Educação de jovens e adultos no país sofre com os impactos da pandemia

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Grupos no WhatsApp ajudam muitos jovens e adultos a darem continuidade aos estudos, mas especialistas temem um aumento da evasão escolar e a diminuição dos investimentos no setor, já defasado

Foto: Marcos Santos (USP Imagens) via Fotos Públicas

Por: Mariana Lima

Aos 10 anos, José Marinho precisou parar os estudos. Ele morava em Minas Gerais com a mãe e quatro irmãos, havia perdido o pai e teve que começar a contribuir com o sustento da casa. Entre 1968 e 1969, veio para São Paulo com a família e começou a trabalhar como mecânico.

Há um ano e meio, aposentou-se, mas José, agora com 74 anos, não consegue ficar parado. “Minha esposa chegou um dia e começou a me chamar para ‘ir ali em cima na rua’. Não sabia o que era. Ela queria me inscrever no MOVA”, conta.

Criado há 30 anos no município de São Paulo por Paulo Freire, o MOVA – Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos – se preocupa com uma formação cidadã para quem teve o direito de aprender a ler e escrever negado na idade regular.

“O MOVA foi um lugar em que cheguei, gostei e fiquei. Sou o cara mais velho da turma. Gosto de conversar, de perguntar. Esse negócio online não tá funcionando pra mim. Faço as atividades que a professora manda, mas gosto do cara a cara”.

Ele reforça que sem os encontros, que ocorriam três vezes na semana no período noturno, está sendo difícil, mas que vem se adaptando. “Sempre gostei de aprender. Quero estudar enquanto der. Tô lendo um livro, o ‘Segredo da Dinamarca’, e tô adorando. Não vejo a hora de voltar”.

Saber que pode causar esse impacto na vida das pessoas é o que motiva Heven Carneiro, de 23 anos, a atuar como professora no MOVA em Americanópolis, região do Jabaquara (São Paulo – SP). Com a pandemia, ela precisou se adaptar para continuar perto dos educandos.

“Como não estamos no ensino regular, não temos como trabalhar com o Classroom [ferramenta do Google Education]. Então tenho filmado as atividades e colocado no YouTube. Vou mandando pelo WhatsAAp para eles, mas não são todos que têm acesso”.

Entre os seus 24 alunos, apenas 19 estão no grupo. Além disso, somente 12 são frequentes, ou seja, interagem e devolvem as atividades.

“Muitas das minhas práticas se esvaziaram. Questões que envolvem diálogos e debates não ocorrem no espaço digital. Eles perderam o lugar em que tinham voz e socializavam. É frustrante não conseguir trabalhar o que eles precisam”, desabafa.

O MOVA não trabalha com uma grade fechada, e dialoga com as necessidades dos alunos. Antes da pandemia, Heven pretendia explorar a questão da educação financeira com os estudantes.

“Esse seria um conteúdo essencial para o desenvolvimento da autonomia deles, uma vez que muitos têm dívidas e problemas em se organizarem financeiramente. Quando o tema tem a ver com eles, ficam mais à vontade e se empoderam”.

Foto: Arquivo pessoal | Heven (centro) ganhou uma festa de aniversário dos alunos na sala de aula. “Essa foto é bem a realidade, usamos uma sala que é também das crianças de manhã. A lousa é essa aí, minúscula…. estamos bem alto e dá pra ver da janela toda a favela”, conta Heven.

Contudo, a pandemia não é o único problema que o MOVA vem enfrentando. No dia 28 de abril, sem consulta prévia, a Prefeitura do Município, junto com a Secretaria Municipal de Educação (SME), suspendeu a verba de pagamentos aos educadores do MOVA.

“A desculpa usada era que a ajuda de custo, paga aos educadores, seria para alimentação e transporte, e que eles não têm condições de ofertar as aulas à distância e os educandos não têm como aprender”, aponta Iva Mendes, de 46 anos, educadora, ativista pela educação e membro da coordenação do MOVA-SP.

Ela atua na Educação de Jovens e Adultos (EJA) desde 2001, tendo concluído o ensino médio aos 24 anos nesta modalidade. Ela argumenta que a educação de jovens e adultos não é atraente para o Estado.

“O MOVA recebe o que sobra, quando sobra. Não há investimento porque o público adulto, sem ter atingido o nível médio de escolarização, sofre com a exclusão no mercado de trabalho. Para combater as desigualdades é necessário atender todas as modalidades de ensino”.

A realidade dos alunos como pauta escolar

O CIEJA – Centro Integrado de Educação para Jovens e Adultos – surgiu com a proposta de oferece um ensino que se diferenciasse das escolas regulares para jovens e adultos, espelhando-se no MOVA.

Funcionando em seis períodos com 2h15m de duração cada, o CIEJA oferece mais flexibilidade para alunos que precisam equilibrar os estudos com rotinas de trabalho irregulares.

Os conteúdos não são divididos por disciplina, mas por área de conhecimento em que cada professor fica com os alunos por uma rodada de 30 dias.

“Precisamos ter essa flexibilidade. Quando o aluno sai da rotina de aprendizagem e entra na de casa-trabalho é difícil que ele volte, uma vez que tem demandas mais urgentes. É uma eterna evasão”, esclarece Diego Elias, coordenador-geral no CIEJA Campo Limpo.

Em meio à pandemia, apenas 1.220 dos 1.660 alunos conseguiram ser contatados pela instituição, que através de grupos no WhatsApp vem passando leituras, mensagens de apoio e informações sobre o auxílio emergencial.

“Nossos estudantes são pobres, negros e periféricos. Sem carteira registrada ou renda constante, dependendo do mercado informal. São alunos que têm dificuldade de interpretar uma notícia na televisão. Mantemos essa proximidade para que eles saibam que vamos passar a pandemia de mãos dadas”.

Diego reconhece que os alunos estão neste momento preocupados com a sobrevivência, o que pode afastá-los do ensino. “Temos que olhar para eles sempre. Uma educação remota esvaziada desse caráter humanitário é só pra dizer que tem”.

Essa visão também é compartilhada por Manuela Nogueira, docente do CIEJA Perus I. Inspirada na trajetória da mãe, uma migrante nordestina que parou os estudos devido à necessidade de trabalhar em São Paulo, ela atua na CIEJA pela oportunidade de também aprender com os alunos.

Arte: Mariana Lima | Observatório do Terceiro Setor

A instituição inaugurada em 2016 foi abraçada pela comunidade haitiana que reside na região, o que para ela reforça o papel de se trabalhar com a diversidade dos alunos.

“Essa diversidade deve ser olhada com carinho, ter acolhimento entre os alunos. Eles já tomaram tantos ‘nãos’ e foram excluídos de tantos espaços que o EJA parece o último lugar. Precisamos acolher antes de qualquer coisa”.

A exclusão do ensino que esses alunos enfrentaram dificulta que tenham autonomia para acessar as plataformas destinadas para a educação à distância. “Eles têm questões que acabam sendo mais importantes do que acompanhar as atividades online. Eu tenho 12 salas com 25 alunos cada e só recebi atividades de 3 ou 4 alunos”, revela Manuela.

O risco de um potencial aumento da evasão escolar entre este grupo é observado pelos profissionais da área. Diversificar as atividades passadas para eles é uma forma de mantê-los próximos da educação.

No CIEJA Butantã, os alunos já tiveram a oportunidade de participar de um sarau noturno, atividade que ocorria no sistema presencial e que foi adaptada para o online. Além desta ação, os alunos ainda recebem o ‘Cieja Zap News’, um programa semanal de rádio desenvolvido pelos professores para diversificar o contato com eles.

“É uma ferramenta para não ficarmos limitados às mensagens escritas. Passamos os informes da escola, da cidade e de utilidade pública. Temos um quadro de dúvidas também, além de entrevistas com alunos e professores. Conseguimos alcançá-los melhor desta forma”, conta Laura Cymbalista, professora e membro da coordenação pedagógica do CIEJA Butantã.

A voz no ensino

O áudio se torna um aliado neste momento para a aprendizagem, além de facilitar a comunicação. No Rio Grande do Norte, o rádio e o Ensino de Jovens e Adultos fazem parte da história de diversos municípios e ganharam força durante a pandemia.

Em Caicó, por meio da Rádio Rural, estudantes da EJA podem continuar exercitando seus aprendizados, através do programa EJA em Ação, promovido pela 10ª Diretoria Regional de Ensino e Cultura do município.

Com base na metodologia de Paulo Freire, o programa apresenta uma grade interdisciplinar em que as áreas de conhecimento convergem com um tema central escolhido semanalmente. Toda sexta-feira, a apresentação do programa promove um círculo de cultura para debater e dialogar com os estudantes-ouvintes.

“Conseguimos, de certa forma, democratizar esse acesso com os estudantes e manter os vínculos. Eles já têm uma dificuldade para ficar na escola uma vez que a entrada é garantida, mas a permanência não”, revela Fabíola Maria Dantas, assessora pedagógica responsável pela Educação de Jovens e Adultos (EJA) na região de Caicó e idealizadora do programa.

Professores de diversos municípios participam da programação, sendo incentivados a manterem contato por Whatsapp para acompanhar as atividades e o retorno dos alunos.

“No começo foi bem difícil ter um retorno dos estudantes. Aos poucos fomos conquistando uma participação significativa nas redes sociais. Os alunos também passaram a mandar áudios com perguntas e observações que colocamos no programa”.

E complementa: “Com a visibilidade do EJA podemos fazer com que o próprio estudante não tenha vergonha de falar que estuda neste módulo”.

Alexsandra dos Santos, de 51 anos, é aluna assídua no programa EJA em Ação. Ela parou os estudos aos 17 anos, enquanto cursava o que hoje seria o 8º ano do Ensino Fundamental, após engravidar. Os cuidados com a casa e os filhos fizeram com que a educação se tornasse um sonho distante. Com os filhos crescidos e separada do marido que a impedia de retornar aos estudos, Alexsandra viu a oportunidade de viver a própria vida.

“Meu filhos falavam ‘mãe, volta a estudar’, mas eu me achava muito velha. Depois de passar por um quadro depressivo, resolvi retornar todos aqueles sonhos que tinha abandonado”.

Foto: Arquivo pessoal | Alexandra com sua turma do EJA ainda no presencial.

Alexsandra terminou o ensino fundamental no formato presencial e estava cursando o ensino médio neste formato no Grupo Escolar Senador Guerra, localizado em Caicó, quando a pandemia causou diversas mudanças.

“Me adaptei bem rápido ao modelo radiofônico, mas não tem como substituir as aulas presencias. Elas são maravilhosas e têm a troca com os professores e colegas. O começo foi um pouco chato, mas os professores foram muito criativos, utilizando muito a arte. Aí fomos nos animando”.

Trabalhando como babá, ela vem equilibrando a busca pela renda com a rotina de estudos. Ela ressalta que a dedicação dos professores é uma das motivações para continuar na escola e buscar a graduação em pedagogia.

“Nunca é tarde para aprender. Eu tô muito feliz com os meus estudos. Saber que você tem condições e capacidade para ir longe, não sei descrever a sensação disso”.

Educação é um direito
Arte: Mariana Lima | Observatório do Terceiro Setor

Entre 2010 e 2018, o Ensino de Jovens e Adultos teve uma queda de 17% no total de matrículas no país, com 3,5 milhões de alunos. No entanto, o Brasil ainda tem 11,3 milhões de analfabetos entre a população de 15 anos ou mais — o equivalente a 6,8%.

O cenário se torna preocupante com o investimento quase nulo em programas como Brasil Alfabetizado, ProJovem e ProEJA, além da extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) no primeiro ano do mandato do presidente Jair Bolsonaro.

“O EJA já tem uma facilidade para a interrupção que precisa dialogar com outras questões, como trabalho e saúde. A pandemia é o resumo desta ópera. As desigualdades educativas que penalizavam essa modalidade tendem a se acentuar”, revela Maria Clara di Pierro, professora doutora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e especialista na Educação de Jovens e Adultos.

A pesquisadora critica o discurso defendido na educação brasileira de que basta educar as gerações mais jovens, como se fosse necessário fazer essa escolha de Sofia. “Neste momento, as crianças dependem do auxílio dos adultos. Como um adulto que teve o direito a educação violado vai ensinar uma criança? Investir no EJA é parte do sucesso das novas gerações”, argumenta.

Falar da Educação de Jovens e Adultos inclui oferecer creche, alimentação, transporte, cultura e, quando necessário, atendimento jurídico e psicossocial. Com base nisso, o Colégio Santa Cruz, localizado em Pinheiros, região nobre de São Paulo, disponibiliza bolsas de estudos para o EJA na instituição há 45 anos.

“Tudo precisou ser adaptado por causa da pandemia. Lidamos com alunos que abrem mão do único celular da família para o filho estudar, que vão até o terminal de ônibus para assistir às aulas, ou que trabalham o dia todo e têm mais de 100 mensagens no grupo da sala com as lições e não conseguem acompanhar”, conta Fernando Frochtengarten, educador e diretor dos Cursos Noturnos do Colégio.

Para o educador, a desvalorização e a falta de investimentos nesta modalidade prejudica toda a sociedade. “Acabar com o EJA é impedir o desenvolvimento de uma consciência crítica e cidadã. Sucatear essa modalidade é como fechar as portas de vários direitos a essas pessoas”.


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