Dois anos depois de votada, PEC das Domésticas segue sem ser totalmente implementada
Segundo a Organização Internacional do Trabalho, o Brasil é o país com o maior número de empregados domésticos do mundo, tendo mais de 7 milhões de trabalhadores que se enquadram nesta categoria. Mesmo assim, até 2013 a nossa Constituição dava status diferentes para estes empregados e os demais trabalhadores, não garantindo uma série de direitos já há muito tempo estabelecidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Isso só mudou com a aprovação da Emenda Constitucional 72, que ficou conhecida como PEC das Domésticas. A Emenda alterou o artigo 7° da Constituição e equiparou as categorias, assegurando assim os direitos que faltavam.
Entre os direitos que a PEC trouxe estão a jornada de trabalho de 8 horas diárias e 44 horas semanais; pagamento de hora extra; adicional noturno; irredutibilidade do salário; obrigatoriedade do FGTS; seguro-desemprego; salário-família; auxílio-creche; indenização em caso de demissão sem justa causa e o respeito às normas de segurança de higiene, saúde e segurança no trabalho.
O problema é que, praticamente dois anos depois da aprovação da PEC, ela ainda não foi totalmente regulamentada, e alguns desses direitos seguem ameaçados. Entre eles, destacam-se o adicional noturno, o salário família e o pagamento do FGTS, que precisam de regulamentação para poderem ser aplicados corretamente.
Atualmente, o projeto que regulamenta a PEC das Domésticas precisa ser aprovado pelo Senado e depois sancionado pela Presidenta da República. Na ocasião da promulgação, em 2013, a PEC passou pelo Senado, mas seguiu de volta para a Câmara dos Deputados por conta de alterações no texto. Por isso, a atual versão precisa ser novamente aprovada na Casa, que ainda pode fazer novas modificações.
Na visão da advogada Daniela Ferreira da Silva, é necessário que a regulamentação seja aprovada o mais breve possível. Daniela é advogada do Sindicato das Empregadas e Trabalhadores Domésticos da Grande São Paulo (Sindoméstica) e conta que, a cada mês, são dirigidas cerca de 30 ações judiciais contra os empregadores, decorrentes de conflitos trabalhistas. O mais comum deles é a situação em que o patrão demite a empregada, mas se recusa a pagar os encargos posteriores. Há também grande dificuldade no pagamento das férias (especialmente do terço adicional). O pagamento do FGTS e o aviso prévio de 30 dias (demanda que vem principalmente dos cuidadores de idosos) são outros benefícios que serão devidamente garantidos.
De 2013 para cá, Daniela conta que aumentou muito o interesse dos trabalhadores domésticos em conhecer os seus direitos, assim como os patrões também estão mais atentos. “Recebemos muitos empregadores querendo esclarecer dúvidas e percebemos que a maioria está cumprindo com seu dever e seguindo as regras trabalhistas, embora, é claro, ainda existam aqueles que descumpram totalmente a lei”, diz.
Demissões em massa
Na época da promulgação da PEC das Domésticas, os críticos da medida defendiam que, na prática, ela iria precarizar ainda mais a profissão, pois os trabalhadores domésticos passariam a ser tão caros para o empregador que ocorreriam demissões em massa ou o fím de vínculos empregatícios, com o aumento dos trabalhos informais (como o das diaristas). Na experiência da advogada do Sindoméstica, a previsão não se confirmou. “O que observamos de dois anos para cá é que as trabalhadoras domésticas tiveram um ganho financeiro. No começo, realmente houve uma série de demissões, mas o quadro logo se reverteu e os empregadores voltaram a contratar, até porque perceberam que também é vantajoso para eles e que os direitos não eram um bicho de sete cabeças”, diz Daniela Ferreira da Silva.
A advogada conta que procura mostrar aos empregadores que eles também são beneficiados com a regularização dos direitos das domésticas, já que o vínculo oficializa que aquele é um emprego como qualquer outro. Ou seja: assim como há direitos, há deveres. Se o empregador deve cumprir os direitos, ele também usufrui de benefícios como ter a funcionária disponível todos os dias (ao contrário da diarista), a necessidade da apresentação de um atestado médico e o cumprimento de uma carga horária pré-estabelecida.
“No começo, muitos dos patrões que nos procuravam não gostavam da ideia de ter que cumprir a lei. Mas apesar de não gostarem, eles obedeceram. Até porque se não o fizerem eles têm que pagar multa ou a enfrentar uma ação judicial”, finaliza a advogada.
Afinal, quem é trabalhador doméstico?
Para efeitos da nossa legislação, um trabalhador doméstico é alguém que trabalha para uma pessoa física ou família em um ambiente residencial e familiar, com vínculo a partir de três dias por semana. Além disso, a atividade não pode gerar lucro para o patrão. Encaixam-se nessa definição não só as faxineiras como lavadeiras, babás, cuidadores de idosos, motoristas, cozinheiras, jardineiros e caseiros (de residências que não possuem função comercial).
Historicamente, no Brasil, o trabalho doméstico é delegado a mulheres pobres e negras. Todos os indicadores mostram que mais de 90% dos trabalhadores são mulheres, e mais de 60% mulheres negras. Ainda, essa ocupação representa cerca de 20% das mulheres empregadas, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2009. Isso significa que quase 1 a cada 5 mulheres maiores de idade são trabalhadoras domésticas.
Além disso, o relatório “Emprego Doméstico no Brasil”, produzido pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) em 2013, aponta que “os poucos homens alocados no setor ganham mais do que as mulheres, pois costumam exercer atividades de cozinheiros, jardineiros, caseiros ou motoristas, para as quais a remuneração tende a ser maior”.
Delegado a grupos estigmatizados, o trabalho doméstico é o segmento menos valorizado da escala de trabalho, com a menor quantidade de trabalhadores registrados em carteira, menor escolarização e renda média. Segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 32,1% dos trabalhadores domésticos tinha carteira assinada no quarto trimestre de 2014. Em 2011, o emprego doméstico também era a ocupação com o menor rendimento médio mensal (R$509,00). Apesar desse índice ter se elevado consideravelmente na última década, o comum é que ainda fique abaixo do salário mínimo.
“O peculiar do trabalho doméstico é que ele se dá no âmbito da privacidade. No Brasil, o lar é tido como um ambiente inviolável, o que acaba camuflando a relação de trabalho que está ali. Por isso a dificuldade de aplicar as leis”, analisa o sociólogo Jefferson Belarmino de Freitas, especializado em trabalho doméstico.
Uma cartilha sobre o emprego doméstico produzida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2012, lembra que esse tipo de trabalho é marcado pela “invisibilidade, subvalorização e por situações de precariedade e informalidade”. O órgão da ONU também problematiza o fato do emprego doméstico ser considerado um trabalho fácil, o que é um sintoma da desvalorização histórica do chamado trabalho reprodutivo, associados ao cuidado e ao papel da mulher na sociedade.
Jefferson caracteriza o trabalho doméstico no Brasil como “extremamente personalizado”, calcado em diversas desigualdades e marcadamente informal, expressado, por exemplo, com práticas como a de dormir no local de trabalho. “Isso é complicado, é uma trabalhadora que não tem horário certo e que fica a mercê da vontade do empregador. Com essa ideia do lar como espaço inviolável fica a pergunta de quem fiscaliza se esses direitos são cumpridos”. Isto é: acaba sendo difícil equiparar, na prática, o trabalho doméstico com os outros.
Teoria versus prática
Jefferson Belarmino de Freitas, que atualmente, em sua tese de doutorado, compara como se dá o trabalho doméstico no Brasil e nos EUA, considera que o fato dos empregados domésticos trabalharem isoladamente dificulta sua união enquanto classe.“Pelo menos aqui no Brasil, isso tende a mudar. Aqui, esse tipo de trabalho é muito comum, o que não é comum é o trabalhador ter direitos. Não à toa, a aprovação da PEC das Domésticas causou reações violentas de setores conservadores da sociedade”.
Uma coisa é consenso entre quem está por dentro do assunto: a lei estar garantida no papel não garante que seja implementada. Daniela Ferreira da Silva, advogada do Sindoméstica, crê que a efetivação já começou, enquanto o sociólogo Jefferson Belarmino de Freitas pensa que o caráter privado desta relação ainda dificulta a implementação total da lei.
“Ainda existem ajustes a ser feitos na PEC, coisas que dão margem à distinção, como no caso do adicional em caso de trabalho de sobreaviso, que é de 25%, enquanto para os outros trabalhadores é 30%. Mas ela é inegavelmente um avanço, porque faltava amparo legal para esses trabalhadores. Antes, tudo era favorável ao patrão. Essa é uma categoria que tem um preconceito histórico, desde a época dos escravos.”, diz Daniela.