Sexta-feira sangrenta: as mortes de estudantes que a Ditadura Militar escondeu
Há exatos 55 anos, o episódio que ficou conhecido como Sexta-feira Sangrenta até hoje não tem um consenso sobre o número de vítimas. Com apenas 15 anos de idade, Fernando da Silva Lembo morreu no Hospital Souza Aguiar em 1º de julho, ele foi atingido por um tiro dos militares que queriam acabar com a manifestação contra o regime.
Era um Brasil onde não se podia confiar nas estatísticas oficiais, aquele de poucas décadas atrás. Não faz muito tempo: há exatos 55 anos, o episódio que ficou conhecido como Sexta-feira Sangrenta até hoje não tem um consenso sobre o número de vítimas. De um lado, a versão oficial aponta que foram três os mortos.
Já conforme dados do Centro de Documentação de História Contemporânea, da Fundação Getúlio Vargas, teriam sido 28 mortos, além de dezenas de feridos e mais de mil prisões. No verbete dedicado ao tema, a instituição afirma que o número foi obtido conforme informações de hospitais.
Na edição de 22 de junho de 1968, o Jornal do Brasil noticiou o episódio com direito a foto na capa. Segundo o texto, a manifestação havia deixado um saldo de um policial morto e, provavelmente, dois civis. Além de cerca de 80 feridos.
O volume 3 do relatório da Comissão Nacional da Verdade identifica cuidadosamente todas as 45 pessoas que, confirmadas, foram mortas pelo regime militar brasileiro entre 1964 e 1968.
Segundo o documento, foram três militantes, todos civis, que morreram na Sexta-feira Sangrenta. No entanto, apenas uma, a comerciária Maria Ângela Ribeiro, de 22 anos, morreu durante a manifestação — “morta a tiros pela polícia”, como enfatiza o relatório.
A ditadura militar que o Brasil viveu entre os anos de 1964 e 1985 teve entre seus presos políticos crianças. De caráter autoritário e nacionalista, a Ditadura Militar no Brasil, teve início com o golpe militar que derrubou o governo de João Goulart, o então presidente democraticamente eleito no país.
Apesar das promessas iniciais de uma intervenção breve, a ditadura durou 21 anos. Além disso, o regime pôs em prática vários Atos Institucionais, culminando com o Ato Institucional Número Cinco (AI-5), de 1968, que vigorou por dez anos.
Os atos institucionais incluíam torturas, assassinatos, ocultação de cadáver (até hoje vários corpos de presos políticos não foram encontrados) e também prisão e fichamento como “elemento subversivo” de crianças de apenas 2, 5 e 9 anos de idade.
Com apenas 15 anos de idade, o comerciário Fernando da Silva Lembo morreu no Hospital Souza Aguiar em 1º de julho daquele ano. Ele foi levado, segundo o texto “depois de ter sido atingido por disparo de arma de fogo, em 21 de junho, durante uma manifestação pública no centro do Rio de Janeiro”.
De acordo com o relatório da Comissão da Verdade, o terceiro óbito relacionado ao episódio ocorreria em 5 de agosto. Na data, o estudante e comerciário Manoel Rodrigues Ferreira, de 22 anos, morreu no Hospital Samaritano. Ele havia sido transferido para lá depois de passar por duas outras instituições de saúde e ter se submetido a uma cirurgia. Ferreira havia tomado dois tiros na cabeça durante a repressão.
Professor na Fundação Escola de Sociologia de São Paulo e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez explica que a dificuldade em se chegar ao número correto de vítimas é devido à própria falta de transparência da ditadura militar.
“Em primeiro lugar, havia uma censura. Em segunda, os militares não queriam difundir o número exato [de vítimas] para não gerar uma maior insatisfação em relação ao regime, com base no que poderia circular inclusive nos meios de comunicação”, avalia Ramirez.
Para o historiador Victor Missiato, pesquisador do Grupo Intelectuais e Política nas Américas, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré, “o número de 28 mortos é muito incerto, muito impreciso”.
“Não estou aqui corroborando a versão oficial dos três mortos, mas sim colocando em perspectiva o tema. A identificação dessas pessoas é muito imprecisa e dizer que é de acordo com informações de hospitais é algo muito impreciso”, afirma. “E a Sexta-feira Sangrenta foi uma espécie de ápice desse descontentamento”, define Ramirez. “No fim das contas, os jovens resolveram se rebelar e isso, de alguma forma, inflamou uma parte do resto da população civil. O resultado foi uma batalha campal entre estudantes e policiais, com direito a pedras arremessadas contra eles.”
Na manhã daquele dia 21, o que era para ser uma nova passeata dos estudantes contra a ditadura no centro do Rio acabou já começando em clima de guerra. Munidos de rolhas e bolinhas de gude, os estudantes armaram um obstáculo aos cavalos do policiamento, fazendo com que eles tombassem. De um lado vinham os tiros, do outro o revide com pedras. Até helicópteros foram utilizados para arremessar bombas de gás lacrimogêneo. No início da tarde, a confusão já estava espalhada por boa parte do centro do Rio.
A batalha só terminou à noite. Com o saldo até hoje impreciso de mortos e feridos.
A Sexta-feira Sangrenta foi um dos antecedentes que motivariam, cinco dias depois, a famosa Passeata dos Cem Mil, uma manifestação que reuniu artistas, intelectuais e formadores de opinião, todos nas ruas contra a ditadura militar.
Do outro lado, o governo também reagiu com firmeza. O crescente clima de oposição acabou sendo contra-atacado com mais repressão.
“O estado de exceção, no final das contas, promoveu uma censura generalizada. Não que isso já não ocorresse desde 1964, mas a partir do fim de 1968, o AI5 [Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968, o quinto dos 17 decretos emitidos pela ditadura] deu legitimidade jurídica, infelizmente, para que os militares agissem da forma mais severa possível, não só contra estudantes, mas também contra a imprensa”, comenta Ramirez. “Assim, essas manifestações como as que ocorreram no Rio foram o estopim para que a ditadura se tornasse, de forma escancarada, mais violenta”, afirma o sociólogo.
Fonte: BBC Brasil