Após viver nas ruas e atuar como doméstica, ela se tornou juíza na Bahia
A juíza Antônia Marina Faleiros, 60, precisou vencer o preconceito e a desigualdade para ocupar o cargo que muitos consideravam impossível
Por: Mariana Lima
A juíza Antônia Marina Aparecida de Paula Faleiros, de 60 anos, guarda na memória a sensação de esperança que sentiu quando um banco privado se instalou em sua cidade natal, Serra Azul de Minas, a cerca de 300 km de Belo Horizonte.
Aos 17 anos, Antônia havia acabado de concluir o ensino médio e estava buscando emprego. Logo resolveu se inscrever no processo seletivo para trabalhar no banco.
Contudo, a oportunidade que deveria iniciar sua vida profissional apenas estabeleceu traumas. Não conseguiu ficar nem mesmo na última posição dos classificados, apesar de ter se dedicado na prova.
Anos depois, Antônia descobriu o motivo. “[…] soube que a prova sequer foi corrigida. Eu não pertencia àquele mundo privilegiado nem da aparência e nem da nascença”, disse em entrevista ao portal Universa, do UOL.
Foi a exclusão na disputa pelo emprego que a levou a sair da cidade em busca de mais oportunidades. Em Belo Horizonte, morou na rua por meses e foi empregada doméstica por cinco anos.
Na entrevista ao UOL, Antônia afirmou que “é ilusão achar que todos estão no mesmo patamar de concorrência aos postos de poder. Meritocracia é uma ilusão em diferentes níveis do discurso.”
Ao chegar em Belo Horizonte, ela achava que conseguiria abrigo. Era comum ouvir em sua cidade natal que se fosse, eles [antigos vizinhos e amigos] dariam uma força. Mas ao chegar ouvia que não podiam recebê-la porque suas casas eram pequenas.
Demorou, mas conseguiu ser acolhida por parentes. Então, arrumou trabalho como empregada doméstica. Com o salário, era impossível pagar aluguel.
Um dia, após terminar o serviço de faxina, Antônia foi convidada a se retirar da casa onde estava. Sem lugar para dormir, ela foi para um ponto de ônibus aguardar o horário de volta para o trabalho. E assim continuou.
Foram quase seis ou sete meses dormindo nas ruas até que uma desconhecida a recebeu em sua casa.
Ela conta que o percurso da doméstica que chegou ao alto cargo do Judiciário foi uma longa caminhada, que começou aos 22 anos, quando concorreu ao primeiro concurso público para ser oficial de Justiça, que exigia apenas o ensino médio.
Foi o suficiente para que conseguisse sair da rua. Para estudar para a prova, Antônia pegava restos de páginas de apostilas preparatórias descartadas no lixo.
Em 1985, o novo emprego apresentou o mundo do Direito a Antônia. Ela passou então a sonhar com uma carreira de sucesso na área e, com o salário, conseguiu se mudar para uma pensão e, depois, cursar a faculdade.
Após anos de dedicação ao Direito e inúmeros concursos prestados até alcançar a magistratura, Antônia se considera realizada com a sua atuação e as possibilidades de olhar para os outros como muitas vezes desejou ser olhada durante sua trajetória.
Há 18 anos como juíza criminal de uma comarca da Bahia, ela sabe que nem sempre oferece a providência que o condenado quer; seu trabalho é impor penalidades. Contudo, ela busca olhar o ser humano além do delito.
A situação rotineira de hoje a remete ao ofício do passado, quando foi empregada doméstica. Ela relembra que uma patroa fazia questão de manter distância dela, na época em que passava a noite na rua, no ponto de ônibus.
Antônia chegou a pedir para morar no quartinho dos fundos da casa da empregadora, mas o que ouviu foi que “negrinha dentro de casa é tentação para marido e filho”.
A magistrada está ciente de que o preconceito de raça e classe se perpetua nos corredores da Justiça.
Ela faz questão de passar sua história adiante como forma de inspirar outros. Antônia escreveu o livro ‘Colchas de retalhos para Mel dormir’ para sua neta, em que resgata sua infância.
Fonte: Universa | UOL