IBGE restrito pela Ditadura mostrava miséria e fome extrema
Entre 1974 e 1975 (durante a Ditadura Militar/1964- 1985), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) colocou nas ruas 1.200 pesquisadores para percorrer o país e investigar o consumo das famílias, em especial a alimentação. O resultado foi um registro detalhado da miséria e da fome que atingiam boa parte da população. Essa parte do estudo foi publicado, mas acabou tendo sua circulação restrita, levantando suspeitas de censura.
Entre 1974 e 1975 (durante a Ditadura Militar /1964- 1985), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) colocou nas ruas 1.200 pesquisadores para percorrer o país e investigar o consumo das famílias, em especial a alimentação, numa das pesquisas mais ousadas e pioneiras da instituição.
O Estudo Nacional de Despesa Familiar (Endef) acompanhou 55 mil residências em todos os Estados, em áreas rurais e urbanas, por sete dias, período em que os pesquisadores acompanhavam os hábitos alimentares dos moradores em todas as refeições, inclusive pesando os alimentos e as sobras.
Para que as famílias não tivessem receio em abrir seus lares e seus hábitos para os pesquisadores, foi lançada a campanha “Abra a porta para o IBGE”, com a atriz Regina Duarte como garota-propaganda.
Esperava-se também, com a pesquisa, obter uma mapa das deficiências alimentares da população. A importância do levantamento era exaltado em editorial do Jornal do Brasil de agosto de 1974, quando teve início o trabalho de campo.
O aspecto mais inovador do estudo, porém, não serviria diretamente aos objetivos estatísticos, embora fosse considerado essencial para entender as condições de população pelo diretor do Endef, o sociólogo e ex-oficial da Marinha Luiz Afonso Parga Nina.
Por ideia dele, foi inserido nos questionários um espaço para anotação livre, em que era sugerido aos pesquisadores que fossem relatados suas impressões pessoais sobre a situação dos entrevistados e a realização das entrevistas.
O resultado foi um registro detalhado da miséria e da fome que atingiam boa parte da população, apesar do ritmo acelerado de crescimento econômico dos anos anteriores. Essa parte do estudo foi publicado, mas acabou tendo sua circulação restrita, levantando suspeitas de censura pela Ditadura Militar.
“Já fizemos uma média de 120 domicílios, estando 70% na faixa de nível baixo, 20% casos extremos e 10% pessoas que conseguem o necessário para viver. Neste último caso, considero as pessoas que têm um emprego fixo, mas vivem privadas de muita coisa ainda”, diz um dos relatos sobre a pesquisa em Uberlândia (MG).
“Nas duas primeiras faixas, a base da alimentação é farinha de mandioca muito grossa feita em casa. O vestuário é sempre doado e, nos casos extremos, as pessoas cobrem o corpo com trapos disformes e imundos que cheiram mal”, continuava.
Outro relato, de uma pesquisadora que atuou em Boa Vista (RR), descrevia sérios problemas de saúde da população local: “Devido à má alimentação, são seres totalmente predispostos aos males do meio ambiente. Desde que uma dessas famílias tinha vindo do interior, ninguém pergunta se não teve ‘malária’ ou até mesmo ‘hepatite’ porque são doenças comuns no interior.”
“Mediante as dificuldades na compra dos remédios, são pessoas que ficam maltratadas para o resto da vida. As mulheres não são privilegiadas. Depois do primeiro filho, perdem logo os dentes (falta de cálcio) e sofrem as consequências de um parto mal feito durante muito tempo”, segue o relato.
“Em um domicílio, o homem da casa está enfraquecido devido à falta de alimentação e a senhora dele está débil mental em consequência de um parto mal feito. As crianças são raquíticas, de cor pálida e frequentemente com tosse”, descreveu ainda a pesquisadora.
No interior do Paraná, são vários os relatos da equipe do IBGE sobre a dura vida das famílias de boias-frias, que trabalhavam por diárias em fazendas da região.
“A fome tomava conta dos pequenos corpos humanos que habitavam a bela fazenda de café. (…) Soubemos de uma família que ia para o trabalho sem a pequena marmita de almoço, substituíam-no por ‘coco guavirova’ ou até chegavam ao extremo de comer folha seca de café.”
Apesar da grande importância dada a esse trabalho, ele não foi divulgado ao público. Foi impressa uma pequena tiragem de 250 cópias e algumas delas foram enviadas sem alarde a órgãos públicos e bibliotecas, como o Ministério da Saúde e algumas universidades.
Alguns volumes da publicação que permanecem nos arquivos do IBGE tem em sua capa escrita a mensagem “Distribuição restrita”, em letra cursiva que seria de Parga Nina.
O Endef, estudo ainda hoje pouco conhecido, teve seu momento de fama logo após o fim da ditadura, quando a revista IstoÉ descobriu essa parte não divulgada da pesquisa.
A publicação deu uma reportagem de capa para o tema em outubro de 1985, com a manchete “Fome Censurada”, sobre a imagem de uma criança pobre, nua, segurando um rato.
A publicação original da pesquisa está disponível online, e também um compilado de relatórios semestrais dos pesquisadores do Endef produzido pelo setor de memória do IBGE em 2014.
Fonte: BBC Brasil