Chef troca restaurantes caros por trabalho social
Formado na cozinha portuguesa, Edson Leitte retornou ao Brasil e hoje dá aulas de gastronomia na comunidade onde cresceu
por Diego Thimm
Edson Leitte, 32 anos, parece não ter um lugar fixo no mundo. Nascido na Vila Matilde, em São Paulo, se mudou para o Jardim São Luís, extremo sul da capital, quando a mãe conseguiu um apartamento da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano).
Na adolescência, estudou em Moema, também na zona sul de São Paulo. O trajeto e a rotina da escola o transportavam para duas realidades opostas. “Eu via apartamentos que ocupavam um andar inteiro, mas não tinha dinheiro para comprar um livro. Eu estudava numa livraria e tinha que marcar a página para poder voltar a ler no dia seguinte.”
“Nossa diversão era ouvir um rap, mas no final de semana sempre tinha os corpos”, conta sobre a realidade comum nas periferias do país. Através da música, por um lado mais lúdico, como ele diz, viu uma trégua para o dia a dia. Produziu, escreveu e abriu portas para os primeiros shows do Racionais MC’s fora do Brasil.
Aos 22 anos, envolvido com produção musical, conheceu uma portuguesa e com ela, a sugestão de tentar a sorte do outro lado do Atlântico. Vendeu alguns equipamentos e foi para Portugal com 300 euros no bolso. Mais da metade desse dinheiro gastou logo no primeiro hotel.
Sem conseguir nenhum trabalho na área musical, precisou se sustentar com outras atividades. Viajava pelo país entregando listas telefônicas e conheceu outros lugares. “Em Portugal, as pessoas te convidam para comer em casa e assim fui descobrindo a culinária”, comenta.
Com 23 anos, lavava pratos para um restaurante e lá aprendeu a ordem dos pedidos: entrada, prato principal, sobremesa. “Comecei a identificar qual receita que saía”, lembra. Um dia, os cozinheiros do restaurante faltaram ao trabalho e Edson se ofereceu para tomar conta da cozinha. “Não sabia fazer nada”, assume.
Primeira receita? Um polvo. “Nunca tinha visto um na vida”, comenta. Com auxílio de um colega cozinheiro por telefone, montou os cardápios e seguiu na cozinha do A Leitaria. Ele conseguiu colocar o estabelecimento na Time Out Market Lisboa, um dos melhores guias gastronômicos da capital.
Já com a mulher e a filha morando em Portugal, teve que voltar ao Brasil, em 2009, para tratar de um problema nas costas. Foi quando percebeu que não conhecia a gastronomia brasileira. Frequentou alguns restaurantes brasileiros que serviram de laboratório para seu aprofundamento na culinária do país.
Com um convite para trabalhar em um cruzeiro, voltou ao Brasil dois anos depois. Passados quatro meses, a dor nas costas voltou a piorar e ele precisou largar o emprego no navio. Quando retornou a Portugal, descobriu que a mulher havia vendido suas coisas. “Tive que recomeçar mais uma vez”, diz. E seguiu trabalhando por lá.
Ainda com as dores na coluna, em 2012, decidiu voltar ao Brasil para passar por uma cirurgia. Dessa vez, trouxe na bagagem os mesmos equipamentos musicais que teve de vender quando decidiu deixar o Brasil em 2006. “Precisei voltar para saber se ainda pertencia ao meu lugar”, comenta.
Tentou participar de editais de apoio à cultura com projetos focados em gastronomia, mas diz que, no Brasil, a culinária não é considerada cultura. A solução foi desenvolver outras iniciativas, ligadas à música, por exemplo, e aliar a comida dentro desses eventos.
Ele trabalhou em cozinhas de bairros caros da capital paulista, se tornou chef do Clube Pinheiros, ganhou destaque com a mesma receita de polvo que tinha feito na primeira experiência em Portugal, mas se sentia incomodado com a desigualdade social.
Novos rumos
Em 2015, depois de um acidente de carro que o levou ao hospital, o chef teve tempo de repensar o propósito da sua atividade novamente. “É como se alguma coisa acontecesse para nos dar um dia para pensar”, diz. Assim, buscou unir a atividade de cozinheiro com a assistência social, no projeto Gastronomia Periférica.
Edson decidiu cursar Serviço Social e passou a gravar com a TV DOC, iniciativa que divulga trabalhos sociais dentro do Capão Redondo, bairro da zona sul de São Paulo. No programa, o chef visita algum morador da comunidade e procura, na casa da pessoa, ingredientes que possam virar uma refeição.
Entrou com a ideia para a Fundação Julita, que atende crianças, jovens e famílias em situação de vulnerabilidade social, e passou a dar aulas de gastronomia para moradores do Jardim São Luís. “Digo que a gastronomia se tornou o futebol aqui. A cada dez garotos que converso, oito querem cozinhar”. Como contrapartida, os alunos participam como cozinheiros voluntários de eventos promovidos pelo projeto.
Com preços altos, os cursos de culinária no país seguem inacessíveis para grande parte dos brasileiros e Edson acredita que pode transformar ou pelo menos interferir nesse cenário. “O objetivo é que as pessoas possam estudar do lado de cá da ponte”. Hoje, o curso atende 55 jovens por semestre e já está na 12ª turma.
Edson diz que é comum as crianças terem sua única refeição diária dentro da Fundação e conta que a qualidade dos produtos que chegam ao bairro é muito baixa. “Ficamos com o que sobra do transporte dos alimentos, por isso temos que reaproveitar tudo que podemos. A casca da batata vira uma entrada, a do abacaxi pode virar um bolo”, explica.
Entre os planos está expandir o impacto do projeto e criar mais cursos de culinária no país. Ele diz acreditar no poder de mobilização da comida. “É a maior rede social que existe. Uma ferramenta poderosa para trabalhar o social. Sem música a gente até consegue viver, mas sem comida…”.
Além do curso, criaram um aplicativo, uma espécie de “IFood da periferia”, que reúne informações de onde e o que comer na comunidade. “É pensado para pessoas que não têm tempo, que trabalham o dia inteiro e precisam cuidar dos filhos”, finaliza.