Para combater o racismo nas prisões, ela alia saúde, política e cultura
Andréia Beatriz é médica e atua há 15 anos no sistema prisional de Salvador. Em sua luta contra o racismo, ela leva política e arte para as consultas
Por: Mariana Lima
A médica Andréia Beatriz, 48, lembra da infância quando é questionada sobre a forma como o racismo, o sistema prisional e o ativismo entraram em sua vida.
Natural de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Andréia cresceu vendo familiares e conhecidos sendo presos ou nas filas do lado de fora de presídios.
“Quando passava na frente de unidades prisionais, sempre via pessoas negras. Sempre tive essa imagem na mente. Parecia um lugar só para negros”.
Andréia enxergava as semelhanças entre ela e as pessoas que via dentro e fora das unidades prisionais. Essa noção a acompanhou durante sua formação como médica e especialista em Saúda da Família.
“Quando se é uma pessoa negra no Brasil e no mundo, encontramos representações que nos colocam em determinados locais, que não são de boas condições, nem de privilégios”, aponta.
Início dos atendimentos
Foi durante a residência médica que Andréia teve o primeiro contato com pacientes do sistema prisional. Naquele momento, percebeu que eles também precisavam deste cuidado.
“Ninguém projeta isso: ‘depois de me formar, vou trabalhar no sistema prisional’. A certeza que eu tinha era que queria levar o cuidado para lugares onde não chegava da maneira adequada”.
Após se formar, mudou-se para a Bahia, onde deu início à sua atuação no município Ribeira do Amparo.
Andréia compôs o grupo responsável por organizar a primeira unidade de estratégia de Saúde da Família no distrito de Raspador, localizado na região rural da cidade, a 40 km de distância da capital.
Em Raspador, Andréia atendia presos e até os familiares que acabavam passando na delegacia da região. “Chegava lá para atender duas pessoas, mas acabava atendendo bem mais”.
A luta contra o racismo
Após dois anos no município para implementar a política de Atenção Primária, em 2004, Andréia foi para Salvador. Na capital, encontrou um movimento de luta contra o racismo em andamento.
De acordo com uma pesquisa, realizada pelo Fórum Comunitário de Combate à Violência (FCCV), entre 1998 e 2004, das 6.308 pessoas assassinadas em Salvador, 5.852 eram negras ou pardas.
“Naquele ano, tínhamos um registro muito alto de jovens negros vítimas da violência na região metropolitana de Salvador. Foi a partir deste cenário que surgiram as mobilizações para o enfrentamento do genocídio negro”.
As mobilizações deram origem à campanha ‘Reaja ou será Morta, Reaja ou será Morto‘, que aos poucos se consolidou como uma organização política, da qual Andréia é uma das coordenadoras.
Desta forma, a Reaja atua como uma instituição que se envolve em processos políticos, principalmente quando ligados às violações contra a população negra, encarcerada, periférica e LGBT+, mas sem buscar concorrer a cargos públicos.
“Queríamos discutir esse racismo nas abordagens policiais. Ao longo do tempo fomos ganhando força, e apesar de outras organizações e a apoiadores deixarem a Reaja, continuamos atuando e nos mobilizando também pelo viés cultural”.
Em 2005, enquanto a Reaja surgia aos poucos, Andréia prestou o concurso público para atuar como médica da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (SESAB) no sistema prisional.
Atualmente, exerce sua profissão no complexo penal da Mata Escura, uma unidade de saúde prisional na Penitenciária Lemos de Brito, em Salvador.
Nos atendimentos – que continuam ocorrendo presencialmente durante a pandemia, mas com as devidas proteções – Andréia busca se aproximar dos pacientes por meio de elementos culturais.
“A maioria não me reconhecia com médica, por ser negra, usar dreadlocks e fazer uma discussão racial com eles. Trago livros, falo sobre os Racionais MC’s e outras pessoas que abordam a existência negra. Não é sempre que eles veem isso de um profissional da saúde”, esclarece.
O papel da cultura na identidade
Com o apoio de pessoas egressas do sistema prisional e familiares de presos que queriam participar da luta contra o racismo, a Reaja iniciou o projeto Cultura Intramuros.
Por meio do projeto, levam atividades, filmes, músicas, literatura e rodas de discussão sobre política, saúde e educação. Além disso, promovem a prática da capoeira nas unidades prisionais em que atuam: Penitenciária Lemos Brito, Colônia Agrícola Lafayete Coutinho, Presídio de Salvador e anexo e Conjunto Penal Feminino.
“Buscamos transcender os obstáculos que os muros colocavam. O Cinema Intramuros, por exemplo, é prova disso. Têm pessoas no sistema prisional que nunca frequentaram um cinema, que não discutiam como a arte podia mexer com a vida delas”.
Em diversas oportunidades, a Reaja trouxe diretores de cinema para participar das rodas de conversa, promovendo o diálogo com os presos.
“Esses encontros permitem resgatar a cultura e a história deles, reconectar essas pessoas com o mundo e outras possibilidades de existências – para além da negação de direitos que tem em uma unidade prisional”.
Para Andréia, a música é uma das representações mais fortes da realidade negra. No entanto, o racismo marginaliza todos os seus elementos, do vestuário ao ritmo.
“As pessoas negras são forçadas a abandonar essas características. Quando vamos nas comunidades ou nas unidades e colocamos um samba, parece que temos as histórias de diversas famílias ali, que conhecemos todos. Está na identidade”.
Ela reforça que o abandono forçado destas manifestações culturais funciona como uma morte da identidade.
“Quando toca ‘Strange Fruit’ [Billie Holiday, 1939], uma música que fala de uma pessoa de pele escura linchada, pendurada em uma árvore, que é uma fruta estranha, que ali não tem vida, eu sei do que ela tá falando. Tá na minha história. Existe uma verdade nessa maneira de se expressar”.
A Reaja vem realizando ações com os familiares, incluindo grupos de apoio, orientação jurídica, além de marchas nacionais e transnacionais para lutar contra o genocídio negro.
“Foi a partir destes encontros que percebemos a demanda por saúde. As pessoas se sentiam negligenciadas, com apenas consultas pontuais”.
Uma escola sobre o outro lado da história
Além do trabalho nas quatro unidades em que a Reaja atua, Andréia se mobilizou junto com a organização para criar a Escola Winnie Mandela, em 2016.
A escola funciona de forma autônoma, distante do modelo praticado no ensino regular, propondo uma educação centrada na história da população negra e no pan-africanismo.
Localizada em Engenho Velho de Brotas, bairro em que Andréia reside, a escola oferece reforço escolar, mas também apresenta seu próprio currículo.
As crianças participam de cineclube, aulas de boxe, fotografia e música, que já possibilitaram a produção de um videoclipe. Além disso, adultos e adolescentes também podem ocupar o espaço, já que a Winnie Mandela tem um trabalho de alfabetização e um cursinho pré-vestibular.
“Antes da ‘Winnie’, essas crianças apresentavam um rendimento abaixo do esperado, mas agora com um trabalho centrado na cultura delas o cenário mudou. A ideia era tornar o bairro um território africano para além da história de captura e escravidão”.
A chegada da Covid-19
Quando os primeiros casos de Covid-19 começaram a ser registrados no país, a Reaja passou a se mobilizar junto com os familiares dos presos.
“Não tínhamos noção de como seria nas prisões brasileiras. Como médica, passei a pensar em protocolos, nas pessoas com doenças crônicas, diabetes, HIV positivo, que têm o risco de um adoecimento mais grave e de morte por Covid”.
Nos últimos meses, a Reaja realizou campanhas para reunir materiais de higiene pessoal e de limpeza, alimentos e roupas para as unidades prisionais em que atua.
No âmbito político, mobilizaram-se em prol do cumprimento da Recomendação nº 62, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que faz recomendações para garantir o desencarceramento neste momento, visando reduzir a superlotação.
“A testagem chegou tardiamente nas unidades prisionais. Já se passaram 5 meses e ainda não temos ‘o projeto’ para o sistema prisional. Não se tem um olhar para as pessoas privadas de liberdade”.
No cenário atual, Andréia relata que está atendendo presos em situação de abstinência, uma vez que o cigarro – e muitos dos itens básicos de higiene e alimentação – são trazidos pelas visitas.
“Eles estão vivenciando um super isolamento. Sem as visitas, eles perdem as conexões com o mundo, além de terem um acesso à informação limitado. E quando chegam notícias, elas são conflituosas, levando à insegurança”.
Para Andréia, a Covid-19 retirou a névoa sobre os diversos problemas que envolvem o sistema prisional.
“São pessoas que passaram por uma rede de violência que vem de antes da prisão. Essas ações têm resultado na prática de um genocídio contra o povo negro, que não são vistos como pessoas, que não mereceram a atenção do Estado”, argumenta.
Andréia reforça que “não dá para discutir prisão sem falar com quem está preso. Não dá para discutir a destruição deste conceito de prisão que promovemos sem um projeto para proteger quem ainda está preso”.
De acordo com dados do CNJ, 15.569 presos já foram contaminados pela Covid-19 no país. Até o momento, 89 pessoas privadas da liberdade já morreram vítimas do novo coronavírus.
Além disso, apenas 1% da população carcerária brasileira, que é a 3ª maior do mundo, já foi testada para a Covid-19. Até dezembro de 2019, 748.009 pessoas estavam em unidades prisionais no país, segundo o Depen (Departamento Penitenciário Nacional).
Como colocar em palavras?
Este ano, Andréia irá lançar o livro ‘Olhar por entre grades: Vidas em poemas‘, em que trata dos 15 anos de atuação no sistema prisional.
O livro será publicado pela editora da Reaja, que trabalha para traduzir e publicar obras que tratem da realidade negra. A organização também tem um jornal e um selo musical.
Boa parte do material do livro estava guardado há anos, mas a pandemia trouxe a necessidade de contar as histórias que ela presenciou.
Nos últimos meses, Andréia viu um homem que estava cumprindo pena há 22 anos conseguir a prisão domiciliar e morrer 5 dias depois, por infarto. Uma mãe com três filhos presos conseguir a liberdade deles, mas morrer antes do reencontro.
“Essas perdas tão próximas da liberdade doem. Escrever me ajudou a lidar com isso e tirou o engasgo que eu sentia. Tinha muita coisa ressentida por estar neste espaço de privação também e não falar como tenho feito essa luta”.
Toda essa vivência também é levada para a sala de aula. Andréia é professora Assistente do Colegiado de Medicina e membro e pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdades em Saúde (NUDES) da Universidade Estadual de Feira de Santana.
“Não tem como não trazer. Abordo como esse processo, o racismo e a violência, impacta na saúde da população negra. Eu realmente acredito que a libertação negra está no caminho certo. Não sabemos o que vamos encontrar lá na frente, mas nos organizarmos nesse projeto de luta é o único caminho para a sobrevivência”, desabafa.