255 milhões de pessoas consomem drogas no mundo, segundo a ONU
Um estudo aponta que o uso de drogas como o crack é consequência de uma vida precária que leva à dependência
Por: Isabela Alves
Em todo o mundo, 255 milhões de pessoas consumiram algum tipo de droga em 2015, segundo o Relatório Mundial sobre Drogas 2017, feito pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). Desses, 29,5 milhões apresentaram transtornos relacionados ao consumo de drogas, incluindo a dependência.
O relatório também aponta que pelo menos 190 mil pessoas morreram por causas relacionadas ao consumo de drogas – a maioria por overdoses ou consumo de opioides (presentes em vários remédios para alívio de dores).
No Brasil, o Levantamento Nacional de Álcool e Drogas, lançado em 2014 e feito com base em dados de 2012, revela que o consumo de drogas estimulantes como a cocaína – na forma intranasal (“pó”) ou fumada (crack, merla ou oxi) – está aumentando, enquanto na maioria dos países o consumo está diminuindo.
De acordo com o levantamento, 3,8% dos brasileiros adultos já consumiram cocaína alguma vez na vida e 2,3% dos adolescentes também. Já o crack já foi consumido por 1,3% dos adultos e 0,8% dos adolescentes (sem contar as pessoas em situação de rua).
Outro estudo, este chamado Crack e Exclusão Social, aponta que o uso de drogas como o crack é consequência de uma vida precária que leva à dependência. “O uso de drogas envolve múltiplos fatores, mas alguns que podem ser destacados são os fatores biológico, psicológico e social”, explica a psicóloga Priscila Alcântara da Costa, de 34 anos.
Segundo a especialista, o fator biológico ocorre quando existe histórico de vício na família, já o social é quando o indivíduo passa por muitas situações adversas ao longo da vida e, muitas vezes, a droga acaba se tornando sua única companhia.
Outro importante fator é o psicológico. “O jovem atualmente vive sem muitas expectativas, sem objetivos consolidados. Mesmo que essa geração tenha a oportunidade de ter mais acesso à informação, existe uma sensação de vazio, uma falta de acreditar em algo”, comenta. Não é possível generalizar o porquê de os jovens entrarem no mundo das drogas. Entretanto, um fator determinante para o futuro de um jovem é a sua estrutura familiar.
“Cada vez mais os jovens estão crescendo sem a criação e o cuidado dos pais. Por conta da rotina, muitos acabam nem se preocupando com o que o jovem sente. Sem lugar para se sentir acolhido, ser aceito ou orientado, muitos encontram um conforto nas drogas. Eles sentem prazer, mas não medem as consequências dos seus atos”, relata a psicóloga.
O drama de uma jovem usuária de drogas
Letícia (nome fictício) teve uma infância marcada pela violência doméstica. O pai batia na esposa e nos filhos frequentemente. Certa vez, o pai segurou Letícia pelo pescoço até que ela perdesse a consciência.
Aos 10 anos, a menina começou a trabalhar. Todos os dias, ela acordava às quatro da manhã e saía ao lado do pai pela cidade vendendo salgados, como tortas e coxinhas. Ao meio-dia, voltava para casa, almoçava e ia para a escola. Por conta da rotina agitada, ela não conseguia se concentrar nas aulas. No entanto, o que mais importava para ela era estar com a sua melhor amiga, Carolina.
Conforme foi crescendo, o ambiente escolar, que antes era visto como um refúgio, foi se tornando hostil e agressivo. “Eu sofria muito bullying por ser gorda. Eles puxavam a minha cadeira e até tacavam pedras”, conta Letícia. Ao sofrer as agressões dos colegas de sala, de cabeça baixa e se perguntando o que fez para merecer aquilo, Letícia sentava no chão e começava a chorar.
Ao voltar da escola, Letícia realizava a contabilidade dos lucros da venda de salgados e preparava os alimentos para o outro dia. Como ajudava o pai com as finanças, era fundamental que Letícia tirasse boas notas na matéria de matemática. Um de seus maiores traumas na infância foi quando tirou nota vermelha nessa matéria.
Letícia conta que estava brincando no escorregador com a amiga quando, de repente, seu pai entrou na escola furioso, com o boletim na mão. Ele a segurou pelos cabelos e a tirou do brinquedo. O couro cabeludo doía muito, mas Letícia conseguiu chegar em casa sem derramar uma lágrima.
Ao entrar, o pai a jogou no chão e pegou um cinto no guarda-roupa. Com as lágrimas escorrendo, ela sentia seu corpo arder a cada cintada que recebia e só conseguia pensar em quando aquela tortura iria acabar. Letícia precisava de uma válvula de escape. Então, através de conhecidos, aos 12 anos, começou a fumar maconha. Na primeira vez em que tragou o cigarro, sentiu o corpo mole e uma lerdeza, mas logo veio uma tranquilidade que nunca havia sentido em sua vida.
“Começou como uma brincadeira. Pouco tempo depois, eu estava fumando todos os dias. Só conseguia dormir se fumasse. Até nos sonhos eu pensava em maconha”, conta. Para sustentar o vício, começou a pegar o lucro das vendas do pai. Se ganhasse 200 reais, falava que o movimento do dia tinha sido fraco. Em poucos meses, a família descobriu seu envolvimento com as drogas, mas ela já não conseguia largar o vício.
Pouco depois, veio mais um problema: sua melhor amiga foi diagnosticada com um tumor no fígado em estado avançado. Em questão de um mês, a menina morreu. Ao saber da notícia, Letícia até desmaiou. Para piorar a situação, seu pai não permitiu que ela fosse ao enterro se despedir da amiga.
Letícia entrou em uma profunda depressão. Aquilo era mais do que poderia suportar. Largou a escola e se isolou completamente. Começou a se automutilar. Ela se feria por fora na tentativa de matar a dor profunda que sentia por dentro. “Não tinha mais vontade de viver. Acho que o mais doloroso para mim foram os primeiros dias [após a morte da amiga]. Tudo me lembrava dela”. Um mês depois da perda da amiga, tentou o suicídio.
A família, por outro lado, não deu tanta importância para a sua dor, tanto que em pouco tempo os pais se mudaram para São Paulo sem nem ao menos avisar a menina. Letícia acabou indo morar com sua avó, mas se sentiu completamente abandonada. Começou a usar muita maconha. Em desespero, a avó acabou contando o caso ao seu pai, que pediu para que a moça viesse morar com ele.
“Achei que meu pai estava arrependido por ter me largado lá, mas, quando cheguei, vi que nada havia mudado. Quando eu entrei na casa, ele gritou comigo, agarrou uma vassoura e me bateu nas costas até que o cabo quebrasse. Naquele ponto, eu não conseguia derramar mais nenhuma lágrima”, conta.
Em pouco tempo na cidade, a família começou a passar por dificuldades financeiras. Para trazer alguma renda, Letícia passou a trabalhar como ajudante de pedreiro. Em um dia, chegou a carregar 50 baldes de areia nas costas. Com tantas dificuldades, a depressão só piorava. “As drogas se tornaram minha companhia. Comecei a usar de tudo. Até cocaína e ecstasy”, conta.
Por conta dos vícios, seu irmão a convidou para ir à igreja. Indo aos cultos, acabou se apaixonando à primeira vista pelo pastor responsável pelo grupo de apoio a jovens que usavam drogas. “Eu ia aos cultos só para ver ele. Queria ficar com ele, mas depois de duas semanas ele parou de ministrar”.
Com isso, começou a procurar informações sobre o seu paradeiro e depois, conseguiu reencontrá-lo através das redes sociais. Em pouco tempo, os dois já estavam tendo encontros amorosos. “Ele era diferente. A maioria dos outros meninos se incomodava só porque eu fumava cigarro. No quinto encontro, ele me disse que trabalhava no tráfico. Fiquei muito surpresa, mas feliz porque ele era do mundão assim como eu”, conta.
Foi com esse namorado que conheceu o crack. Por ser muito boa em matemática, começou a trabalhar ao seu lado. Letícia fazia a contabilidade do tráfico e ele dava a ela todas as drogas que queria. “Eu gostava muito dele. Ver ele andando com arma e papelote de drogas se tornou normal. Eu sabia que não era a única na vida dele, mas eu tinha todo o dinheiro e droga que queria, então não me importava”, relata.
Mas, o envolvimento amoroso dos dois poderia colocar a família de Letícia em risco. Em um determinado momento, ela teve que escolher com quem ficaria e acabou optando pela sua família. “Por mais que doesse muito deixar ele, tinha que pensar no bem e na segurança da minha família”, fala.
Mesmo com a intenção de proteger os familiares, Letícia acabou tendo diversas intrigas com os pais. Quando usava drogas, não tinha controle sobre os próprios atos. Ficava agressiva e procurava desesperadamente vender tudo o que tinha dentro de casa para usar drogas. Posteriormente, o tráfico passou a não aceitar mais os penhores e os pais se recusaram a dar dinheiro. A jovem procurou alternativas, mas, sem muitas opções, começou a se prostituir. Estava disposta a tudo para conseguir dinheiro.
Chegou até a se relacionar com homens agressivos, que davam tapas e socos nela. Ela procurava pensar que, quando toda aquela humilhação acabasse, ela ganharia sua recompensa. “Já teve até uma vez em que um cara falou que ia me dar dois pinos de cocaína e não deu nada. Ainda me mandou dar no pé”. Nas vezes em que conseguia a droga, quando a brisa passava, ela se sentia suja e um objeto sem valor.
Para ela, o fundo do poço chegou quando começou a comer comida do lixo. “Eu não conseguia parar de usar drogas e estava comendo lixo, quando poderia estar em casa com a minha família. Para mim, não tinha mais saída”, conta. Tempos depois, foi internada em uma clínica de reabilitação religiosa, mas ela não gostava do ambiente e uma semana depois de sair de lá voltou a fumar e a beber. Depois tentou uma clínica que realizava um tratamento com medicamentos, mas passava o tempo todo dopada. Outra internação falha.
Ao sair desta segunda, voltou a usar crack e fez uma dívida de quase 2 mil reais. “Os traficantes conversaram com os meus pais e disseram que iam me apagar. Meus pais ficaram desesperados e me mandaram para a casa da minha avó no Nordeste”.
Atualmente, de volta à sua região de origem, Letícia se sente mais tranquila, pensa com carinho na amiga e reflete sobre os caminhos que sua vida tomou. “Não acho que alguém tenha culpa da minha vida ser do jeito que é. Mas eu sentia que não era amada por ninguém… Acho que se meus pais tivessem sido um pouco mais presentes, talvez toda a minha vida fosse diferente”.
Morando com a avó, ainda não se livrou do vício, mas usa “apenas” um pino de cocaína por dia. Para consumir, a avó a acompanha até o local onde Letícia compra a droga e fica ao seu lado enquanto a moça usa. Aos 19 anos, Letícia espera encontrar um rumo diferente para sua vida, mas ainda não sabe por onde começar.