Bebê Rena, Dilúvio e a voracidade do Antropoceno

Compartilhar

Imagem: Adobe Stock

 

Por Rodrigo Fonseca Martins Leite

Os motes clássicos do capitalismo são os mesmos desde a revolução industrial: expansão do mercado consumidor e maximização da produção e lucratividade. Por um período histórico considerável, as democracias liberais se preocuparam em contrabalancear a expansão econômica com a preservação de valores humanistas e fomento das políticas públicas. Enquanto sociedade ainda esperamos que haja uma preocupação sistêmica, robusta e genuína dos gestores, políticos, elite financeira e tomadores de decisão em prol da manutenção da civilização.

O freio dos desejos humanos é um pré-requisito para escaparmos da barbárie. Sigmund Freud teorizou que o princípio da realidade deveria adestrar o princípio do prazer em prol de uma existência individual e coletiva mais harmônica, empática e tolerante. Desta forma, adiar a satisfação passa a ser uma exigência da vida adulta.

Entretanto, assistimos a uma expansão sem precedentes de um espírito do tempo impulsivo e irracional. Os apelos de sustentabilidade não têm encontrado eco suficiente. Vejamos alguns exemplos:

Políticos e estados são pautados por interesses econômicos locais e internacionais; planos de saúde excluem autistas e obstaculizam o acesso ao tratamento de pessoas com câncer; logaritmos das redes sociais premiam o ódio; realidades paralelas nutrem narrativas à gosto do freguês; negacionistas de toda a ordem truncam o debate público e impedem consensos.

Neste cenário, negligenciar e não se preparar para a emergência climática é sintoma desta erosão do pacto coletivo. O colapso do Rio Grande do Sul deveria ser prova cabal de que algo grave se instalou. Será suficiente para despertar as consciências?

A minissérie Britânica “Bebê Rena” disponível na Netflix é um compêndio psicológico dos abismos nos relacionamentos humanos mais abusivos e obsessivos. A personagem Martha Scott – vivida pela atriz Jessica Gunning é uma stalker voraz que quer controlar e se apoderar da sua vítima – o personagem Donald Dunn – um humorista fracassado com baixa auto-estima.

Analogias à parte, a tragédia no sul é resultado de um relacionamento abusivo e egoísta do homem com a natureza e consigo mesmo que chegou ao paroxismo. Ao atender as necessidades humanas de curto prazo à qualquer preço, termina-se em aniquilação e exaurimento.

Nossas lacunas – emocionais e materiais são insaciáveis, tais como a de Martha Scott. O preenchimento mínimo destas somente ocorre com um contrato coletivo de abdicação do egoísmo e do imediatismo. Impossível não destacar que um dos setores econômicos mais penalizados pela mudança climática é o agronegócio, mas que parece também ser vítima da tunelização da capacidade de julgamento.

Uma visão mínima de médio e longo prazo poderia fazer concluir que o ritmo da emergência climática, o negacionismo e o afrouxamento da legislação ambiental atrapalham os fluxos de caixa. Renas são animais de clima frio e polar e certamente estão sofrendo, assim como centenas de outras espécies animais. Sim, o homem é também uma animal cuja racionalidade encontra-se em xeque. Martha é o antropoceno.

*

*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do Observatório do Terceiro Setor.

Sobre o autor: Rodrigo Fonseca Martins Leite é médico psiquiatra pelo IPq HCFMUSP, mestre em políticas públicas e serviços de saúde mental, produtor da mídia social “Psiquiatra da Sociedade”.

 

 


Compartilhar