Ciência tenta explicar cadáveres com batimentos cardíacos e suor
Corpo quente, coração batendo e urinando, essas são descrições de cadáveres examinados por cientistas que tentam explicar o mistério.
Corpo quente, coração batendo e urinando, essas são descrições de cadáveres examinados por cientistas que tentam explicar o mistério. Os cadáveres podem sofrer ataques cardíacos, pegar febre e sofrer escaras; também corar, suar e, por incrível que pareça, até ter filhos. Segundo a maior parte das definições legais e a ampla maioria dos médicos, esses pacientes estão completa e inquestionavelmente mortos. São os cadáveres com batimentos cardíacos – corpos que tiveram morte cerebral, mas que têm pulso e órgãos que funcionam.
Seus custos médicos são astronômicos (até US$ 217.784, ou cerca de R$ 1,12 milhão, por apenas algumas semanas). Mas, com um pouco de sorte e muita ajuda, hoje é possível que o corpo sobreviva por meses – em casos raros, até décadas – mesmo estando tecnicamente morto.
Até que, em 1846, a Academia de Ciências de Paris, na França, lançou uma competição para encontrar “o melhor trabalho sobre os sinais da morte e os meios de evitar enterros prematuros”. Foi quando um jovem médico francês tentou a sorte.
Eugène Bouchut idealizou que, se o coração de uma pessoa houvesse parado de bater, com certeza ela estava morta. Por isso, ele sugeriu usar o recém-inventado estetoscópio para ouvir as batidas do coração. Se o médico não ouvisse nada por dois minutos, o paciente poderia ser enterrado com segurança.
Bouchut ganhou a competição e sua definição de “morte clínica” ficou estabelecida, chegando a ser imortalizada em livros, filmes e na sabedoria popular.
“Não havia muito o que pudesse ser feito e, basicamente, qualquer pessoa podia olhar para alguém, verificar se havia pulso e decidir se ela estava viva ou morta”, segundo Robert Veatch, do Instituto Kennedy de Ética, nos Estados Unidos.
No entanto, uma descoberta feita ao acaso nos anos 1920 deixou tudo muito mais difícil.
Um engenheiro elétrico do Brooklyn, em Nova York (Estados Unidos), estava investigando por que as pessoas morrem depois de terem sido eletrocutadas – e se perguntou se a tensão correta poderia também trazê-las de volta à vida.
O engenheiro William Kouwenhoven dedicou então 50 anos para encontrar uma forma de fazer com que isso acontecesse. O seu trabalho acabou levando à invenção do desfibrilador.
O desfibrilador foi o primeiro de uma enxurrada de novas e revolucionárias técnicas, que incluíram ventiladores mecânicos e sondas de alimentação, cateteres e máquinas de diálise. Pela primeira vez, você podia perder certas funções do corpo e continuar vivo.
Na França, o misterioso fenômeno foi chamado de coma dépasse (literalmente, “estado além do coma”, em francês). Eles haviam descoberto os “cadáveres com batimentos cardíacos” – pessoas cujos corpos estavam vivos, mas seus cérebros estavam mortos.
Era uma categoria de paciente inteiramente nova, que alterou 5 mil anos de conhecimentos médicos de um só golpe. Surgiam novas questões sobre como identificar a morte e delicados problemas legais, éticos e filosóficos foram levantados.
Esses cadáveres com batimentos cardíacos não devem ser confundidos com outros tipos de pacientes inconscientes, como os que estão em coma ou em estado vegetativo. Embora não consigam sentar-se, nem responder ao chamado do seu nome, os pacientes em coma ainda exibem atividade cerebral, passam por ciclos de sono e vigília (mesmo inertes) e podem recuperar-se totalmente.
Já o estado vegetativo persistente certamente é mais sério. Nestes pacientes, o cérebro superior apresenta lesões permanentes e irrecuperáveis. Eles nunca terão outro pensamento consciente, mas não estão mortos.
Alan Shewmon, neurologista da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), nos Estados Unidos, é um crítico aberto da definição de morte cerebral. Ele identificou 175 casos em que os corpos das pessoas sobreviveram por mais de uma semana depois da morte.
Em alguns casos, o coração continuou batendo e seus órgãos continuaram funcionando por mais 14 dias. E houve um cadáver em que essa estranha vida após a morte chegou a durar duas décadas.
Até os nossos genes continuam vivos por muito tempo depois da nossa última respiração. No início de 2022, cientistas descobriram milhares deles com vida dias após a morte da pessoa, incluindo os envolvidos em inflamações, combate ao estresse e, misteriosamente, desenvolvimento embriônico.
Os cadáveres com batimentos cardíacos só podem existir devido a esse desequilíbrio – tudo depende do cérebro morrer primeiro. Para entender por que isso acontece, é preciso ter em conta que o cérebro compõe apenas 2% do peso corporal de uma pessoa, mas ele consome surpreendentemente 25% de todo o seu oxigênio.
Os neurônios exigem tanta manutenção, em parte, porque eles estão ativos todo o tempo. Eles estão constantemente bombeando íons para criar gradientes elétricos em miniatura entre o seu interior e o ambiente à sua volta. Para isso, eles simplesmente abrem as comportas e deixam os íons entrarem de volta.
O problema é que eles não podem parar de bombear. Se os seus esforços forem suspensos pela falta de oxigênio, os neurônios são rapidamente inundados com íons que se acumulam em níveis tóxicos, causando danos irreversíveis.
Em uma análise de 611 pacientes diagnosticados com morte cerebral utilizando os critérios de Harvard, cientistas descobriram atividade cerebral em 23%. Já em outro estudo, 4% apresentaram padrões de atividade similares ao sono por até uma semana depois da morte.
Várias décadas antes, em 1968, um grupo de médicos de prestígio de Harvard, nos Estados Unidos, convocou uma reunião de emergência para discutir exatamente este ponto. Após vários meses, eles criaram um conjunto de critérios à prova de falhas para permitir aos médicos que evitassem esses erros e determinassem que os cadáveres com batimentos cardíacos estavam realmente mortos.
Esses exames permanecem o padrão global até hoje, mas alguns deles estranhamente se parecem com os do século 19. Por exemplo, o paciente deve “não responder a estímulos verbais”, como gritar seu nome. Este exame específico é tão valioso que rendeu ao seu inventor o Prêmio Nobel. Por enquanto, a definição de morte ainda vai render muitas discussões entre médicos e cientistas.
Fonte: Época Negócios