Iniciativas promovem o acesso à leitura em regiões periféricas
Nos últimos anos, o Brasil vem perdendo leitores. O preço alto dos livros e a falta de equipamentos públicos acessíveis tornam a literatura uma ferramenta de classe. Iniciativas sociais em todo o país buscam democratizar o acesso à leitura
Por: Mariana Lima
Em 2019, Raíssa Luara de Oliveira, mais conhecida como Lua, de 13 anos, foi pela primeira vez à Bienal do Livro do Rio, um dos principais eventos de literatura do país. Durante o passeio, Lua viu que muitas crianças pegavam os livros mais baratos – aqueles de R$ 5 e R$ 10 –, mas não levavam.
“Percebi que várias crianças não tinham as mesmas oportunidades que eu estava tendo. Elas saíam da Bienal sem nenhum livro. Isso me deixou muito chateada”, relembra Lua.
Foram dois dias refletindo sobre o que poderia fazer. “Foi aí que decidi montar uma biblioteca. Sabia que precisava de um espaço, das estantes, mas fui logo gravando um vídeo e pedindo para que as pessoas doassem livros e materiais didáticos”.
Passando-se pela mãe, Lua ligou para a líder da Associação de Moradores do bairro para pedir um espaço no prédio em que a organização está localizada. Mas logo foi descoberta. Neste tempo, o vídeo já tinha viralizado. Em menos de 20 dias, Lua conseguiu mais de 4 mil doações.
“Estava esperando, no máximo, uns 100 livros. Achava que ia ler para uma meia dúzia de pessoas, que ninguém ia ligar muito para os livros. Mas a biblioteca foi crescendo de uma forma… Não esperava chegar ao que é hoje”, conta Lua.
Com uma proposta definida e o apoio da família, Lua conseguiu uma sala no prédio da Associação de Moradores para a Biblioteca Comunitária Mundo da Lua. O espaço fica na região central do Morro Tabajaras e Cabritos, em Copacabana, no Rio, onde Lua vive com a família. Ela reforça que na localidade há poucas oportunidades de lazer.
“Lá as crianças ficavam o dia inteiro correndo na rua com risco de sofrer alguma violência. Chamei a biblioteca de Mundo da Lua para que elas associassem com algo mágico. É uma forma de tirar elas da rua e oferecer um espaço em que podem se divertir e conhecer os seus direitos”.
Lua calcula que mais de 50 mil obras já foram doadas para a biblioteca. Deste total, pelo menos 30 mil estão no “Mundo da Lua”. A demanda que não consegue suprir é encaminhada para outros espaços parceiros.
Com a pandemia, a biblioteca precisou ficar temporariamente fechada. Enquanto isso, Lua se mobilizou para ajudar os moradores da região. Com o apoio da família, ela conseguiu produzir mais de 1 mil máscaras.
Na frente de mercados, as máscaras foram trocadas por alimentos para serem distribuídos na comunidade. Lua também realizou uma ação, durante o Natal, em que distribuiu 200 livros e brinquedos para as crianças que antes iam até a biblioteca.
No final de 2020, ela conseguiu arrecadar mais de R$ 100 mil por meio de uma vaquinha online para comprar uma sede para a biblioteca. O espaço atual, que é da prefeitura, vem apresentando diversos problemas de estrutura, incluindo vazamentos, que podem prejudicar as obras no local.
“Quero continuar com o projeto assim… para sempre, sabe? Quando estiver bem velhinha, quero poder deixar para alguém que vai continuar com ele. É inspirador. Não achei que conseguiria mobilizar toda essa rede, mas é fundamental”, revela Lua.
O Brasil que não pode ler
De acordo com a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil 2020, realizada pelo Instituto Pró-Livro em parceria com o Itaú Social, o país perdeu 4,6 milhões de leitores entre 2015 e 2019. Desta forma, apenas 52% dos brasileiros (100,1 milhões) têm hábitos de leitura.
Com base na pesquisa, as classes A e B foram as que registraram maior queda de leitores. Em Fortaleza, por exemplo, um número significativo da população que se considera leitora (54%) está nas classes sociais mais baixas, sendo 52% só na classe C contra 3% na classe A.
Ainda assim, a população com menor poder aquisitivo e sem acesso a equipamentos públicos de cultura por perto enfrenta mais dificuldades para ter uma relação com a literatura.
O publicitário e escritor Mateus Santana, de 28 anos, vivenciou a questão ao longo da sua juventude na periferia de Brasília (DF). O interesse pela literatura veio tarde, já na vida adulta.
“Geralmente, nas escolas públicas, a leitura se dá de uma forma muita agressiva. É uma linguagem que não conhecemos, que temos dificuldade de associar por ser rebuscada. A leitura vem de uma forma impositiva e não com afetividade”, argumenta.
A situação só mudou quando Mateus encontrou o livro Um pequeno vampiro (1979), que era da mãe. “Foi um ‘boom’ na minha cabeça. Era uma leitura mais tranquila e prazerosa para mim. Li várias vezes, algo que nunca fazia”, relembra.
De leitor, Mateus passou a escritor. Dedicando-se à poesia, ele começou a desenvolver projetos de escrita e de leitura. Mas, após dividir a mesa com um escritor famoso em uma Bienal, Mateus percebeu que precisava fazer mais.
“Esse escritor disse que não tinha intuito nenhum com a escrita. Queria apenas vender e ganhar dinheiro. Aquela fala me incomodou bastante. As pessoas que não querem mudar o mundo são as que estão confortáveis do jeito que ele tá. Foi aí que pensei em criar a Bienal da Quebrada”, conta.
Uma publicação em uma rede social lançou a ideia de Mateus para o mundo. A proposta era desenvolver um evento nos moldes das bienais tradicionais, mas que fosse realizado na periferia.
“A maior parte destes eventos ocorre no centro, que não é um espaço de lazer para quem é da periferia, e sim, de trabalho. Queria fazer algo com a linguagem periférica, com escritores periféricos, impulsionando outras formas de performance, como os saraus e slams”.
Em funcionamento desde 2019, a Bienal da Quebrada ainda não conseguiu cumprir esse objetivo. A falta de incentivo financeiro para organizar um evento deste tamanho é um dos principais obstáculos. Contudo, Mateus encontrou outras formas de manter a iniciativa ativa enquanto tenta viabilizar o evento em si.
“Daí veio essa ideia da Bienal ser ponte. Começamos a arrecadar livros para levar para bibliotecas comunitárias, projetos sociais com o mesmo objetivo do evento”.
Assim surgiu o projeto “Quebradinhas”, que reúne voluntários de todo o país para mapear iniciativas de leitura em regiões periféricas e mobilizar a arrecadação dos livros.
Em um ano, o projeto conseguiu reunir mais de 10 mil livros e doar 5 mil. Os livros que ainda não foram direcionados para doação ficam armazenados em um galpão administrado pela equipe da Bienal, que é responsável pelo envio e a distribuição para os projetos mapeados.
Durante a pandemia, Mateus organizou a doação de cestas básicas para comunidades vulneráveis. O diferencial das cestas da Bienal é que iam acompanhadas de livros, além dos alimentos.
“O livro ainda não é visto como prioridade. Precisamos de mais pessoas que demonstrem sua importância para que entendam que é um item de necessidade básica. É a maior arma que a gente tem. A dificuldade em acessar é um projeto político da sociedade para que a gente se distancie do conhecimento”, argumenta.
Desigualdade literária
A desigualdade no acesso à literatura é evidente no país. De acordo com dados do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas, o Brasil tem uma biblioteca a cada 33 mil habitantes.
Sabendo desta desigualdade, a pesquisadora e escritora Winnie Bueno aliou ações diretas de combate ao racismo com o acesso aos livros. Em 2018, ela criou a WinnieTeca para conectar, através do Twitter, pessoas interessadas em doar a pessoas negras que precisam de algum livro.
“Desde criança, eu sempre percebi que o acesso aos livros não era igual, que algumas pessoas podiam comprar livros e ter seus livros enquanto outras não tinham essa oportunidade”, revela.
O projeto logo foi crescendo e ganhou parceiros como o Twitter e o Geledés – Instituto da Mulher Negras. A WinnieTeca, que funciona com um robô na rede social, conseguiu mediar a doação de mais de mil títulos até o início de 2020.
“A WinnieTeca revela que as pessoas só não leem mais porque elas têm dificuldade de acesso. Uma dificuldade que é alargada por este governo. A gente está fazendo o que deveria ser uma política de Estado. Infelizmente, essa é uma preocupação secundária dos governos”.
Apesar do cenário, Winnie reconhece a relevância da iniciativa que criou sem imaginar que possibilitaria tantas conexões. “Eu fico feliz quando esses livros chegam nas mãos de adolescentes cumprindo medidas socioeducativas, nas bibliotecas comunitárias nas periferias, nos lugares onde o livro realmente não chega”, revela.
O pulmão do mundo pede palavra
De acordo com uma pesquisa da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC), somente 7% das bibliotecas comunitárias estão em área ribeirinha e 12,6% em regiões rurais. Há 20 anos, a Associação Vaga Lume vem promovendo o acesso à leitura nas comunidades localizadas nos nove estados da Amazônia Legal.
As bibliotecas ocupam lugares diversos nas comunidades. Em alguns casos, ficam na escola ou na casa de alguma liderança. A iniciativa também atua na capacitação de professores, jovens e lideranças da região como voluntários para a mediação de leitura.
Para Lia Jamra, responsável pelos Projetos Educacionais da Vaga Lume, a biblioteca se torna um marco para a comunidade que recebe.
“São localidades com total ausência de equipamentos culturais, de quaisquer recursos. Algumas comunidades têm a escola, um posto de saúde e a biblioteca. São comunidades com 1.000 famílias e muitas vezes a única forma de cultura é a biblioteca”, aponta.
Desta forma, o projeto busca promover a construção de um acervo diverso que dialogue com a cultura de cada comunidade, incluindo livros produzidos por membros das populações ribeirinhas e rurais.
“As pessoas precisam entender que embaixo desta floresta tem milhares de habitantes que precisam de acesso aos equipamentos de cultura. Tentamos sanar um pouco esse vácuo, uma vez que as grandes editoras não chegam até lá. Mas é um longo caminho”.
Com a pandemia, as bibliotecas precisaram ficar fechadas. Ainda assim, a Vaga Lume continuou atuando, enviando almanaques de atividades e livros para as comunidades com o objetivo de manter as crianças e jovens em contato com a leitura.
“Um bom livro de literatura infantil faz diferença na vida de uma criança. As comunidades em que vamos são leitoras, com uma população que gosta de ler. As crianças pedem livros, contam e desenham histórias. Nesses 20 anos, muitos se formaram, buscaram o estudo, a escrita por causa desse interesse que a biblioteca criou”, conta Lia.
Irene Patrocínio
24/02/2021 @ 22:49
o que vejo em minha cidade, é que as bibliotecas não aceitam livros publicados antes da reforma ortográfica, o que eu acho um absurdo. Pois, eu fui alfabetizada em um livro da minha mãe, onde por exemplo, o pronome “ele” ainda tinha acento circunflexo, e, como não tinha acesso à bibliotecas onde eu morava, eu lia os livros antigos que nós tínhamos, eram poucos, e dois deles foram publicados em 1860, ou seja, não foi um problema para eu aprender a escrever.
Voltando à essa regra aqui na cidade onde moro, sei de muitos livros que foram abandonados nas estações de metrôs, onde meus amigos que iriam doar na biblioteca, acabaram por optar pelo abandono.
Uma pena e falta de visão, na minha opinião.
Associação Vaga Lume cria fundo de ajuda para a Amazônia Legal
28/06/2021 @ 08:00
[…] o acesso à leitura e a gestão de bibliotecas para empoderar crianças de comunidades rurais desde 2001, a […]