Psicanalistas da periferia atuam para combater elitismo na profissão
Coletivo PerifAnálise surgiu com três pessoas e um grupo de estudos. Hoje, conta com oito membros e oferece atendimento clínico a moradores de São Mateus, na Zona Leste de São Paulo
Por: Mariana Lima
Ao iniciar os estudos no Instituto Sedes Sapientiae, um dos mais tradicionais em formação de psicanalistas do Brasil, localizado na Zona Oeste de São Paulo, o psicólogo e psicanalista Jefferson Santos, 35, sentiu-se deslocado.
Morador do distrito de São Mateus, no extremo leste de São Paulo, o cenário vivenciado no bairro de Perdizes, região rica da cidade, destoava de sua realidade.
Jefferson também enfrentou outra exclusão: as únicas pessoas negras na instituição, além dele, eram os seguranças e as faxineiras.
Já a psicóloga e psicanalista Paula Eloisa Jameli, 45, também residente de São Mateus, levou dez anos para conseguir se formar na faculdade de psicologia.
Ela precisou conciliar casa, filho, um trabalho no Jabaquara, Zona Sul de São Paulo, e a faculdade em Itaquera, que, apesar de ficar na Zona Leste, está a quase 10 km de São Mateus.
Foram horas no transporte público, entre trabalho, faculdade e casa, além da falta de tempo e dinheiro, para que conseguisse se formar.
Rosimeire Bussola Santana Silva, 33, outra moradora de São Mateus, só ouviu falar da psicanálise na faculdade de psicologia.
Formada, já trabalhou no Sistema Único de Saúde (SUS) com medidas socioeducativas em meio aberto – quando o adolescente que cometeu infração cumpre a pena sem privação de liberdade – e atualmente trabalha em um Centro de Atenção Psicossocial (Caps), também no SUS.
Juntos, os três psicólogos e psicanalistas integram a Clínica Psicanalítica PerifAnálise, coletivo de autointitulados “perifanalistas” que atuam em São Mateus.
O coletivo foi criado às vésperas das eleições de 2018, diante das inquietações dos psicanalistas com os efeitos da ascensão do que consideram um “discurso racista, machista e homofóbico crescente” sobre a periferia.
Iniciado com três pessoas e um grupo de estudos, atualmente, a PerifAnálise já conta com oito membros e, desde 2019, oferece atendimento clínico aos moradores do bairro.
O grupo começou estudando O Mal-estar na Civilização, livro de 1930 de Sigmund Freud, considerado o pai da psicanálise.
Em paralelo a isso, no centro de São Paulo, avançava o movimento das Clínicas Públicas de Psicanálise, que visavam democratizar a prática, oferecendo atendimento gratuito em espaços públicos, como o centro cultural Vila Itororó, a Casa do Povo e a Praça Roosevelt, todos localizados em regiões centrais.
A concentração do atendimento em bairros de classe média-alta fez o grupo se questionar sobre como a periferia ficava neste cenário. Assim, o grupo passou a pensar em como adaptar a experiência das Clínicas Públicas de Psicanálise à realidade periférica.
Buscando um lugar em que os moradores pudessem ter uma experiência clínica um pouco mais reservada, o coletivo encontrou o espaço cultural Favela Galeria, na Vila Flavia, comunidade de São Mateus.
A região é parte da história do movimento rap e do grafitti na Zona Leste. Foi por meio do boca a boca que a iniciativa foi crescendo.
O objetivo do coletivo é promover o acesso à psicanálise nas regiões periféricas.
Hoje, a PerifAnálise é formada por seis psicanalistas e duas pessoas no início da formação em psicanálise. A iniciativa, porém, é alvo de questionamentos de outros profissionais da área.
Eles são questionados se “Isso que vocês fazem é psicanálise?”. Para eles, questionamentos nessa linha revelam o caráter elitista que a profissão ainda tem.
Outra diferença da PerifAnálise em relação às Clínicas Públicas de Psicanálise do centro de São Paulo diz respeito à forma como o dinheiro é tratado por ambas.
No coletivo, as pessoas podem pagar direto para os seus psicanalistas e os valores são combinados entre eles. O coletivo ressalta que existem pessoas da periferia que não podem pagar e outras que fazem questão de pagar.
Em meio à pandemia, a PerifAnálise migrou seus atendimentos para o online, através de videochamadas ou chamadas de áudio.
O espaço online evidenciou as precariedades de um bairro periférico, com a conexão de internet instável e a dificuldade para as pessoas terem privacidade no atendimento em casas com poucos cômodos e muitos moradores.
Além disso, a falta de dinheiro levou alguns dos atendidos que faziam questão de pagar a desistirem de dar continuidade ao atendimento.
De acordo com o coletivo, a migração para o online trouxe novas possibilidades, com a entrada para o grupo de pessoas que não são de São Mateus e a viabilidade de atender pacientes de outros bairros e até de periferias de outras cidades.
Os membros do coletivo apontam que a pandemia não aparece como uma preocupação central de seus atendidos, mas como um pano de fundo para outras inquietações e para as dificuldades financeiras impostas pela nova realidade.
Fonte: BBC News Brasil