O sol é para todos: iniciativas levam energia solar para favelas

Nos últimos anos, organizações do terceiro setor e lideranças comunitárias vêm se unindo para promover o acesso à energia limpa e renovável, como é o caso da energia solar, em favelas

Por: Mariana Lima

Ter acesso a energia limpa e renovável, como a solar, não parece algo possível para os moradores de muitas periferias e favelas no Brasil. Para mudar este cenário, organizações do terceiro setor vêm se movimentando junto a empresas e lideranças comunitárias. A proposta é desmistificar a ideia de que “energia solar é coisa de rico” e mostrar as favelas como espaços de solução.

“Ainda temos na sociedade um estigma muito forte de que as favelas são lugares de pobreza e de violência, de falta e não de potencialidade. Existem barreiras estruturais, mas é possível, sim, criar um modelo em que as favelas consigam acessar essa tecnologia [da energia solar] se houver o incentivo adequado”, explica Eduardo Ávila, diretor executivo da RevoluSolar.

Desde 2015, a associação sem fins lucrativos RevoluSolar atua no Morro da Babilônia e no Chapéu Mangueira, regiões de favela no Rio de Janeiro, com o objetivo de promover o desenvolvimento sustentável das comunidades, por meio da energia solar.

A iniciativa já levou o acesso à energia solar para empreendimentos comerciais e espaços públicos, como escolas e creches, por meio de usinas fotovoltaicas instaladas nas comunidades. Além disso, a entidade promove capacitações profissionais e oficinas educativas. Agora, buscando ampliar a oferta, inaugurou a 1ª Cooperativa de Energia Solar em Favela no Rio de Janeiro.

Para Valdinei “Dinei” Medina, embaixador comunitário da RevoluSolar e morador da favela Babilônia, a construção da cooperativa foi um dos momentos mais marcantes proporcionados pela RevoluSolar.

“No dia em que os painéis chegaram, ao contrário do esperado, estava chovendo. E a gente foi recebendo os painéis ali na chuva. Tudo molhado, pessoas descalças, moradores, pessoas chorando ali porque sabiam que era um projeto maior, que ia contemplar mais moradores. E quando a usina ficou pronta, aí eu subi lá e olhei aquele horizonte que só me fez pensar que é possível energia solar nas áreas pobres”, revela.

A usina solar de 26 kWp (quilowatt pico) está instalada no telhado da associação de moradores da Babilônia e vai atender 36 famílias. O projeto piloto deve empregar ao menos 10 pessoas da comunidade, entre técnicos e embaixadores. Ao funcionar como cooperativa, a usina solar seguirá o modelo de geração compartilhada, em que a energia solar gerada será dividida entre os moradores cooperados.

“O Rio de Janeiro é um lugar muito propício pra energia solar. E a energia elétrica está muito cara hoje. A gente tem que levar isso pra outras favelas porque se a pessoa conseguir abater R$ 60 na conta dela isso no final do mês, com tudo que tá caro por aí, ajuda muito. Isso pode motivar as pessoas a fazer o próprio comércio, trabalhar em casa, a dar mais autonomia para a sua própria renda”, afirma Dinei.

Em 2017, a RevoluSolar realizou uma pesquisa com moradores da Babilônia para mapear o uso de energia. Apesar de 79,6% conseguirem pagar a conta de luz, muitos o faziam com dificuldade. No total, 57,3% atrasavam o pagamento da conta. Durante o período de realização da pesquisa, 42% das residências apresentavam aviso de corte na fatura, devido a atrasos no pagamento.

Energia solar: o meio mais democrático

Utilizando a geração distribuída, em que consumidores estão próximos dos geradores, as iniciativas conseguem distribuir a energia gerada pela captação solar de forma paralela à rede elétrica tradicional, o que leva ao desconto na conta de luz.

Neste cenário de aumento da cobrança na conta, a proposta se torna uma saída para diversas famílias de baixa renda nas favelas. Nos últimos 12 meses, o reajuste acumulado da conta de luz chegou a cerca de 20%, mais que o dobro da inflação do período, calculada em 7%, de acordo com estimativas do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

Para Dinei, o funcionamento da usina será a melhor divulgação sobre a importância de promover a produção de energia renovável e limpa em regiões de favela.

“Hoje, a gente mostra que é possível ter energia solar nas favelas. A usina da Babilônia vai gerar o desconto na conta de luz e isso vai correr ‘no boca a boca’ da favela. E quem não conhecer vai querer saber o que é isso. Imagina aqui na Babilônia fazer outra usina, mais duas usinas no Chapéu, colocar todos os moradores na energia solar. Estamos mostrando que é possível”, argumenta.

Apesar da própria RevoluSolar ainda não replicar o modelo da cooperativa em todas as comunidades do Rio, a ONG vem servindo de inspiração e referência para outras iniciativas, como a realizada na Favela do Vidigal (RJ).

Em junho de 2021, a ONG SER Alzira de Aleluia, que oferece cursos de informática, dança e inglês, além de preparação para o primeiro emprego, recebeu a primeira instalação fotovoltaica da comunidade, resultado da articulação da Rede Favelas Sustentáveis com empresas de energia solar.

Para Elma Maria da Silva de Aleluia, presidente da ONG e participante do GT de Energia Solar, a instalação no espaço foi o primeiro passo para que os moradores da região consigam ver a energia solar como uma possibilidade.

“Precisamos mostrar à sociedade, aos moradores, ao poder público que não é um bicho de sete cabeças. Se a favela ‘arregaçar as mangas’, tudo pode acontecer. O grande gancho é o próprio morador entender. Engajando o morador, mostrando como pode funcionar e tendo o apoio, a gente consegue. Por isso, não é só colocar os painéis, mas dialogar, conscientizar também”, pontua Elma.

Em setembro, com a ONG já fazendo uso da energia solar após idas e vindas com a distribuidora de energia, a Light, foram realizados encontros formativos para explicar o sistema fotovoltaico aos moradores e mapear as famílias interessadas em receber o modelo.

Elma reforça que esse contato está sendo fundamental para conseguir dialogar com moradores que estão buscando o “gato” na energia elétrica devido à dificuldade para pagar a conta de luz.

“Tem pessoas da comunidade que pagavam R$ 200 e hoje precisam desembolsar R$ 500, R$ 600, R$ 700 só para uma conta. São famílias que não tinham ‘gato’, mas se viram obrigadas a fazer porque era ou comer ou pagar a conta de luz. Algumas já buscaram o juizado de pequenas causas [Juizados Especiais Cíveis], mas nada anda e a conta chega todo mês. No entender deles, é a única saída que têm”.

Para Elma, não basta o trabalho das organizações e parceiros, pois, se não houver incentivo público, o alcance das iniciativas acaba limitado. “Não depende da parte mais fraca, mas do poder público entender e viabilizar a energia renovável para essas pessoas”, argumenta.

Um setor em crescimento

Além da RevoluSolar, o negócio social InSolar, que atua para democratizar o acesso à energia solar em comunidades de baixa renda no Rio de Janeiro, também busca capacitar a população local. Uma das pessoas que receberam a capacitação em elétrica e energia solar foi Leonardo Luiz Almeida, de 31 anos, ainda no início da atuação da InSolar no Morro Santa Marta (RJ), em 2013. Na época, Leonardo estava desempregado e buscando qualificação profissional. Quando a oportunidade surgiu, ele não pensou duas vezes.

Assim, ele se tornou o Léo Elétrica e abriu a Impacto InSolar, empresa que atua na instalação e manutenção da estrutura do sistema fotovoltaico, nas comunidades e fora delas, além de prestar serviços para empresas do ramo solar. Hoje, Leonardo se tornou referência para os jovens da região que querem atuar no setor.

“A Impacto InSolar tá mostrando pra eles que a energia limpa e renovável é oportunidade de trabalho, de uma vida nova. Hoje, eles tão vendo a minha caminhada ser legal e vêm até mim querendo saber o que precisam fazer para poder trabalhar na empresa. É um espelho, sabe? E essa é uma tecnologia que tá vindo com força e que mais pra frente vai crescer muito”, pontua.

De acordo com a Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (ABSOLAR), o setor atraiu mais de 13 bilhões de reais em investimentos em 2020. O valor resultou na criação de mais de 86 mil novos postos de trabalho.

Para Leonardo, o incentivo a esses jovens para entrar no mercado da energia solar deveria ser política pública. Ele pontua que para muitos jovens na comunidade o tráfico de drogas é o único caminho que conseguem vislumbrar e isso poderia mudar com a maior oferta de oportunidades de carreira e qualificação dentro da favela.

“A área da energia solar na elétrica ainda não tem muitos anos no mercado. Então, quem tá chegando agora sabe que tem uma oportunidade de crescer junto com essa profissão, que não vai ficar pra trás ao começar. Não é como outras profissões que parece que você nunca vai crescer porque já tem muita gente no topo. A energia solar tá dando a oportunidade de a gente começar junto com ela”.

São Paulo de olho nessa tecnologia

Em 2021, o Instituto Favela da Paz, em parceria com a empresa Worley, instalou o sistema fotovoltaico de  8,91 kWp (quilowatt pico) em sua sede, localizada na periferia do distrito do Jardim Ângela, zona Sul da cidade de São Paulo. Por meio dessa parceria, o Instituto se tornou a 1ª Micro Geradora de Energia Solar em região de favela na capital paulista.

Apesar da instalação ter chegado neste ano, o Instituto já vinha promovendo formações com a população local sobre sustentabilidade e energias renováveis através do LAB Favela Sustentável. Foi por já ter um trabalho nesse sentido que o Instituto foi escolhido para receber o projeto da Worley, que todo ano promove um desafio entre os funcionários para criar projetos inovadores.

“Além de toda a questão de legislação, foi uma luta grande para tornar o projeto viável. A gente precisava entender a comunidade, o consumo de energia e a infraestrutura. Dentro e fora da empresa era difícil as pessoas acreditarem que daria certo, mas conseguimos”, conta a engenheira ambiental da Worley Thais Donato.

Para Fabio Miranda, coordenador do Periferia Sustentável e cofundador do Instituto Favela da Paz, que atua incubando projetos de arte, cultura, sustentabilidade, esporte, saúde e educação voltados para a periferia, o objetivo é utilizar o acesso a esse sistema para mostrar que a energia solar pode ser para todos.

“A ideia é mostrar para as pessoas que existem outros caminhos. Os ‘gatos’ é o que as pessoas têm. Elas só mudam se conhecerem outras formas que as beneficiem. Temos cursos de elétrica para mostrar o processo de instalação residencial porque não é só colocar, precisa avaliar a situação da casa, uma formação antes de usar a fonte renovável”, revela.

Com o sistema funcionando na sede do Instituto, a meta é promover mais encontros e capacitações que incentivem a população a querer estar nessa rede quando a ONG conseguir ampliar a oferta do serviço por meio de uma cooperativa.

“Isso já cria a reflexão da comunidade sobre o uso consciente de energia. Queremos ter uma cooperativa e promover um sistema de energia solar colaborativo. As casas por aqui são muito próximas, quase uma em cima da outra. Então um sistema só pode envolver diversas famílias. Já temos a vontade e as pessoas dispostas a fazerem isso funcionar”, conta Miranda.