70% dos estupros são cometidos por conhecidos da vítima
Na segunda reportagem da nossa série, conheça a história de uma vítima de estupro coletivo que se sentiu desamparada pela justiça e que hoje vive com medo em sua própria casa. Um dos agressores era seu vizinho e amigo de infância
Por: Isabela Alves
Somente em 2016, o Brasil registrou 49.497 ocorrências de estupro, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2017. E, de acordo com a pesquisa Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde, elaborada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 70% dos casos de estupro, o agressor é parente, namorado, amigo ou conhecido da vítima.
No segundo capítulo da série do Observatório do Terceiro Setor sobre violência contra a mulher, vamos conhecer o caso de Bianca (nome fictício para proteger a identidade da vítima). Depois de ser vítima de estupro coletivo, ela continuou sofrendo abuso de um vizinho que era seu amigo de infância.
“Para as outras pessoas, ele é uma ótima pessoa. Ninguém suspeita de nada, até porque fomos criados juntos”
Em uma tarde de janeiro de 2017, no interior da Bahia, Bianca estava voltando para sua casa depois de visitar uma amiga em um bairro próximo. De repente, quatro homens a abordaram com uma arma, perto de um matagal.
Um dos homens que estavam no grupo era vizinho e amigo de infância da vítima. “Eles colocaram a arma em mim e disseram que, se eu gritasse, eles iam me matar. Quando eles me levaram para o matagal, sofri todos os tipos de tortura”, lembra.
Foi o pior momento de sua vida. A humilhação que sentiu é indescritível e a dor foi tão grande que chegou a perder a consciência em alguns momentos. As torturas duraram quase até o fim da noite. “Eles queriam me ver sangrar, não apenas se satisfazer. Deixaram isso bem claro”. Depois do ocorrido, mesmo machucada e ensanguentada, Bianca decidiu ir para casa. Por medo, ela preferiu guardar em segredo o que havia ocorrido naquele fim de tarde.
Depois desse dia, os quatro agressores sumiram. Segundo a vítima, dois foram mortos e o terceiro, ela nunca mais reencontrou. No entanto, alguns meses depois, o vizinho que havia participado do estupro coletivo voltou para o bairro. Suas casas ficavam lado a lado.
Era final de junho e o homem logo começou a violentar Bianca quase que diariamente. Por terem crescido como vizinhos e amigos, os pais da vítima deixavam ele entrar na casa normalmente, sem saberem de nada. Jamais imaginavam que alguém que eles tinham como um filho era o pesadelo da vida de Bianca.
“Para as outras pessoas, ele é uma ótima pessoa. Ele é casado, tem emprego fixo, mas ninguém suspeita de nada, até porque fomos criados juntos, então ver ele dentro da minha casa é normal”. Bianca teve medo de revelar a realidade a seus pais, com medo de que, por serem idosos e de estarem com a saúde fragilizada, não suportassem tamanho desgosto. Totalmente desamparada, ela estava sem saída.
“Eu não tinha para onde fugir. Minha mãe estava doente, eu tenho uma filha pequena para cuidar e como a casa é bem próxima, do lado, não tinha para onde correr. Eu tinha medo e quando tentava fugir, ele estava esperando do lado de fora da casa dele com uma arma na mão”, relata.
Além de ficar com o seu psicológico abalado devido às ameaças e aos insultos frequentes, Bianca conta que ficou incapacitada fisicamente por conta das suas dores físicas. Ela tem marcas pelo corpo, cortes, queimaduras, falhas no cabelo e até dor nos dentes.
Mesmo morando na Bahia, estado conhecido pelas altas temperaturas, Bianca é obrigada a usar roupas longas para que ninguém veja as marcas em seu corpo e descubra as violências que sofreu. “A violência física me deixou marcas e para esconder é muito difícil. Pela cidade onde eu moro ser muito quente, tenho que usar casaco e calça o tempo todo e é quase insuportável”.
Com os estupros frequentes, Bianca começou a sentir fortes dores e a ter graves sangramentos. A vítima ficou com tanto trauma e vergonha de si mesma que, desde o dia em que sofreu o estupro coletivo, ainda não consultou uma ginecologista. Mesmo com encaminhamentos, ela diz não ter coragem para contar o que aconteceu.
“Quando eu ia ao hospital, eles achavam que era apenas cólica menstrual, porque não sabiam do que se tratava e aí me davam medicamento para passar a dor. No primeiro momento melhorava, mas depois a dor ficava mais forte”, conta.
Bianca foi torturada pelo seu agressor durante o período de julho a dezembro. Já que não podia contar o que estava acontecendo para seus familiares, ela começou a desabafar com amigas de confiança. Para sua surpresa, muitas tinham passado por situações similares à dela. Segundo Bianca, no interior das regiões Norte e Nordeste do Brasil, muitas pessoas são vítimas de estupro, e, assim como ela, não dão queixa para a polícia por não terem confiança nessa instituição.
O seu agressor já foi preso por assalto, tráfico e homicídio, e, segundo a vítima, em nenhuma das vezes passou mais de três meses na prisão. Por essas razões, ela não pensa em fazer a denúncia. “Eu tenho muito medo da justiça do Brasil. Ele já matou uma pessoa, então matar outra para ele é tranquilo. Eu não quero arriscar a minha vida e nem a vida das pessoas que eu amo por uma justiça que não vale a pena”, desabafa.
No final de 2017, seu agressor arrumou briga com um policial da área e foi ameaçado pelo mesmo. Nunca mais ele poderia colocar os pés naquele local de novo, e, desde esse dia, ele nunca mais apareceu. Porém, Bianca ainda não está tranquila. Mesmo após ter mudado da região, o agressor continua a ameaçando por mensagens via WhatsApp, dizendo que ele não está lá, mas outras pessoas continuam a vigiando.
“Ele ainda me manda muitas ameaças. Eu vivo com medo. Ele eu conheço e, quando vir na rua, posso procurar ajuda, mas e outras pessoas que eu não conheço? Quando eu menos esperar eles vão vir me machucar”.
Atualmente, seu sonho é sair da cidade, mas, por conta da saúde debilitada dos pais, ela não pode se mudar. Mesmo após ter passado por tanto sofrimento, Bianca mantém a esperança, e espera que um dia ainda possa contar sua história sem medo, para que seu depoimento ajude outras mulheres que são vítimas de abuso.
“Eu tenho fé que essa não será a causa da minha morte. É uma violência sem tamanho e um trauma que se leva para a vida toda, mas isso não significa que a vida acabou. Dá para tentar ajudar outras pessoas com isso. Às vezes, um abraço é tudo o que precisamos, e se não achamos isso, nós devemos abraçar outras pessoas”, conclui.
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