Trabalho infantil aumenta na pandemia, mas segue ignorado no Brasil

Legislação
Compartilhar

Dados do trabalho infantil no Brasil estão defasados. Especialistas falam em subnotificações durante a pandemia e sobre a importância de pressionar as esferas governamentais para combater o problema

Foto dos pés descalços e parte das pernas de uma criança que carrega um balde com terra. Ao fundo, estão o que parecem ser as pernas de um adulto manipulando uma enxada. Está de dia.
Foto: Adobe Stock | Licenciado

Por Iara de Andrade

Trabalho infantil é “toda forma de trabalho, remunerado ou não, exercido por crianças e adolescentes abaixo da idade mínima legal permitida para entrar no mercado de trabalho, de acordo com a legislação de cada país”, pontua a Repórter Brasil, em seu material sobre trabalho infantil “Meia infância – O trabalho infanto-juvenil no Brasil hoje” baseado no programa “Escravo, nem pensar!”, o primeiro sobre prevenção ao trabalho escravo no país.

No Brasil, o trabalho é permitido:

  • A partir dos 18 anos, de todas as formas;
  • A partir dos 16 anos, de forma protegida; e
  • A partir dos 14 anos, dentro das normas da Lei do Aprendiz.

Aumento na pandemia

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em 2020, diziam que 1,8 milhão de crianças e adolescentes estavam em situação de trabalho infantil no ano de 2019.

Não existem informações específicas sobre o assunto relacionadas à pandemia do coronavírus no Brasil como um todo. Porém, de acordo com Bruna Ribeiro, jornalista, gestora do projeto “Criança Livre de Trabalho Infantil” e autora do livro “Meninos Malabares – Retratos do Trabalho Infantil no Brasil”, é possível afirmar que houve um aumento do trabalho infantil durante a crise sanitária.

“Os impactos da pandemia no agravamento das desigualdades foram muito grandes. Então, a gente sabe que houve o aumento da fome, o aumento da exclusão escolar e, consequentemente, do trabalho infantil” diz ela.

A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) conduziu o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar¹ no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Divulgada em abril de 2021, a pesquisa, intitulada “Olhe Para a Fome” mostra que moradores em 55,2% dos 2.180 domicílios consultados, em todas as regiões do país, no período de 05 a 24 de dezembro de 2020, estavam convivendo com a insegurança alimentar.

Bruna lembra que, em novembro de 2020, mais de cinco milhões de meninas e meninos, de 6 a 17 anos, estavam sem acesso à educação no país. No ano anterior, 2019, o número era de 1,1 milhão de crianças fora da escola. A jornalista afirma que o trabalho infantil tem uma relação direta com a condição de vulnerabilidade social.

“A gente sabe que as crianças que trabalham são crianças com famílias em vulnerabilidade social. Então, se aumenta a desigualdade social, se aumenta o desemprego, se aumenta a fome, se aumenta a exclusão escolar, consequentemente, aumenta o trabalho infantil”, explica.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) realizou uma pesquisa em São Paulo como parte de um relatório sobre estimativas de trabalho infantil no globo e constatou que houve um aumento de 26% do trabalho infantil na cidade, entre os meses de maio e julho de 2020.

O governo federal deixou de divulgar os números nacionais em 2018, 2019 e novamente em 2021.

Piores formas de trabalho infantil

Apresentada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), durante a 87ª reunião da Convenção 182, no ano de 1999, em Genebra, na Suíça, a chamada Lista TIP é uma classificação que determina as piores formas de trabalho infantil. Adotada em diversos países, a lista engloba: toda forma de trabalho escravo infantil, prostituição e tráfico de crianças, recrutamento e oferta de crianças para atividades ilícitas (como o tráfico de drogas), ou trabalhos que possam prejudicar a saúde, segurança ou a moral das crianças.

Ratificada em 2008, por meio do Decreto nº 6.481/2008, no Brasil, são 93 as piores formas de trabalho infantil, presentes em diversas atividades:

  • 35 em Indústria e Transformação;
  • 11 em Agricultura, Pecuária, Silvicultura e Exploração Florestal;
  • 9 em Serviços Coletivos, Sociais, Pessoais e Outros;
  • 6 em Indústria Extrativa;
  • 4 em Pesca;
  • 4 em Saúde e Serviços Sociais;
  • 4 em Trabalhos prejudiciais à moralidade; e
  • 3 em Transporte e Armazenagem;

Produção e distribuição de eletricidade, gás e água; construção; comércio e serviço doméstico apresentam uma forma cada.

Demais atividades incluem: a manutenção e lavagem de carros; a utilização de instrumentos cortantes; em câmeras frigoríficas; o levantamento, transporte e carga; a exposição à radiação solar, chuva ou frio; em alturas superiores a dois metros; a exposição a ruído contínuo e intermitente; a exposição a arsênico e seus compostos; em espaços confinados; a afiação de ferramentas e instrumentos metálicos; a direção e operação de veículos, máquinas e equipamentos; a exposição a radiações; e a manutenção e reparo de máquinas e equipamentos elétricos.

Naturalização do trabalho infantil pela sociedade

O trabalho infantil tem bases em uma cronologia histórica e está diretamente ligado ao período de escravidão no Brasil. Assinada pela Princesa Isabel, a “Lei do Ventre Livre” declarou livres os filhos de mulheres escravizadas que nasceriam a partir de sua promulgação, em 28 de setembro de 1871. Porém, seu segundo parágrafo diz:

“§1º Os ditos filhos menores ficarão em poder o sob autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão obrigação de criá-los e trata-los até a idade de oito annos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá opção, ou de receber do Estado a indemnização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 annos completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. A indemnização pecuniária acima fixada será paga em títulos de renda com o juro annual de 6%, os quaes se considerarão extinctos no fim de 30 anos. A declaração do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias, a contra daquele em que o menor chegar á idade de oito annos e, se não a fizer então, ficará entendido que opta pelo arbritrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor.

§2º Qualquer desses menores poderá remir-se do ônus de servir, mediante prévia indemnização pecuniária, que por si ou por outrem ofereça ao senhor de sua mãe, procedendo-se à avaliação dos serviços pelo tempo que lhe restar a preencher, se não houver acordo sobre o quantum da mesma indemnização”.

Ou seja: se o senhor escravizador optasse por libertar a criança, na idade de oito anos completos, seria indenizado pelo Estado Brasileiro; e caso ele não optasse por libertá-la, a criança trabalharia para o escravizador até os 21 anos. “Nesse momento, com a Lei do Ventre Livre, nós temos a institucionalização do trabalho infantil”, ressalta Ribeiro.

Apenas com o Estatuto da Criança e do Adolescente, em 13 de julho de 1990, a infância vulnerável deixou de ser criminalizada pelas leis do país, propondo a proteção integral das crianças e adolescentes.

Natália Suzuki é coordenadora do programa de educação da Repórter Brasil “Escravo, nem pensar!” e também diz que a ideia de exploração laboral, tanto de crianças e jovens, quanto de adultos, vem de longa data e é algo entendido como natural na sociedade brasileira, fazendo com que normalizemos crianças carregando sacolas de feira e/ou pedindo dinheiro no farol.

“Essas crianças deveriam estar indo para a escola, recebendo alimento suficiente, fazendo atividades esportivas, participando de iniciativas de lazer e cultura. Na verdade, o que a gente tem no Brasil é uma segmentação de que algumas crianças e alguns adolescentes são merecedores disso e devem fazer parte disso, e outras não”, diz Suzuki.

Ela lembra também que muitos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas e, até mesmo a população carcerária adulta, já estavam envolvidos com alguma atividade laboral precocemente, contrariando a ideia meritocrática de que trabalhar cedo dignifica a pessoa.

Como o trabalho infantil afeta o desenvolvimento e o futuro das crianças

O trabalho infantil acarreta diversas consequências nas vidas de meninos e meninas, podendo afetar seu desenvolvimento físico, cognitivo, psicológico e intelectual e impactando diretamente na construção de uma vida adulta saudável.

Quando trabalham, as crianças são retiradas do convívio familiar e ficam impedidas de brincar, estudar e descansar. Tornam-se vulneráveis a acidentes e à violência sexual e podem desenvolver fadiga excessiva, insônia, dores de cabeça e na coluna além de problemas nos ossos e nos músculos.

Bruna Ribeiro, autora do livro “Meninos Malabares – Retratos do Trabalho Infantil no Brasil”, explica que a criança que trabalha fica mais cansada para frequentar a escola, rende menos, eventualmente acaba largando os estudos e deixa de acessar o ensino superior e o mercado de trabalho regular, ou o trabalho decente.

“Então, do ponto de vista econômico, o trabalho infantil gera a perpetuação do ciclo da pobreza, que é repetido de geração em geração. Na maioria das vezes, quando a gente conversa com as famílias em situação de trabalho infantil, os pais dessa criança também começaram a trabalhar muito cedo; os avós também, e assim consequentemente”, diz.

O que a sociedade civil tem feito para combater o problema

É preciso reconhecer o trabalho infantil como um problema, cobrar e pressionar os governantes para pautar as políticas públicas, efetivar os direitos que já estão assegurados pela lei e divulgar os dados relacionados.

Bruna Ribeiro diz que: “Não existe política pública sem demanda social. Então, enquanto o trabalho infantil não for um problema para a sociedade, a gente não vai conseguir fazer uma pressão suficiente para pautar políticas públicas de enfrentamento a essa violação”.

A Repórter Brasil e a Criança Livre de Trabalho Infantil (antiga Rede Peteca), iniciativas entrevistadas para esta reportagem, trabalham com a divulgação e no combate ao trabalho infantil no país.

A denúncia também é uma ferramenta importante para a sociedade civil no combate à exploração do trabalho infantil. Canais como o Disque 100 e o Disque 156, para violação de direitos humanos, estão disponíveis e oferecendo uma rede de proteção para as famílias de crianças vítimas do trabalho infantil.

Natália Suzuki defende que as ações de combate não devem estar somente no âmbito repressivo, mas, também no preventivo, com políticas voltadas à educação, assistência social e habitação para evitar que crianças e adolescentes abandonem a escola, possam participar de atividades culturais e não se dediquem a atividades laborais. “Destacando ainda, que precisamos ativar, ou reativar, as instâncias participativas que lidam com o tema e que ficaram inoperantes, ou apagadas nos últimos anos”, comenta.

O Observatório do Terceiro Setor, enquanto mídia focada nas causas sociais, também participa do combate à exploração do trabalho infantil no país, difundindo notícias e divulgando o trabalho das organizações comprometidas com o tema.

*

¹ A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, em inglês), define segurança alimentar “quando as pessoas têm, a todo momento, acesso físico e econômico a alimentos seguros, nutritivos e suficientes para satisfazer as suas necessidades dietéticas e preferências alimentares, a fim de levarem uma vida ativa e sã”. A insegurança alimentar ocorre, portanto, quando há insuficiência de acesso a alimentos, em qualidade ou quantidade necessária, pela população.


Compartilhar