Coronavírus no sistema penitenciário é uma ‘bomba-relógio’
Superlotação, higiene precária e falta de atendimento médico compõem o cenário propício para a propagação do coronavírus no sistema penitenciário brasileiro
Por: Júlia Pereira
Há 20 anos, Andreia MF saiu do sistema prisional, depois de quase uma vida inteira no cárcere, passando pela Fundação Casa quando mais nova e, posteriormente, três vezes por penitenciárias.
Hoje, ela é líder do movimento ‘Mães do Cárcere’, que presta atendimento a mais de 4 mil famílias de presos e egressos do sistema penitenciário.
Em contato com essas famílias, ela percebe que as estruturas das cadeias brasileiras permanecem as mesmas de 20 anos atrás.
“O local é insalubre, tem muita sujeira. Falta apoio do Estado, porque o Estado joga lá dentro e esquece que tem um ser humano ali. É como se não quisesse recuperar o preso. Não mudou nada. As coisas continuam da mesma forma”, conta.
Com condições já precárias de limpeza, higiene e atendimento, Andreia afirma que a situação de presos e presas durante a pandemia está ainda mais grave.
“O cárcere já não tinha médico, já não tinha apoio. Agora, com essa pandemia, se a gente aqui já está sofrendo com essas questões da saúde, imagina quem está lá dentro que nunca teve nada?”, diz.
Quando os casos de coronavírus ainda estavam chegando ao Brasil, em março, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a Recomendação nº 62, um conjunto de orientações aos tribunais e magistrados para adotarem “medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus – Covid-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo”.
O Departamento Penitenciário Nacional (Depen) estima que cerca de 30 mil presos foram liberados após a recomendação do CNJ. No entanto, proporcionalmente à população carcerária, esse número ainda é muito baixo.
“Não vou dizer que não teve soltura, prisões domiciliares decretadas ou adiantamento de progressão de regime, mas são casos pouco significativos dentro da massa carcerária que nós temos”, diz Catia Kim, advogada e assistente de projetos de Gênero e Drogas do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC).
Visitas suspensas desde o início da pandemia
Uma das recomendações do CNJ é a suspensão de visitas aos presos. Com essa suspensão, os produtos e alimentos entregues pelas famílias – o chamado ‘jumbo’ – estão chegando com atraso e, em alguns casos, não estão sendo entregues. Isso significa que itens de limpeza e higiene, por exemplo, estão ainda mais precários neste momento.
“O problema é que tem alguns estados que não estão recebendo essas doações sob a justificativa de que eles estão sim suprindo todas as necessidades”, explica a advogada.
Mesmo com a suspensão das visitas, os casos de Covid-19 entre os presos continuam aparecendo. Muitos deles partem dos agentes, que têm contato com outros locais além das unidades penitenciárias.
As secretarias de administração penitenciária afirmam estar tomando medidas possíveis para evitar a propagação do vírus, como garantindo equipamentos de proteção e afastando agentes que apresentem sintomas da doença.
“Apesar disso, a gente tem, infelizmente, em vários estados, informações no sentido contrário, de que os agentes não estão recebendo os equipamentos de proteção individual, de que pessoas presas também não estão recebendo esses equipamentos”, conta.
Ao lado da falta de equipamentos e infraestrutura está a subnotificação, um problema também enfrentado fora do sistema. Esses elementos formam um cenário incerto sobre a situação real e concreta do sistema penitenciário durante a pandemia de Covid-19.
Isolamento num sistema superlotado
Uma das propostas do Depen durante a pandemia foi a adoção de contêineres destinados a isolar presos do grupo de risco e sintomáticos.
A medida foi vetada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). Por outro lado, o órgão publicou uma resolução que permite a adoção de estruturas específicas para isolar os presos, sem citar os contêineres.
Catia Kim explica que o problema principal na adoção dessas estruturas para isolar os presos é a memória histórica. A advogada relembra que essa alternativa foi adotada em anos anteriores no Espírito Santo, onde os presos eram deixados em contêineres com poucas adaptações, como janelas pequenas que impediam a ventilação.
O receio de que uma medida provisória como a adoção dessas estruturas se torne definitiva também se faz presente. “O que quer que seja esse equipamento de isolamento ele ficaria com os estados e cada um poderia fazer o que quisesse com isso, ou seja, poderia tornar disso um espaço de encarceramento definitivo”, ressalta.
O encarceramento em massa faz parte da realidade do sistema brasileiro, composto por mais de 770 mil presos. Uma das medidas apontadas por Catia para enfrentar essa questão é avaliar todos os casos de prisão provisória e preventiva, que são anteriores a uma sentença condenatória.
“Se dentro da nossa população carcerária cerca de 35% são presos provisórios, a gente está falando que tem muita gente presa sem a sentença ainda. Com a possibilidade de reavaliar esses casos, tem chance de nós conseguirmos liberar uma grande parte dessas pessoas”, explica.
Saúde precária dentro e fora do sistema
Num cenário de crise sanitária, o fortalecimento da saúde é essencial. Mas esse é um setor também precário no sistema penitenciário, que já enfrentava uma epidemia de tuberculose antes do coronavírus chegar.
Dados do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) revelam que 31% das unidades prisionais do país não oferecem assistência médica interna.
Isso significa que, no caso das unidades com ausência de equipe médica alocada, quem decide se o preso será levado a um hospital externo ou não são os agentes penitenciários dali.
O marido de Bianca* viveu as consequências da falta de atendimento médico no sistema penitenciário durante a pandemia de Covid-19. Ele estava na Penitenciária Presidente Venceslau 2 (SP), quando começou a apresentar sintomas da doença.
A falta de estrutura dentro da unidade fez com que outros presos organizassem um motim a fim de que o marido de Bianca recebesse o atendimento necessário.
Depois disso, ele foi levado para um hospital externo, onde foi medicado e respirava com a ajuda de aparelhos. Mas faleceu dias depois.
“Infelizmente, ele não resistiu ao vírus e no dia 14 [de maio], no final da tarde, veio a falecer. Ninguém soube responder como ele pegou a Covid-19 se não está tendo visita”, diz Bianca.
A morte poderia ter sido evitada caso o preso tivesse recebido atendimento médico quando começou a apresentar os sintomas da doença.
A falta de estrutura das cadeias também é a preocupação de Amanda*. A última carta que ela recebeu do marido, que está no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Mogi das Cruzes (SP), foi no dia 16 de março, dizendo que estava doente e sem medicação. Desde então, está sem notícias dele.
“A gente fica com medo, porque a gente sabe que a saúde pública aqui fora é precária, então quem dirá dentro do sistema carcerário. Até então um preso para a sociedade é um peso morto. Mas pra gente que é familiar não, a gente pensa na ressocialização, de eles voltarem pro mundo, de terem uma nova perspectiva de vida”, diz.
* Nomes alterados para preservar a identidade das personagens.
Para combater o racismo nas prisões, ela alia saúde, política e cultura
20/08/2020 @ 12:13
[…] Em 2005, enquanto a Reaja surgia aos poucos, Andréia prestou o concurso público para atuar como médica da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (SESAB) no sistema prisional. […]