Abrigo no Ceará mantinha mulheres em celas e servia farinha com água no jantar
A Casa de Acolhimento Feminino Água Viva, em Crato (CE), funcionava há cerca de seis anos e vendia-se como um abrigo para mulheres em sofrimento mental. Na prática, encarcerava as pacientes em pequenas celas, sem banheiro e sem alimentação adequada. Houve até mesmo denúncia de abuso sexual na instituição
Quando chegaram à Casa de Acolhimento Feminino Água Viva, em Crato, no interior do Ceará, os policiais não acreditaram na cena de horror que viram. Trinta e quatro pacientes estavam trancafiadas em celas minúsculas, sem banheiro, construídas no quintal. Com grades no lugar de portas, os cubículos onde dormiam pareciam jaulas.
Pairava no ar um mau cheiro, segundo testemunhas, provavelmente dos baldes de plástico nos quais elas deveriam fazer suas necessidades fisiológicas durante a noite ou das tigelas com restos de comida e dos porcos criados do outro lado do muro.
Todos os dias, às 19h, elas eram trancadas para só serem soltas na manhã seguinte, quando deveriam limpar seus baldes usados como banheiro antes do café. “Fiquei desesperada. Nunca vi algo como aquilo em 12 anos de polícia. Percebi que elas viviam em cárcere privado. Não era uma ou duas vítimas, eram muitas. Estavam enjauladas”, narra a delegada da mulher Kamila Brito, que liderou a equipe.
Ela havia recebido em seu gabinete uma mulher que trazia nas mãos uma carta da irmã. Nela, Amanda (nome fictício), de 34 anos, pedia socorro e denunciava o proprietário e diretor da Casa de Acolhimento Feminino Água Viva, Fábio Luna dos Santos, por abuso sexual. “Sou eu e minha amiga. Urgente, me tira daqui. (…) Vem logo, por favor”, clamava a interna no bilhete que conseguiu entregar ao despistá-lo depois de uma consulta médica.
Quando os policiais chegaram para efetuar a prisão por suspeita de assédio, encontraram mais de 30 mulheres, com idades entre 30 e 91 anos, encarceradas em cubículos onde só cabia uma cama (muitas delas sem lençol) e uma mesinha de cabeceira. Várias delas choravam e pediam para serem levadas embora, segundo a delegada.
Brito acabou efetuando uma “prisão dupla” do diretor ao efetuar o flagrante de cárcere privado e maus-tratos. “Eu me senti em uma cena de terror. Nunca tinha visto aquilo. Era deprimente. Vi mulheres presas, degradadas, outras dormindo como se estivessem dopadas. Como um ser humano é capaz de tratar outro daquela forma?”, questiona a delegada.
A Casa de Acolhimento Feminino Água Viva funcionava há cerca de seis anos. Vendia-se como um abrigo para mulheres em sofrimento mental e estava com alvará válido, concedido há nove meses pela Prefeitura do Crato.
Após os policiais detectarem o aprisionamento das mulheres nas celas do quintal, porém, o município suspendeu a autorização de funcionamento e alegou que aquelas estruturas não existiam ou foram omitidas durante a fiscalização feita no ano passado.
Com o abrigo fechado, uma verdadeira força-tarefa foi montada para resgatar as internas e direcioná-las a um lugar seguro naquele mesmo dia. A assistente social Audilene Fernandes, coordenadora do Centro de Referência da Mulher do município, foi uma das primeiras a ir até o lugar. “Era desumano”, descreve. “A gente percebia que algumas estavam dopadas de medicamentos. Pareciam zumbis.”
Nos dias seguintes, as pacientes começaram a dar mais detalhes do que acontecia no local. Uma delas contou que, como a família repassava apenas metade do valor do seu benefício social, às vezes lhe davam apenas água com farinha para jantar. “Ouvi muito isso. Foi doído”, diz a assistente social. É que o abrigo era custeado com os benefícios sociais e a aposentadoria das internas, geralmente no valor de um salário mínimo, e doações da sociedade.
O diretor do abrigo, Luna dos Santos, nega os crimes sexuais e defende que o local era, sim, apropriado para acolher as mulheres com transtornos psiquiátricos. A instituição tinha ao menos quatro funcionários, incluindo a mãe e a namorada do diretor e uma enfermeira que não era da família.
A Polícia Civil do Estado do Ceará concluiu o inquérito que investigava Luna dos Santos pelos crimes de abuso sexual, maus-tratos, apropriação indevida de benefícios das vítimas e cárcere privado no último dia 22 de agosto. Agora, cabe ao Ministério Público analisar os autos e oferecer uma denúncia à Justiça, que decidirá se a acata ou não.
Fonte: El País