Pandemia coloca em perigo avanços no combate ao trabalho infantil
Pandemia, aumento da pobreza e desmonte de políticas públicas podem comprometer avanços das últimas décadas no combate ao trabalho infantil
Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado
Por: Mariana Lima
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou, no final de 2020, novos dados sobre o trabalho infantil no Brasil, contemplando o período entre 2017 e 2019.
Apesar da redução de 16,8%, 1,8 milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos ainda estavam em situação de trabalho infantil no país. Deste total, 706 mil crianças e adolescentes estavam ocupados nas piores formas de trabalho infantil.
Para Isa Oliveira, secretária do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), os números apontam para uma queda lenta e pouco significativa.
“Estávamos em um cenário de alerta, sendo fundamental fortalecer os serviços de identificação da violação. Era uma situação que trazia preocupações, mas ainda tinha perspectiva positiva. Com a pandemia, as escolas fecharam e as crianças da periferia e empobrecidas ficaram sem alternativa. Não há renda, mas há fome”, argumenta.
Isa ressalta que ainda não há dados que mostrem o aumento do trabalho infantil em meio à pandemia em nível nacional, mas que já é possível ver a violação nos espaços urbanos.
“Quem está retomando as atividades presenciais percebe o crescimento do trabalho infantil nas ruas e da mendicância, com crianças em portas de mercados em busca de alguma renda”.
É este o cenário que a conselheira tutelar Carlina Henrique da Silva, de 52 anos, observa nos casos que chegam ao Conselho Tutelar de Pinheiros, na região nobre da Zona Oeste da cidade de São Paulo.
“São crianças exploradas pela mendicância ou na venda de panos de pratos e balas no farol. É muito difícil fazer as abordagens sociais nestas situações, pois elas [crianças] acabam correndo no meio dos carros. Algumas das famílias que atendemos veem na exploração do trabalho infantil um ganho a mais”, revela.
Carlina ressalta que houve uma queda nas situações denunciadas no primeiro semestre de 2020, mas que a partir de setembro voltou a crescer. “Agora temos muitos casos. Acho que sem a escola, elas ficam mais tempo vulneráveis”.
Para Bruna Ribeiro, jornalista do Cidade Aprendiz e do Criança Livre do Trabalho Infantil (antiga Rede Peteca), a pandemia limita o papel dos profissionais da educação como identificadores da violência.
“A escola era um ator da rede de proteção e o professor, na maior parte das vezes, é o único adulto fora do círculo familiar que tem contato com a criança e adolescente. Sem a vivência presencial fica difícil perceber as marcas e os sintomas do trabalho infantil. No online, os sinais ficam ocultos e as crianças presas com os agressores”.
Os dados do IBGE corroboram com a realidade, agravada pela pandemia, das crianças e adolescentes vulneráveis. Enquanto 96,6% de todos aqueles com idade de 5 a 17 anos declaram frequentar a escola, entre os que trabalhavam esse percentual caiu para 86,1%.
Contudo, os problemas não se restringem somente às famílias. A pandemia dificulta a realização das ações presenciais fundamentais para a identificação da violação.
“Os serviços da Assistência Social estão praticamente parados. Não realizam as visitas sociais, enquanto os serviços de saúde, como os de psicólogos e terapeutas ocupacionais, ou foram interrompidos ou estão atendendo de forma virtual, mas nem sempre as famílias conseguem realizar, porque não têm internet em casa”, revela Carlina.
Ao todo, 4,3 milhões de estudantes entraram na pandemia sem acesso à internet, enquanto 4 milhões entre 6 e 32 anos abandonaram a escola por problemas de conectividade e renda.
Políticas públicas limitadas
Antes da pandemia, os cortes orçamentários na Assistência Social eram obstáculos para as fiscalizações e ações de combate ao trabalho infantil. Mas o cenário se agravou em 2019, com a extinção da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti) pelo presidente Jair Bolsonaro (Sem Partido).
A Conaeti foi recriada no final de 2020, mas sem a participação da sociedade civil. O desmonte da Comissão também afetou a funcionalidade do Plano Nacional de Erradicação ao Trabalho Infantil, que está paralisado.
Para a procuradora Ana Maria Villa Real, coordenadora nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente no Ministério Público do Trabalho (MPT), o Brasil está regredindo para um cenário econômico anterior ao da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em meados da década de 1990, quando o trabalho infantil tinha índices altíssimos.
“É um cenário desolador. O Estado brasileiro, em todas as suas esferas, não tem a infância como uma prioridade. Temos um presidente [Jair Bolsonaro] que faz apologia ao trabalho infantil enquanto promove o desmonte da proteção social, que, aliás, já vinha de governos anteriores. Os problemas sociais se agravam e agora com a pandemia os números do trabalho infantil devem explodir”, aponta a procuradora.
Ela ressalta que o desmonte vem atingindo todas as políticas de combate à violação, como o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), que teve a política de cofinanciamento finalizada no prazo, mas, com a pandemia, seria necessário a discussão sobre outro cofinanciamento. São pautas, porém, que não estão em discussão.
“Observe o que fizeram com o próprio Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que ficou funcionando sub judice por mais de um ano e que felizmente teve sua configuração e funcionamento restabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal”.
E completa: “O Estado brasileiro lavou as mãos para o trabalho infantil. A ONU está na contagem regressiva para que os Estados membros consigam erradicar o trabalho infantil até 2025 e o Brasil está cada vez mais longe dessa meta, totalmente descomprometido com a causa. Se o presidente fala em defesa disso é porque a violação não é relevante”, argumenta a procuradora.
Em meio ao aumento da vulnerabilidade social e econômica de crianças e adolescentes pelo país, a procuradora revela preocupação com os equipamentos de assistência social, como os Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) e os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), que seguem atuando sem os recursos e suportes adequados.
“Podemos pedir, recorrer, mas quanto tempo demora? Como fica a família e a criança até que se consiga garantir o mínimo para eles? Temos um Congresso Nacional que, todo dia, tem um novo projeto de lei feito para piorar a vida de crianças e adolescentes”, aponta a procuradora.
Cor, classe e as consequências do Trabalho Infantil
De acordo com o IBGE, quase 7 em cada 10 vítimas de trabalho infantil no Brasil, entre 5 e 17 anos, são negras (pretas ou pardas). Até 2019, elas correspondiam a 66,1% entre os que trabalhavam.
“O trabalho infantil tem cor e classe social. É naturalizado, aceito e defendido por autoridades. Quando justifico o trabalho infantil porque é para ‘essas crianças’, estou falando de crianças negras, pobres e vulneráveis, que sofrem com os estigmas sociais. Se o trabalho infantil contribuísse para algo, como muitos defendem, seria privilégio das crianças brancas e ricas”, argumenta Isa Oliveira, do FNPETI.
Para Bruna Ribeiro, jornalista do Criança Livre do Trabalho Infantil, o histórico de defesa do trabalho infantil é um resquício do passado escravocrata brasileiro.
“Quando olhamos as linhas miúdas da Lei do Ventre Livre, por exemplo, está lá que as crianças seriam libertas após trabalharem até os 8 anos e que caberia ao senhor dos escravos decidir se elas seriam libertadas ou não. E, se ele libertasse, ainda receberia uma indenização do Estado. O trabalho infantil foi internalizado na sociedade e ainda estamos no caminho para desconstruir isso”, pondera.
Além de perderem o direito à infância e adolescência, as vítimas do trabalho infantil ainda precisam conviver com as sequelas psíquicas e físicas da violação.
Entre 2007 e 2019, 46.507 meninos e meninas sofreram acidentes de trabalho no Brasil, sendo 27.924 de forma grave, segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde. Outras 279 crianças e adolescentes perderam a vida nesse período.
“O trabalho infantil tira o direito ao trabalho digno, aos estudos e à proteção. Para muitos, se temos 1,8 milhão de crianças em situação de trabalho infantil, quase 300 óbitos não seria tão alto. Mas é. A vida é um direito fundamental. Não podemos tolerar este cenário. Uma vida de criança ou adolescente vale muito”, defende Isa Oliveira.
Com a pandemia, mais crianças podem estar perdendo suas vidas devido ao trabalho infantil. E, no momento, há menos Auditores-Fiscais do Trabalho para alcançá-las. Segundo coluna do jornalista Leonardo Sakamoto, há um déficit de 1,5 mil vagas. “Ao fiscalizar menos, encontramos menos crianças vítimas da violação. Por isso precisamos ficar atentos ao contexto dos dados”, diz Isa Oliveira, do FNPETI.
Muitos auditores-fiscais foram afastados por serem dos grupos de risco da Covid-19. Para o auditor Roberto Padilha Guimarães, coordenador da Atividade de Combate ao Trabalho Infantil na Subsecretaria de Inspeção do Trabalho no Ministério da Economia, o trabalho infantil é uma violação com diversas camadas, presente desde a lavagem de veículos nos centros urbanos até a pulverização, manuseio e aplicação de agrotóxicos.
“Em alguns casos, o próprio sistema de produção em que as famílias estão inseridas leva a colocar os filhos em situação de trabalho infantil. Muitas vezes, os malefícios do trabalho precoce não são percebidos”, aponta.
De acordo com o IBGE, mais da metade (51,6%) das crianças e adolescentes brasileiros que trabalham estão nos setores de agricultura (24,2%) ou comércio (27,4%). Outros 41,2% estavam empregados em outras atividades (41,2%), enquanto o restante (7,1%) se encaixava nos serviços domésticos.
Trabalho infantil doméstico
O trabalho infantil doméstico tende a ser uma das categorias do trabalho infantil mais invisibilizadas pela sociedade. É comum confundir a violação com a colaboração da criança com as tarefas de casa, o que especialistas rebatem.
Ao contrário das tarefas domésticas educativas, a exploração da mão de obra infantil no espaço doméstico envolve a punição física e psicológica, atrapalhando no desenvolvimento educativo e social da criança. A violação tende a ocorrer em casa de terceiros podendo ou não ser remunerado, mas também ocorre nas próprias casas das vítimas, segundo Danila Cal, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA)
“Em minhas pesquisas conversei com meninas que desde os cinco anos eram escravas da família. Os próprios familiares colocavam um banquinho para que elas alcançassem a pia e lavassem a louça, enquanto outros membros da família descansavam. Mesmo tendo homens adultos capazes, eram elas que tinham que fazer esses serviços”, relata Danila, que é também co-organizadora do livro ‘Comunicação, Gênero e Trabalho Doméstico: das reiterações coloniais à invenção de outros possíveis’.
Segundo a pesquisadora, o trabalho infantil doméstico no Brasil é resultado da divisão sexual do trabalho doméstico, que recai sobre as mulheres, e do racismo que vem do passado escravocrata do país.
“Esses elementos contribuem para uma aceitação social do trabalho infantil doméstico. São meninas pobres e negras que acabam ainda mais vulnerabilizadas através desta violação. E a sociedade, tanto pelo machismo como pelo racismo, não vê problema ‘nessas’ meninas estarem tendo seus direitos violados”, argumenta.
De acordo com uma pesquisa do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), com base em dados da PNAD de 2013, mais de 200 mil crianças e adolescentes pobres entre 5 e 17 anos eram vítimas do trabalho infantil doméstico. Deste total, 94% eram meninas, 73% negras e 40% nordestinas.
“Cheguei a conversar com patrões que simplesmente não reconheciam a violação ao ter crianças ou adolescentes trabalhando em suas casas, mas reconheciam na TV. Vinham com aquele discurso do ‘quase da família’, que é útil na hora de pagar menos e minar direitos”, aponta Danila.
A pesquisadora reforça que não adianta culpabilizar apenas os empregadores. Para ela, faltam políticas públicas que protejam essas meninas.
“Para muitas meninas de regiões extremamente pobres e vulneráveis pelo Brasil, as únicas oportunidades são o trabalho doméstico ou a prostituição. Já ouvi isso delas. São questões estruturais que precisam mudar. A sociedade precisa olhar para quais oportunidades elas estão recebendo. Não podemos admitir que sejam essas as únicas opções”.
Danila observa um cenário alarmante com a pandemia, uma vez que as meninas e adolescentes em trabalho infantil doméstico estão ainda mais suscetíveis a outras violações, como o abuso sexual.
“Eu só consigo pensar em um cenário em que a violação e a desigualdade contra crianças e adolescentes vulneráveis estarão agravadas. Precisamos de um enfrentamento sério coordenado pelo Estado. Esse ciclo da pobreza, em que gerações continuam no sistema de exploração, só será quebrado com políticas de apoio às famílias e acesso à educação”, afirma.
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Para realizar uma denúncia, ligue: Disque 100 – o disque denúncia é gratuito e anônimo.
Também é possível encaminhar a denúncia direto para o Ministério Público do Trabalho por meio do aplicativo MPT Pardal.
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