Brasileiros já estavam isolados antes da pandemia, diz psicanalista
Crenças, valores e posições políticas já promoviam a criação de ilhas de isolamento antes do ‘fique em casa’. Com a popularização das bolhas sociais, a noção de realidade se torna cada vez mais distante entre os brasileiros
Por: Mariana Lima
Entender como o lugar de origem afeta a percepção da realidade da população mundial é o norte das pesquisas anuais realizadas pelo Instituto Ipsos, empresa de pesquisa e inteligência de mercado.
A série de estudos ‘Perigos da Percepção’, realizada desde 2013 em quase 40 países, mostra as diferenças entre o que ocorre no mundo e o que a população entende como real.
“Podemos perceber que a ideia de realidade depende muito de indivíduo para indivíduo. Dos hábitos, da cultura local, das relações. Nós não sabemos exatamente qual é a realidade. E, nos últimos anos, vem crescendo uma tendência de cada um viver com base no seu entendimento do que é real”, indica Fabrizio Rodrigues Maciel, pesquisador e Head de Healthcare da Ipsos.
O Brasil passou a fazer parte dos países analisados na pesquisa em 2016, quando a diferença entre a percepção da população e a realidade era classificada como ‘Índice de ignorância’, termo descartado nas edições posteriores.
No final de 2017, uma nova edição da pesquisa foi lançada e, em um ranking com 32 nações, o Brasil ocupou a 2ª colocação entre os países mais fora da realidade. Na edição seguinte, divulgada em 2018, o Brasil foi para a 5ª posição.
O estudo avalia o quanto as pessoas sabem sobre as principais questões que envolvem a realidade dos seus países, levando em consideração os seguintes assuntos: crimes, assédio sexual, meio ambiente, sexo, saúde, economia e população.
Para o pesquisador, a pequena variação observada foi resultado do aumento da transmissão de notícias e do próprio consumo de produções jornalísticas no país.
“A facilidade na comunicação tem melhorado a percepção dos brasileiros. As informações chegam mais rápido, mas ainda existem riscos. O consumo de fake news acaba sendo uma consequência desta facilidade”, pontua.
Apesar de não fazer parte das questões da pesquisa ‘Perigos da Percepção’, o Instituto Ipsos costuma realizar levantamentos com temáticas mais segmentadas para contemplar questões relevantes na sociedade.
No final de 2018, a pesquisa ‘Global Advisor: Fake News’ revelou que 62% dos brasileiros já acreditaram em alguma notícia falsa. O Brasil teve desempenho pior do que países como a Arábia Saudita, com 58%.
Os dados da pesquisa coincidiram com as eleições de 2018, quando reportagens da Folha de S. Paulo denunciaram um esquema de disparo em massa de mensagens pelo WhatsApp, realizado por candidatos que concorriam naquele período eleitoral, promovendo uma rede de desinformação.
“O que escutamos, lemos e vemos altera a nossa noção de realidade. Desde a notícia no jornal da manhã até um fato que ocorreu com um conhecido. Tudo pode interferir na leitura que se terá sobre o que é real. No espaço eleitoral, uma notícia fora de contexto, independentemente da população tratar como verdade ou mentira, gera uma distorção da realidade”, explica o pesquisador.
O debate político é um dos temas que marcam as análises sobre a percepção dos brasileiros. O levantamento ‘A World Apart‘, divulgado em 2019, exemplificou as sequelas da polarização política no período eleitoral.
No total, 3 em cada 10 brasileiros defendem que não vale a pena conversar com quem tem uma visão política diferente. Para 39% dos entrevistados, era improvável que pessoas com visões políticas discordantes mudassem de opinião, mesmo quando evidências fossem apresentadas.
Vale ressaltar que para 54% dos brasileiros as redes sociais, que deveriam promover a interação e a troca de ideias, estão tornando os debates mais divididos do que eram antes.
“As mídias sociais têm muita relevância no Brasil em comparação a outros países. O brasileiro acabou se adaptando muito bem às ferramentas digitais. É um espaço que as pessoas usam muito para expor a opinião, mas não para dialogar ou entender o outro lado. Cada um olha para a sua própria janelinha e cria uma distopia entre o real e o imaginário”, argumenta Fabrizio.
Quem é esse brasileiro?
Para a psicanalista e pós-doutoranda no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Clarice Paulon, o consumo de notícias massificadas explica a tendência do brasileiro a ter uma percepção destoante da realidade.
“A percepção que estamos construindo é cada vez mais recortada. Nos faz perder a noção das diferenças, da pluralidade que há na sociedade. Consome-se menos informação de qualidade, apesar de teoricamente se ter mais acesso”, argumenta.
Paulon destaca o papel das fake news nesta distorção da percepção e como os conteúdos falsos se fortalecem pelas bolhas sociais.
“Quando se circula menos entre os espaços e se estabelece um consumo passivo, sem buscar as informações, a percepção da realidade acaba se deformando. Se eu leio apenas um tipo de jornal ou autor, acabo construindo uma percepção parcial sobre a realidade, o que pode reforçar comportamentos individualistas e contra as opiniões diferentes”, explica.
Segundo a pesquisa ‘Pulso Brasil’, realiza pela Ipsos em 2018, 63% dos brasileiros são a favor dos direitos humanos. Contudo, no grupo total de participantes, incluindo os que são a favor, 66% consideram que os direitos humanos defendem mais os bandidos do que as vítimas. A pesquisa ainda indicou que 43% dos brasileiros temem falar sobre o assunto com outras pessoas, por medo de acabarem sendo vistos como alguém que defende bandidos.
Os dados da pesquisa exemplificam a divisão entre “nós e eles” na sociedade brasileira. A perda da noção da coletividade e a prática da defesa dos direitos apenas na esfera individual potencializa as distorções entre o real e o mundo idealizado.
“O discurso do ‘cada um cuida de si’ aliado às bolhas sociais torna qualquer diferença ameaçadora. Só o semelhante me agrada. Esse discurso, de certa forma, significa ser violento com o outro. O brasileiro já estava isolado antes da pandemia. Vivemos em diversas ilhas de isolamento que se baseiam nos nossos valores, crenças e até nas divisões regionais. E agora tudo isso acaba sendo reforçado pela lógica do medo da Covid-19”, argumenta Paulon.
A distorção da realidade em meio a uma pandemia
No início de 2020, antes do decreto de quarentena em diversos estados brasileiros, a Ipsos divulgou os resultados da pesquisa ‘What Worries the World’ (O que preocupa o mundo).
De acordo com o estudo, realizado em 28 países, para 44% dos brasileiros, o tema mais preocupante naquele período era o “acesso ao atendimento de saúde”. Uma preocupação que acabou se tornando um problema real.
Em setembro, um levantamento realizado pelo jornal El País Brasil mostrou que mais de 4 mil pessoas morreram antes de conseguir um leito de UTI para o tratamento contra a Covid-19 em seis estados brasileiros: Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia e Maranhão.
Para a psicanalista Clarice Paulon, a questão da coletividade retoma com força em meio a um cenário pandêmico.
“O brasileiro acaba vendo a realidade com uma lente que alarga os problemas individuais. E, assim, não se consegue perceber o impacto da perda de direitos até que seja afetado diretamente. Acaba criando uma lógica de todos contra um. As pessoas só se dão conta quando as afeta em nível pessoal”, explica.
Nos últimos 8 meses, uma percepção distorcida da realidade vem sendo promovida pelo Presidente da República, Jair Bolsonaro. No âmbito da saúde, Bolsonaro já chamou a Covid-19 de “gripezinha”, argumentou que apenas os idosos e grupos vulneráveis eram infectados e culpou a China pelo vírus.
“A forma como o presidente lidou com isso reforça uma relação que temos com as dificuldades que surgem em escala nacional. É uma relação infantil e primitiva, do ‘eu posso’, ‘sou imbatível’, ‘o vírus não me ataca’. O discurso do presidente legitima esse posicionamento. As pessoas começam a achar que a ciência, um vírus ou uma crise são só questão de opinião quando autoridades públicas falam que não são problemas”, pontua a psicanalista.