Tubarões da Groenlândia e as lições sobre o tempo humano
Por Rodrigo Fonseca Martins Leite
A duração da vida de algumas espécies animais e vegetais são de causar inveja aos humanos: O tubarão da Groenlândia está vivo nos mares glaciais desde o século XVII e o pequi-preto, uma árvore brasileira está por aqui desde antes da chegada dos Portugueses. Uma espécie de coral negro da costa do Havaí chegou a surpreendentes 4260 anos. A medusa imortal tem esse nome pela capacidade de reverter seu ciclo de vida numerosas vezes, postergando indefinidamente a morte.
Da mesma forma, quando andamos em alguma mata, somos silenciosamente contemplados por árvores que estavam vivas antes de nós e que permanecerão após nossa partida desta curta trajetória humana de 70 a 80 anos. A humildade e a reverência perante a grandiosidade da natureza contribuiria para o bem-estar e resiliência da espécie humana. Infelizmente, as mudanças climáticas e a degradação de ambientes naturais não favorecerão o aumento da expectativa de vida, à despeito dos avanços científicos e tecnológicos da medicina.
A consciência da mortalidade, própria do homo sapiens, deveria favorecer uma maior consciência do tempo. Ao longo dos séculos, o modo de produção vigente regula a relação que os indivíduos têm com a passagem do tempo. Na Idade Média, um camponês medieval tinha uma percepção circular do tempo em que a sucessão das estações do ano e das horas de luz e trevas organizava a existência. A revolução industrial cria um tempo ampliado e desequilibrado de trabalho, inicialmente extenuante e cruel, abrandado pelos avanços sociais e trabalhistas do século XX.
Saltando para o século XXI, pós-pandêmico já é evidente que a relação com o tempo mudou radicalmente – A disponibilidade de tempo livre ocioso se reduziu drasticamente, a separação entre vida pessoal e profissional desapareceu e o foco e a atenção cerebral são editadas e fatiadas por uma enxurrada de informações, curtidas, mensagens, textos fragmentados, palavras de ordem, memes, polarizações em todos os níveis.
Neste contexto, vivemos dias que são frequentemente curtos demais, mecânicos e sem aprofundamento. Numa urgência por produzir, empreender, lucrar, otimizar e gerar propósito, descuidamos de alinhar corpo, mente, alma frente ao tempo. Às vezes o corpo quer só ficar parado ou andar na Avenida Paulista numa tarde de outono ou a mente quer se sintonizar com o tempo presente ou a alma demanda conexão e regeneração. Em quantos momentos, conseguimos dar ouvidos a todas as dimensões de nossa realidade interna de forma sábia?
Usufruir seu tempo da melhor forma possível é a grande riqueza da vida e esta premissa não pode esperar a aposentadoria. Pode não haver mais tempo e isso está sempre fora da governabilidade humana. Usufruir não é sinônimo de ser produtivo ou de gerar resultados ou cumprir check-lists. Hoje em dia é quase uma heresia permitir- se ao despropósito e ao “desperdício” de tempo. Como ousa chamar de vida algo que não envolva consumo, resultados ou utilitarismo?
Não somos tubarões da Groenlândia ou tartarugas gigantes de Galápagos. Tampouco somos “recursos humanos” numa prateleira de ferramentas corporativas com data de validade. O tempo é curto sempre e exige felicidade espiritual inadiável no aqui e agora. O mundo não desmoronará se você desligar o celular e cancelar a agenda de compromissos, superegos tirânicos e patrões. Para além do encaixotamento da experiência humana nos escritórios, tronos de apartamentos, expectativas e telas eletrônicas, viva de degustar microliberdades serenas e prosaicas. Que a vida seja infinita enquanto dure. Tudo agora mesmo pode estar por um segundo como no sábio verso de Gilberto Gil.
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*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do Observatório do Terceiro Setor.
Sobre o autor: Rodrigo Fonseca Martins Leite é médico psiquiatra pelo IPq HCFMUSP, mestre em políticas públicas e serviços de saúde mental, produtor da mídia social “Psiquiatra da Sociedade”.
Geraldo Busatto Filho
04/05/2024 @ 09:20
Muito oportuna a conexão entre a reverência à natureza de um lado, e a consciência humana sobre finitude e passagem do tempo de outro.