“Uma vergonha nacional e internacional”, diz a socióloga Márcia Moussallem sobre a ofensa de Bolsonaro a Maria do Rosário
Por Sueli Melo
Os últimos dias foram intensos em nosso país: na semana passada vivenciamos um momento histórico com a entrega do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, no Dia dos Direitos Humanos. Quase que ao mesmo tempo, fomos testemunha de um fato deplorável: a ofensa pública do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) à deputada Maria do Rosário (PT-RS). Dois Brasis num mesmo país. Grandes desafios pelo respeito aos Direitos Humanos e , para o segundo mandato da Presidenta Dilma, de expectativa do povo brasileiro com relação à economia, à educação e à saúde. Marcia Moussallem, socióloga e colunista do Observatório do Terceiro Setor, analisa o cenário sócio-político atual, os impactos do relatório sobre os crimes políticos durante o regime militar e a necessidade de rever conceitos na sociedade brasileira de hoje. Confira a entrevista:
Observatório do Terceiro Setor – Como você analisa o cenário sócio-político atual e quais são os impactos da Comissão da Verdade para a nossa sociedade, neste sentido?
Márcia Moussallem – O cenário sócio-político atual é muito desafiador para a presidenta Dilma, diante de todo esse problema que estamos vivendo – de expectativa do povo brasileiro com relação à economia, à educação e à saúde. É um pouco essa pauta, as reivindicações do ano passado, quando as pessoas foram para as ruas querendo uma série de mudanças. Isso retoma esse desafio. É um cenário muito tenso. Ocorreu uma divisão muito grande das classes sociais no Brasil e essa conjuntura favoreceu certa tensão e uma cobrança muito grande com relação às propostas do que vem daqui para frente para o Brasil, não só do ponto de vista do crescimento econômico, a questão da inflação, mas o próprio desenvolvimento. Esse cenário político favorece também uma pressão muito grande sobre a presidenta Dilma, no que diz respeito a essa onda de corrupção, que não é um problema do PT, mas de todos os partidos. Tudo isso vem à tona e se mistura com questões econômicas, políticas e éticas.
Observatório – Como você avalia esta distorção social, quando pessoas vão às ruas pedindo a volta da ditadura, em um momento em que é divulgado o relatório da Comissão Nacional da Verdade sobre crimes desse período vividos no Brasil?
Márcia – A Comissão da Verdade veio num momento muito propício. As pessoas estão indo para as ruas – mais em São Paulo que isso tem acontecido, onde o Aécio ganhou mais votos – pedir a volta da ditadura em um cenário de incertezas muito grande. Pedem a volta dos militares para socorrer da inflação, a questão da corrupção e há essa mistura muito grande e isso é desafiador. O PT, a partir de todos aqueles problemas de corrupção, como o mensalão, tem que resgatar essa credibilidade. Ao mesmo tempo, a Comissão da Verdade tem um papel fundamental, quando as pessoas voltam para a rua e começam a resgatar o que aconteceu nos anos de ditadura é importante também. É uma grande contradição, mas é fundamental resgatar a memória. Os brasileiros precisam desse resgate da História e da memória da ditadura. Até hoje ainda não encontraram os desaparecidos. A Comissão não conseguiu localizar e o pior, os militares se calaram nesse momento em que a Comissão começa a resgatar e apresentar para a presidenta Dilma. Esta é uma distorção muito grande, uma ausência de memória, da história do que vivemos não só do ponto de vista dos direitos humanos, dos direitos civis, mas também foi um período em que os militares conseguiram afundar o Brasil economicamente. As pessoas esquecem. Claro que temos aí uma geração muito nova, que nasceu pós-ditadura, que não a conhece e a Comissão da Verdade está divulgando isso, o governo colocando na grande mídia. Isso é fundamental, principalmente para essa geração que nasceu pós anos 1980. É preciso resgatar. O Brasil tem uns resquícios de esquecer a própria história. Ela não é colocada à tona para as pessoas refletirem, ter um debate mais sério na grande mídia sobre esse período, tanto do ponto de vista humano – isso foi um crime contra a humanidade, um crime muito grande de sequestros, de desaparecimentos, de torturas – e também sob o viés político, econômico e educacional que vivemos. Há tentativas de resgatar por meio de políticas sociais, políticas públicas, resgatar o crescimento da economia pós-Constituição e o Brasil lentamente está fazendo isso, acredito que graças a esses 12 anos do governo do PT, com todos os prós e contras. Eu diria que a partir de Lula e Dilma conseguimos resgatar, fazer o Brasil sair do mapa da fome, a economia crescer, fazer funcionar políticas públicas para os mais pobres. Isso foi fundamental e a Comissão da Verdade, é claro, foi importantíssima, em tempos de pessoas reivindicando a volta dos militares. Nem conseguimos esclarecer por completo esse período, identificar os desaparecidos. Esse passado não foi enterrado – a Comissão foi o inicio. Existe uma preocupação muito grande com o silêncio dos militares até mesmo porque o cenário sócio-político é muito propício a qualquer estopim, sabemos disso tanto do ponto de vista da sociedade como dos militares. Eles se calaram. Para eles o que ocorreu naquele período foi uma defesa da nação. A tortura, os sequestros e toda essa agressão e esse crime contra civis. Isso não foi comentado desde a apresentação do relatório, o que é preocupante. Tem que colocar as coisas de uma forma muito clara para sociedade e a grande mídia tem que fazer o papel dela neste processo.
Observatório – Como você vê a reação no Congresso do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) ao ofender publicamente uma mulher, a deputada Maria do Rosário (PT-RS)?
Márcia – Falamos tanto em desenvolvimento, em país do futuro e vem um político com esse posicionamento extremamente machista em pleno século XXI e as mulheres conseguiram um espaço muito grande. Um político eleito – isso temos que rever muito – rever como estamos escolhendo nossos representantes. A sociedade brasileira não é feita só de homens, mas principalmente de mulheres e ofender publicamente isso é grave. Sou a favor de uma cassação. Isso é uma vergonha do ponto de vista nacional e internacional. Isso não deve ficar impune em hipótese alguma. Tem que punir, cassar porque mostra um machismo de uma casa grande/senzala, uma relação machista que achávamos que estava superada. É inadmissível um homem público, que representa os interesses do povo, eleito democraticamente ofender uma mulher. Hoje estamos combatendo o estupro, a violência doméstica. Isso é um incentivo negativo muito grande, porque há outros homens defendendo a posição do Bolsonaro, isso é o mais absurdo. Tem homens dizendo não, “mas ela provocou” – é o mesmo discurso do cotidiano: o homem que bate na mulher – ela que provocou, ela que se insinua. Sempre ela tem a culpa e a vitimização o homem. Estamos retrocedendo nesse sentido. No congresso, a maioria é homem e as mulheres não têm espaço. Isso já mostra um machismo muito grande e ai vem um político e diz isso. É uma coisa muito séria que tem de ser punida, até por uma questão de ética e de respeito com a sociedade brasileira, que é composta em sua maioria por mulheres. Está na hora de rever uma serie de conceitos e a que ponto estamos chegando. Não é só a questão política, mas a questão ética. Que sociedade é essa que queremos construir. Porque democracia não é falar o que quer. Democracia é respeito ao outro, é participação. A liberdade de expressão tomou um viés de uma distorção muito grande no Brasil. Está na hora também discutirmos isso. Que tipo de democracia, de político, de sociedade queremos construir? Isso é vergonhoso o que tem acontecido. Temos que ter esse governo com um posicionamento muito forte. No cenário Internacional fomos alvo de criticas sobre o que está acontecendo aqui. Nos principais noticiários ter esse tipo de noticia do Brasil é uma vergonha. Tantos países estão lutando por direitos humanos, direitos sociais, democracia e nós estamos retrocedendo. O Brasil deveria aprender muito e olhar muito para os nossos vizinhos latinos – Bolívia, Argentina, Equador, Uruguai. A Comissão da Verdade não deve parar por aí, tem de aproveitar esse momento e seguir o exemplo da Argentina do Chile de punir e prender. Os “nossos militares” se calaram diante do relatório. Eles não assumem a culpa. E a anistia, como fica isso? Ao tempo, vemos notícias de pessoas que trabalharam com Fleury dizendo “nos matamos, torturamos e aí?”. Nossos vizinhos conseguiram punir essas pessoas e o Brasil como fica?
Observatório – O que o Poder Público e movimentos sociais podem fazer para conscientizar as pessoas sobre “Direitos Humanos” – algo que é para todos -, já que boa parte o vê como um dispositivo para libertar criminosos de suas penas?
Márcia – Os movimentos sociais são fundamentais para cenário político desafiador, inclusive os de apoio à presidenta, o MST e todos os outros, de todas a as instâncias, são muito importantes para esse processo, para poder realmente divulgar. Mas só os movimentos sociais não bastam, eles não têm a grande mídia do lado. É raro a grande imprensa apresentar algo positivo sobre os movimentos sociais. Sempre é a criminalização desses movimentos sociais – criminalização do Governo Dilma, da figura dela, do PT e corrupção como se fosse algo homogêneo. Três semanas atrás saiu notícia sobre a passeata do MST como baderneiros, que não têm o que fazer. Vivemos uma conjuntura de criminalização muito forte. Os movimentos sociais são importantes, mas se não tiver uma democratização da mídia urgente ficará muito difícil ter um debate sobre direitos humanos. O que as pessoas têm assistido é punição todos os dias na televisão. Vamos matar, prender assassinos. “Direitos humanos” resume-se a isso: prender os marginais violentos que estão roubando e assaltando a classe média. O brasileiro ainda não conseguiu ver que “direitos humanos” é algo que perpassa todas as instâncias da sociedade, que está extremamente alienada a respeito disso. O poder público tem que resgatar uma mídia do governo. A população tem pouco acesso à informação vinda de canais públicos, jornais do governo. Como fez a presidenta da Argentina, com a reforma grande e hoje as pessoas estão tendo mais acesso às informações do governo. Aqui, as pessoas se informam pela televisão aberta muito mais que leem jornal e quando leem são jornais que não são a favor do governo, dos movimentos sociais, dos direitos humanos. É um bombardeio muito grande negativo em relação a tudo. Não educam, informam e muito mal, e o governo precisa ter alguma mídia, televisão, jornal – educativos eu diria. É preciso resgatar concessões, dividir, democratizar, usar mais estes meios não, só em época de eleição e propaganda eleitoral – do ponto de vista do debate e de informação estas eleições foram terríveis. Não vejo o poder publico se aproximando da sociedade, falando de questões mais sérias como os direitos humanos. Por exemplo, quem sabe da Comissão da Verdade? Fala-se muito rápido nos meios de comunicação, mas analisar a refletir a nossa história, assistir um programa específico para isso não tem. Quem tem acesso é a classe média. A maioria da população brasileira não consegue ter acesso a isso, estão acessando outras coisas mais fáceis e o governo vai ficando para trás. Temos que aprender com nossos vizinhos latinos, pegar referência como fazemos com os Estados Unidos e Europa. A nossa população sabe que teve uma reforma na comunicação na Argentina? As pessoas não sabem. Por aqui falam que democratizar os meios de comunicação é ditadura, é tolher a liberdade de expressão. O governo é fundamental nesse processo educativo junto com os movimentos sociais. Não temos canais desses movimentos – na Argentina 30% é destinado para as mídias alternativas. Temos isso aqui? Quem lê o jornal do MST, que circula pouco, quem divulga isso? O poder público tem que ter alguma estratégia. Falamos muito de educação, que da população precisa saber sobre direitos humanos, mas quais são os instrumentos para chegar na ponta disso que vamos utilizar? O poder público, as organizações do Terceiro Setor, os movimentos sociais estão a mercê de um partido gigantesco que é a grande mídia, que informa muito mal. Como chegar com assuntos, não só de direitos humanos, mas outros também como redução da maioridade penal – que era inclusive uma proposta do Aécio Neves – e outras discussões sobre democracia participativa, a importância dos Conselhos, dos movimentos sociais, das políticas públicas, o que é um bolsa família. São diversos assuntos que a sociedade não tem conhecimento, só está erroneamente informada, uma forma que aliena. É isso que temos visto. Estamos numa guerra que parecia sutil, mas está sendo extremamente agressiva e a comunicação é fundamental. Se não tomarmos uma iniciativa como nossos vizinhos tomaram, vai ficar muito difícil. É um desafio muito grande numa conjuntura propicia à volta a ditadura, que prende jovens, e tem político que ofende publicamente uma mulher e não se discute o problema, que é cultural e perpassa a questão política e o cotidiano, da violência doméstica. Tem uma série de questões seríssimas e preocupantes para a sociedade. Informar é diferente de educar, que é um processo de reflexão das pessoas, discussões, aprofundar mais os temas. Tem que ter alguma iniciativa no Brasil, se posicionar mais. Não vemos muito isso, parece que estamos acuados em relação a estas questões.