Guerreiros: Brasil tem 900 mil alunos com mais de 40 anos nas escolas
Há 900 mil adultos e idosos com mais de 40 anos que estão matriculados em escolas no Brasil sendo alfabetizados. Os alunos encaram a falta de autonomia por não saberem ler e escrever, são alvo de intolerância por tentarem estudar “tardiamente” e desdobram-se para conciliar o emprego com as aulas noturnas
Há 900 mil adultos e idosos com mais de 40 anos que estão matriculados em escolas no Brasil, sendo alfabetizados e aprendendo conceitos básicos de matemática e ciências.
Eles não chegaram à faculdade (ainda), mas já encontram severas barreiras para retomar os estudos: encaram a falta de autonomia por não saberem ler e escrever, são alvo de intolerância por tentarem estudar “tardiamente” e desdobram-se para conciliar o emprego com as aulas noturnas.
Os motivos são variados porque essas pessoas abandonaram a escola ainda criança ou adolescente. Extrema pobreza, violência doméstica, bullying na escola, gravidez e casamento, necessidade de trabalhar em tempo integral para sobreviver e até maridos que proibiam as esposas de irem ao colégio. Como conclui Flávia da Silva, especialista em língua portuguesa e professora da rede pública de Goiás (inclusive da EJA).
Nascido em Pedrinhas (SE), o porteiro José Carlos Conceição, de 61 anos, não conhece as próprias origens – foi abandonado quando era criança e não se lembra de sua infância. Viveu na rua até os 16 anos, quando, ainda analfabeto, foi acolhido por um casal em Salvador.
“Comecei a lavar carro, a lavar panela em restaurante, mas sempre tive o sonho de estudar. Porque conhecimento supera qualquer riqueza de ordem material, né? Essas pessoas me disseram que o céu era o limite. Eu acreditei”, diz.
Foi com esse estímulo (e com a animação de ter conseguido ler gibis sozinho) que, durante a pandemia, José Carlos entrou na EJA, na modalidade à distância. Terminou os estudos, prestou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2021 e foi aprovado em psicologia.
“Trabalho de madrugada, saio da portaria e vou direto para a aula de manhã. Os moradores do condomínio mudaram o jeito de me olhar quando souberam que faço faculdade”, conta.
José Carlos disse que já sofreu muito preconceito por querer voltar a estudar. “Mas já ouvi muitas frases preconceituosas na vida. ‘Numa idade dessa, estudando? Para quê?’. Eu respondo: ‘porque eu quero; é proibido? ’’.
As aulas da EJA costumam acontecer à noite. Não é fácil, para um trabalhador, ter disposição e encarar 4 horas de conteúdos, após um expediente exaustivo.
“Eles chegam cansados, com fome. E a pandemia provocou um estrago: alguns idosos que tiveram Covid-19 enfrentam ainda sequelas da doença, com problemas de memória e concentração. É preciso considerar tudo isso na hora de planejar uma aula”, diz Sonia Couto, coordenadora do Instituto Paulo Freire.
“Se o aluno recebe uma atividade com coelhinho da Páscoa, vai se sentir infantilizado. Aos poucos, todo o esforço para estudar vai se desmobilizando”, explica Sonia. “Cabe aos professores pensarem em maneiras eficientes de ensinar o conteúdo, sempre valorizando os saberes da turma.”
A “pedagogia do afeto”, do educador Paulo Freire (1921-1997), costuma orientar os docentes nesse desafio: a relação professor-aluno é um diálogo aberto, com empatia e constantes trocas de conhecimento.
Para uma aprendizagem efetiva, um professor que recebe os alunos nas salas de aula não deve se atentar somente a cumprir currículos, e sim a praticar a afetividade e a “abrir a porta” para a conversa.
No último dia (10/03), uma publicação no Twitter, com mais de sete milhões de visualizações, mostrou três universitárias debochando da estudante de biomedicina, Patrícia Linares, pelo fato de ela ter “40 anos”. No vídeo, uma das estudantes ironiza: “Gente, quiz do dia: como ‘desmatricula’ um colega de sala?”. Logo na sequência, outra jovem responde: “Mano, ela tem 40 anos já. Era para estar aposentada”.
Em comentário preconceituoso, as jovens ofendem a outra estudante, dizendo que a mulher “não sabe o que é Google”. O tipo de discriminação deste caso é enquadrado como etarismo, que segundo o Relatório Mundial sobre Idadismo, da Organização Mundial da Saúde (OMS), refere-se a “estereótipos (como pensamos), preconceitos (como nos sentimos) e discriminação (como agimos) direcionados às pessoas com base na idade que têm”.
O caso ganhou repercussão no Brasil, chamando atenção para os desafios de atingir a meta do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 4, que diz sobre assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, promovendo oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todas as pessoas.
Fonte: g1