem. Como educadora também procuro falar da África como um império e as raízes do povo negro”, conclui.
“Aí você vê como a vida de uma jovem negra é muito precoce. Eu passei por muita coisa e existem vários traumas da minha vida que não tratei”
Débora Castro, 21, conta que sempre se sentiu culpada por todo o preconceito que sofria. “É difícil explicar. Até dentro da minha família eu me sentia diferenciada. Na escola, eu era feia porque era negra. Existiam outras negras, mas elas eram consideradas pardas, então não pesava muito para elas”.
Foi no ambiente escolar inclusive que chegou a apanhar e sofrer assédio por conta da pele. Na adolescência, não se encaixava nos padrões sociais, não se via representada em nenhum lugar e sentia que nunca seria amada. “O Justin Bieber era o maior ídolo adolescente na minha época e ele sempre levava aos palcos para cantar com ele meninas brancas. Para mim, aquilo fazia total diferença. Eu não me achava bonita como aquelas meninas. Até na escola eu nunca me permiti ter sentimentos por meninos, porque achava que não seria correspondida“.
Dentro de casa também enfrentava sérios problemas. Seu pai, que trabalhava como carcereiro, envolveu-se com cocaína e crack no emprego. Conviver com tal realidade lhe fazia muito mal e ele acabava descontando seu mau humor sendo violento com a esposa e a filha. Débora recorda que o pai mal a deixava falar e, se ela falasse, apanhava.
A violência psicológica era tamanha que assim que completou a maioridade saiu de casa. No entanto, quem mais sofreu com essa situação foi sua mãe, que acabou adoecendo tempos depois. “Oito meses depois que saí de casa, minha mãe faleceu. Ela ficou com meningite e não queria tomar os remédios. Ela morreu aos poucos…”, relembra, com a voz embargada.
A perda da mãe a deixou desolada. Tinha que se sustentar sozinha e não poderia mais contar com a pessoa que mais amava no mundo. Uma de suas válvulas de escape foi um sarau de jovens negros. Nestas reuniões, a jovem se sentiu acolhida e começou a se descobrir como mulher negra. Foi nessa mesma época que ela realizou a transição do cabelo alisado para o cabelo natural e começou a se interessar mais pela cultura africana.
Em 2015, assistiu ao primeiro filme com negros protagonistas. ‘Straight Outta Compton: A História do N.W.A.’ retratava a história do grupo de música gangsta rap N.W.A. entre 1987 e 1995. “O bairro, a música, o estilo de roupa, tudo parecia demais com o que eu via no meu bairro na Zona Leste [de São Paulo]. Ver aquilo me deu esperança. Depois disso comecei a escutar mais artistas negros, como Racionais MC’s, por exemplo. Esses caras contam a realidade da periferia e foi incrível reconhecer minha vida através da arte deles”, conta.
No entanto, uma iniciativa que trouxe tantas alegrias também foi a que lhe trouxe um de seus maiores traumas. Em uma noite, o representante do sarau a convidou para ir na sua casa e disse que sua esposa estava lá. Quando chegaram ao local, Débora descobriu que era mentira. Naquela noite, ela sofreu abuso sexual.
“Aí você vê como a vida de uma jovem negra é muito precoce. Eu passei por muita coisa e existem vários traumas da minha vida que não tratei porque nunca tive ajuda psicológica. Minha mãe era depressiva e meu pai falava que depressão é coisa do diabo. Eu só fui ter ajuda quando explodi”, conta.
Por estar fragilizada, Débora acabou entrando em um relacionamento abusivo. Apenas dois meses depois de conhecer o rapaz, ela foi morar com ele, para fugir da solidão. Segundo ela, esse relacionamento foi muito nocivo para sua saúde mental.
“Um mês depois do término, tentei o suicídio. Tomei todos os remédios possíveis. Eu pensei: ‘se no dia seguinte eu acordar, vou tentar fazer algo por mim’. Dormi durante duas horas e quando acordei não conseguia ficar em pé. Foram meus amigos que me levaram ao hospital e cuidaram de mim. Comecei a tomar antidepressivo e tive que recomeçar minha vida do início”, conta Débora.
Tudo começou a fazer sentido: ela não era culpada por nada que havia acontecido na sua vida. Todo o medo e a insegurança que ela sentia eram reflexo da violência que sofria desde pequena. Débora então resolveu respirar fundo e erguer a cabeça. Começou a ver que poderia ter uma vida melhor que aquela, mais feliz.
Apesar disso, fica transtornada por enxergar o quanto o mundo pode ser cruel com a população negra.“Tenho medo do meu irmão, que é mais alto e preto que eu, ser exterminado pela polícia por causa da cor da pele. Tenho medo pelo meu primo que quase foi preso aos 16 anos por estar portando um cigarro de maconha. E eu tenho medo de sair de casa e ser estuprada, porque alguns enxergam a mulher preta como lixo e com isso entendem que podem fazer qualquer coisa”.
Mesmo com tudo isso, ela acredita que a situação vai melhorar por conta das novas gerações. “As pessoas negras estão se redescobrindo. É como aquela música do Rincon Sapiência: ‘pretos e pretas estão se amando’. A geração nova está vindo com um peso maior e é nisso que eu tenho fé”, conclui.
Joana
28/12/2018 @ 16:30
Sou negra,tenho 42 e anos tenho uma filha de 9 e sofro racismo de todas as formas, mas o preconceito teme que acabar entre os negros primeiro, princivilmente homens negros em relação às negras.
Darlon Shelter
04/07/2020 @ 23:46
Joana, concordo plenamente com você, quando sabemos que muitos negros famosos,
principalmente jogadores de futebol, incluindo o Pelé, só namoraram loiras, enquanto temos tantas negras lindas pelo Brasil. Quero dizer: não sou contra a miscigenação, e muito menos pretendo saber o que eles fazem com suas fortunas. Alguém vai ler este post, e erroneamente vai deduzir: esse fulano está insinuando, que o negro deve casar-se com a negra, e o branquelo com a branquela? Errado! Como disse antes, a miscigenação é importante, para que não haja tanto preconceito de cor no nosso país. E por falar no Pelé, não nos esqueçamos, que ele nunca quis reconhecer a paternidade, e registrar a filha Sandra no seu nome – e foi preciso acaloradas brigas nos tribunais para que isso acontecesse. Resumo da ópera: de quem a gente jamais esperava, o maldito do preconceito estava implícito.
Maria Marcella
27/09/2020 @ 20:36
Estou aqui refeltindo sobre o quanto nós mulheres negras somos preteridas em diversas esferas na sociedade. O fardo, vestígios que carregamos ainda da maldita escravidão. Assim como a Joana colocou, eu queria entender o porque o HOMEM negro (não todos , porem boa parte) geralmente com notoriedade, visibilidade tende a se relacioar só com mulheres brancas, e isso é algo que me intriga, oras somos todos NEGROS, deveria ser natural… Faço minhas a palavras de Darlon, não que somos contra a miscigenação, sou favor, mas vejo uma certa resistência por parte do homem negro a assumir a relação com uma mulher negra…..Será medo de sofrer racismo, ou de achar a mulher negra é realmente inferior a mulher branca?! Enfim o racismo está presente até em nosso povo, isso é racismo estrutural……..um câncer, e nisso tudo quem sofre ainda mais é a mulher negra….
Mario zeferino filho
17/11/2020 @ 20:15
Mesmo com tudo isso, ela acredita que a situação vai melhorar por conta das novas gerações. “As pessoas negras estão se redescobrindo. É como aquela música do Rincon Sapiência: ‘pretos e pretas estão se amando’. A geração nova está vindo com um peso maior e é nisso que eu tenho fé”, conclui.
Gostei …. muito f
Julia
22/01/2021 @ 11:22
Concordo isso nao pode continuar
OSC e Casa de Marias promovem saúde mental de mulheres negras
05/11/2021 @ 11:08
[…] a saúde mental das mulheres negras e que implicam suscetibilidades distintas e exposições a riscos específicos de sofrimento psicológico. Os estigmas, as violências e as dificuldades são particulares para cada uma. Além disso, […]
Jose
14/04/2022 @ 07:43
Tem negras que esnobam negros , lembram da cor quando tomam desaforo.
Muitod não se consideram negros, falta esclarecimento.