Como a maternidade afeta a carreira científica de mulheres no Brasil
Preconceito, falta de apoio das instituições de pesquisa e fato de serem consideradas as principais responsáveis pelos filhos dificultam retorno de cientistas e pesquisadoras ao trabalho
Por: Mariana Lima
A pesquisa ‘Parent in Science’ traz uma série de dados sobre o impacto da maternidade na carreira científica das mulheres brasileiras. O estudo contou com um questionário online e foi respondido por 1.182 docentes do país no segundo semestre de 2017.
A pesquisa foi encabeçada pela bióloga Fernanda Staniscuaski, mãe de três crianças, que sentiu na pele como a comunidade científica não está preparada para apoiar e receber cientistas e pesquisadoras mães de volta ao trabalho nas instituições, ou incluí-las nos editais e bolsas de fomento às pesquisas.
De acordo com o estudo, as cientistas com filhos enfrentam uma queda drástica no número de publicações até o 4° ano após o nascimento do filho. A partir de então, a produção científica delas volta a crescer.
Dentre o perfil das mulheres que responderam o questionário, 77% eram mães e 54% eram as únicas responsáveis pelo cuidado dos filhos. A média de idade delas no momento da chegada do primeiro filho era de 32 anos, período que costuma ser o ápice da produção científica de pesquisadores.
Entre as que responderam o questionário, 59% responderam que a maternidade teve um impacto negativo em suas carreiras e outros 22% responderam que o impacto foi “bastante negativo”. As entrevistadas relataram a falta de apoio das instituições às quais estão vinculadas em relação à maternidade, além dos impactos na saúde mental.
45% das entrevistadas responderam que não têm tempo para trabalhar em casa, ou declaram que muito raramente ou com muita dificuldade têm essa disponibilidade.
Mulheres: trabalho dentro e fora de casa
Para a pesquisadora e cientista social da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Moema de Castro Guedes, a educação é fundamental para a construção de uma nova percepção da responsabilidade de gênero.
“Em muitos lugares no país, o casamento e os filhos são vistos como uma solução para muitas meninas que não podem ou não têm acesso aos estudos. E isso é muito ruim, porque deixa de ser uma escolha delas”.
A pesquisadora ainda ressalta que às mulheres, principalmente de regiões rurais e periféricas, são atribuídas carreiras sem perspectiva, que não oferecem um crescimento.
“As mulheres que estudam acabam adiando o momento de ter filhos, geralmente aguardam a estabilidade profissional. Isso diminui as chances de abandonarem suas carreiras”.
Moema considera que a escolha de adiar esse momento, principalmente no caso de cientistas e pesquisadoras, deve-se à falta de amparo de universidades e centros de pesquisa, já que poucos oferecem auxílio para que elas consigam colocar as crianças em creches, por exemplo.
“O cuidado dos filhos ainda pesa mais para as mulheres, e isso alimenta uma noção de ‘escolha de Sofia’: filhos versus produção científica. Não deveria funcionar desta maneira”.
Cientistas com bolsas de apoio à pesquisa, em caso de parto, adoção ou obtenção de guarda judicial, podem desde 2017 – como resultado da lei n° 13.536 -, prorrogar em até 120 dias bolsas concedidas por agência de fomento e de até 1 ano de duração.
A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) apresentou em 2011 uma portaria em que já previa benefício semelhante, mas para bolsas de mestrado e doutorado com duração igual ou superior a 24 meses.
Em 2015, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) estabeleceu um regime de prorrogação de bolsas em caso de maternidade (parto ou adoção).
O período de pouca ou nenhuma produção científica que a maternidade exige, no entanto, prejudica a aprovação das cientistas mães em editais de fomento a pesquisas e de bolsas de produtividade.
Em março de 2019, como reflexo dos dados coletados pelo ‘Parent in Science’ e da mobilização do movimento ‘Maternidade no Lattes’, o currículo Lattes passou a permitir que os pesquisadores incluam períodos de licença-maternidade ou paternidade.
Físicas, matemáticas, biólogas e mães
A bióloga, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), professora visitante da Harvard University e membro do projeto ‘Parent in Science’, Fernanda Werneck, aponta que a área biológica não expõe tantas diferenças de gênero como outras.
“Havia muitas mulheres na minha turma de graduação. Naquela época, questões de gênero não me saltavam os olhos, mas com o mestrado e o doutorado, o ‘vazamento’ na progressão ficou mais claro, pois a saída de mulheres era numerosa. ”
Nesta etapa de seus estudos, situações de machismo e sexismo se tornaram mais evidentes. “Muitas das coisas que aconteciam eram sutis, e na época não havia um debate como temos hoje, então em muitos momentos eu não percebia que aquela situação era machista”.
Fernanda revela que já passou por muitas situações “pesadas” no meio acadêmico e no espaço de trabalho, principalmente em relação a sua presença naquele ambiente.
“Quando eu estava fazendo a qualificação do meu mestrado, eu fui questionada se havia mesmo escrito o trabalho. Falavam que estava muito bem escrito para ser de uma aluna, que só podia ter sido o meu orientador”.
Além de ter que provar que o trabalho era seu, Fernanda ouviu da banca que não conseguiria concluir o trabalho, que era ambicioso demais para ela. No final, ela conseguiu, publicou artigos sobre o tema e foi para a defesa confiante.
“Se eu tivesse balançado naquele momento, talvez eu tivesse ‘vazado’ ali. São vários os momentos em que temos nossas escolhas pessoais, a capacidade de desenvolver nosso trabalho de campo e realizar viagens a trabalho questionadas”.
Fernanda engravidou durante o mestrado. Hoje sua filha tem 14 anos. Sobre a maternidade, os obstáculos se apresentaram na hora dos trabalhos de campo.
“Conciliar a ida a campo, as atividades e viagens de trabalho – a mobilidade científica – com as dificuldades adicionais da maternidade é um problema amplamente disseminado para mulheres pesquisadoras”.
Ao engravidar, Fernanda não recebeu apoio institucional, pois nem bolsa licença-maternidade a instituição oferecia. Ela recebeu apenas um prazo adicional de 4 meses para terminar a dissertação, mas sem remuneração.
“Eu tive muito pouco apoio. Como eu fui mãe cedo, não senti aquela queda de produtividade. Eu nunca soube fazer ciência de outro jeito, sem ser mãe. Fácil não é, então precisamos de uma rede de apoio”.
E completa: “Sem a rede de apoio, seja a família ou a instituição, as coisas ficam extremamente difíceis. Às vezes, só com o valor da bolsa não dá nem para pagar uma creche”.
Fernanda possui uma vasta experiência em coordenar, organizar e executar expedições de campo na Amazônia, na Caatinga e no Cerrado, e mesmo assim ela foi questionada sobre como equilibraria o cuidado da filha com os projetos.
“Como você vai fazer trabalho de campo na Amazônia?”, chegou a ouvir. “Para mim, como sempre fiz. Não é adequado fazer perguntas como esta durante processos públicos, editais ou bolsas de fomento à pesquisa. Chega a ser revoltante que a questão dos filhos só afete as pesquisadoras”.
A matemática e professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Cecília Salgado, sempre teve interesse pela área de exatas. Quando pequena, desejava ser astronauta e astrônoma. “Meu pai dizia que para isso eu teria que estudar muita matemática, o que nunca me pareceu um problema. Acabei gostando tanto que não parei”.
A família e as instituições de ensino de sua infância foram fundamentais para alimentar seu interesse pela área. “Foi muito importante ter professoras, mulheres, de matemática. A matemática nunca me pareceu algo que não fosse para mim. Meus pais não só me apoiaram em minhas escolhas, mas também sempre buscaram me apresentar diversas opções”.
Na graduação, os primeiros obstáculos referentes ao machismo, preconceito e sexismo se tornaram evidentes em sua vida. Cecília ouviu de colegas e professores que seu lugar não era ali, que estava desperdiçando seu tempo e o deles, pois no final acabaria se casando e deixando a carreira.
Com a chegada da maternidade, as dificuldades e pressões não diminuíram, mas a matemática recebeu apoio. “A vida como pesquisadora é flexível, mas a cobrança é grande. Como professora, tive licença de seis meses. Foi fundamental ter esse tempo em casa com meus filhos. Meu instituto sempre me apoiou”.
Para ela, a discussão sobre a maternidade no ambiente científico vem aumentando e ganhando maiores contornos, o que é fundamental para inclusão e permanência de mais mulheres em instituições de pesquisas e em trabalhos de campo.
“A academia vem discutindo o assunto. Ainda há muito a ser feito e muitas mulheres que se tornam mães acabam sendo afastadas, mas essas discussões já trouxeram avanços importantes. É essencial continuarmos discutindo, não apenas entre mulheres, mas com todos. É preciso discutir a questão não só da maternidade, mas da busca de um ambiente mais diverso e acolhedor”.
Programação: território dominado por homens
Janynne Gomes é programadora, formada em Sistemas da Informação, e foi nomeada como Microsoft Student Partner. Além disso, participou de um Bootcamp de Robótica na NASA, no qual colaborou com a criação de um software de controle de um LIDAR, em um projeto cujo escopo era realizar a exploração espacial em Marte de forma autônoma, com robôs interligados em rede. Janynne é mãe de duas crianças.
Quando estava passando um orçamento para um trabalho de desenvolvimento de sistema, ela informou que não poderia trabalhar por mais de 3 horas ao dia em consequência dos filhos pequenos.
“Ele [profissional que solicitou o serviço] então me falou: ‘Pra que você foi ter filho?’ Na hora eu fiquei sem ter o que responder, pois eu não esperava esse tipo de pensamento e ter que discutir isso em uma reunião de trabalho”.
A programadora mantém uma página no Facebook em que relata o dia a dia de uma mulher na programação. O ‘Diário de uma programadora’ surgiu há 9 anos, quando participou do Bootcamp de Robótica na NASA, e Janynne considera que a página superou suas expectativas iniciais.
“Hoje, graças a ela, eu recebo convites para palestrar online e presencialmente em várias faculdades, seja para falar das tecnologias que estou utilizando com meus clientes e projetos, seja para contar minha história e inspirar mulheres e garotas e entrarem para a programação”.
O interesse pela área veio ainda criança. Janynne era bastante curiosa, e via na mãe uma motivação para o seu interesse. “Ela me inspirou por ser muito criativa. Ela inventava novos jeitos de utilizar um objeto, reciclava e restaurava. Isso acabou refletindo em mim e na minha mania de querer sempre inventar uma coisa nova”.
O apoio familiar para o desenvolvimento de sua carreira era frequente. Os pais viam sua curiosidade e sabiam que ela não seguiria um caminho convencional.
Em relação às oportunidades para as mulheres na programação, Janynne considera que os homens acabam sendo mais favorecidos, por terem mais oportunidades para desenvolver o conhecimento técnico e não assumirem muitas das responsabilidades familiares.
“Hoje faço parte de um grupo ainda mais seleto, mães programadoras, que cada vez mais tem menos oportunidades de trabalho, em qualquer área. Acredito que os homens têm mais oportunidades só pelo fato de terem mais disponibilidade para viajar, para fazer horas extras, tempo de estudar e ter mais qualificação técnica”.
Nos posts da página, Janynne compartilha softwares que criou, a rotina de estudo com os filhos por perto e dicas para quem quer iniciar na programação. O retorno por parte das seguidoras é bem positivo.
“Tento passar sempre essa mensagem de persistência na carreira, nos estudos, pois a vida não é fácil mesmo. Se queremos realizar algo, temos que lutar por isso mais do que os homens”.
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Esta é a 4ª reportagem de uma série sobre mulheres na ciência.
Para ler a primeira, acesse: Mulheres na ciência: os desafios e conquistas de ontem e hoje
Para ler a segunda, acesse: Por que áreas como ciência e tecnologia ainda têm poucas mulheres?
Para ler a terceira, acesse: Iniciativas ajudam mulheres a ingressarem no mundo da programação
Dia Internacional da Mulher | cientistasfeministas
08/03/2020 @ 08:06
[…] sofrendo os maiores impactos ao conciliar maternidade e família com produção e avanço na carreira. Continuamos sofrendo com machismo, estereótipos de gênero, transfobia, homofobia e […]