Violência de Estado
Por Sandra Porto
A Lei da Anistia promulgada em 1979, pelo então presidente João Baptista Figueiredo, é considerada por muitos brasileiros como um projeto político para o esquecimento. A anistia garantiu a liberdade dos acusados de praticar tortura e devolveu direitos plenos aos exilados.
A partir dela, no imaginário da nação, as graves violações dos direitos humanos ficaram como excessos praticados em porões. Na verdade, prédios públicos foram utilizados por agentes do Estado, que obedeceram ordens de uma cadeia de comando política para o aniquilamento dos que lutaram contra o regime de exceção no país. A Anistia, portanto, deslocou o Estado da cena dos crimes cometidos por militares e servidores públicos contra opositores do golpe de 1964, que completa 50 anos este ano.
Segundo a Comissão de Anistia, “o Ministério da Justiça considera que os três pilares de um processo de transição democrática são a verdade, a memória e a reparação”. E é nesse contexto que há um ano e meio a ‘Clínica do Testemunho’, do Instituto Projetos Terapêuticos, oferece apoio e acompanhamento psicológico a 40 anistiados, anistiandos e seus familiares em São Paulo.
“Nós tínhamos uma expectativa maior de participação, porque são 70 mil processos, mas as pessoas são resistentes. O que será começar a mexer com a estabilização psíquica que algumas pessoas conseguiram depois de 40 anos?”, pondera a psicoterapeuta Maria Marta Azzolini, do Instituto Projetos Terapêuticos, de São Paulo.
Iniciativas semelhantes estão sendo promovidas e financiadas pelo governo federal no Instituto Sede Sapienties na capital paulista, no Rio de Janeiro, Porto Alegre e Recife. São ações ligadas à política de reparação do Estado, depois do reconhecimento oficial dos danos que o regime ditatorial causou.
“Essa coisa da anistia ampla, geral e irrestrita e a não punição dos responsáveis ficou muito sem lugar”, explica Maria Marta. “A importância destes grupos está justamente na ruptura do silêncio. Depois da repressão explícita veio o recalque, um fingimento que aquilo não existiu, como se fosse possível viver com os custos dessa verdade escondida”, conclui.
Os dados preliminares da Comissão Nacional da Verdade dão conta de 400 mortos e desaparecidos em decorrência da repressão no Brasil. O clamor popular dos brasileiros pelo esclarecimento dos fatos é praticamente um muxoxo. Diferente, por exemplo, do ocorrido na Argentina, com o movimento das ‘Mães da Praça de Maio’, ou no Chile, com a prisão pelos agentes da polícia de Augusto Pinochet, então com 83 anos.
Falar para que não se repita
O número de vitimados pela ditadura pode e deve ser multiplicado por milhares de vezes. É possível entender isso a partir do depoimento de uma das participantes da “Conversa Clínica Pública”, outra modalidade de intervenção terapêutica do grupo paulista, que aconteceu no último dia 3, no Centro Cultural São Paulo: “Esses dias estava pensando o que essa ditadura militar trouxe para a gente. Era uma criança sensível, que vivi muito medo na minha infância. Eu me lembro da minha mãe falando para mim – ‘filha, você não pode falar do governo’ -, e eu nem sabia o que era governo! O medo estava no ar o tempo inteiro, eu era muito pequena e me lembro de ter muito medo”.
“A ideia das ‘Conversas Clínicas Públicas’ é que a gente circule algo que ficou de alguma forma calado, reprimido, silenciado. O conceito de testemunho é um articulador para que os traumas, dores e memórias possam ganhar outro âmbito de circulação”, explica o psicoterapeuta Rodrigo Blum, membro da equipe clínica do Instituto.
Para Emilio Ivo…, um militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), preso político nos anos 1970/71 e participante do grupo terapêutico: “Considero um absurdo que as pessoas não saibam dessa ditadura da forma como ela foi, que não saibam que os militares mataram, torturaram e espancaram. Foi terrível o que aconteceu naquele período. Dentro da minha dimensão eu vou falar! Agora eu estou me tornando um sujeito tão atrevido como era quando tinha 17 anos nas ruas de Porto Alegre. Sou um ex calado. Sou um falador recente”.
“Saí da prisão no final de 1971 e nunca falei. Nem eu mesmo entendo o que aconteceu no período pós-cadeia. Num determinado momento eu precisava contar o que aconteceu comigo, comecei a ficar muito assustado, principalmente há dois anos, quando pessoas falavam que teve uma ditadurazinha aí, mas o país cresceu, se desenvolveu, teve o milagre econômico. Eu tinha que contar a humilhação que sofri nas mãos do exército brasileiro. Fui torturado no DOI-CODI durante 30 dias. Todos os dias, às vezes duas vezes por dia. Em um mês tenho mais de 80 interrogatórios registrados”.
“Por que eu não falava? Fui agredido física e mentalmente. Um ano atrás, quando comecei a participar da ‘Clínica do Testemunho’, praticamente não me manifestei. Chorei muito. Procurei o grupo porque queria explicar para meus três filhos o porquê agi daquela maneira durante tantos anos. Depois, para conseguir falar para os meus parentes e amigos. O que é a tortura? Eu escrevi sobre isso todas as noites durante 40 anos em condições psíquicas precárias”.
“Uma vez, quando eu estava na cadeira do dragão (uma espécie de cadeira elétrica), falei – ai minha mãezinha! E o delegado torturador João José Vettorato se enfureceu e disse: ‘que mãe? Quem deveria estar sentada aí era a filha da puta da tua mãe, que pariu um terrorista, comunista como você!’ Eu não sei o porquê revivi isso uma vida inteira!”
“Outra vez, estava no pau de arara (uma barra de ferro é atravessada entre os punhos amarrados e a dobra do joelho, o ‘conjunto’ é colocado entre duas mesas, ficando o corpo do torturado pendurado a cerca de 30 centímetros do chão), não estava suportando mais e falei – ai meu Deus do céu! O delegado se enfureceu mais uma vez e disse: ‘dessa porta pra dentro, aqui nesta sala, o deus sou eu! Eu sou deus!”.
“Como eu não conseguia andar, sob a supervisão direta e a presença onipotente do Major Ustra, eles colocaram uma coleira no meu pescoço. O Major mandou que me levassem ao chuveiro para me recompor fisicamente, para ver se eu suportaria mais um tempo de tortura. Fui levado pelo corredor, da sala até o chuveiro puxado pela cordinha, andando de quatro e o carcereiro chutando minha bunda e falando ‘vem, vem, vem’… Por um tempo eu apaguei isso, mas escrevi esse episódio numa destas várias noites de desgraça”.
A ideia de tornar público esse tipo de relato é porque enquanto se mantém o silêncio, de algum modo o torturador fica como inexistente, porque se a tortura não aconteceu, não existiu o torturador. Tem pessoas que foram muito torturadas. Outros que passaram muito tempo na cadeia e que, por isso, ouviram ou presenciaram a tortura de outros. Há o caso dos filhos dos perseguidos que foram afetados pela experiência dos pais, seja porque presenciaram a tortura, seja porque viveram o seu inesperado desaparecimento ou ainda porque cresceram no exílio ou na clandestinidade, sem a possibilidade de criar laços com crianças da mesma idade na escola ou na rua onde moravam.
Desdobramentos futuros
Segundo Maria Marta, a ‘Clínica do Testemunho’ ainda está sendo criada nesses quase dois anos de atividade, porque ela é muito diferente da tradicional psicanálise. É uma terapia que não está interessada em pesquisar, nem trabalhar os traumas infantis. A terapia se volta para pensar a vivência traumática, que na maioria das vezes foi silenciada na sequência, nem tanto um silenciamento subjetivo, mas social, porque não se falou muito sobre o ocorrido. “Trabalhamos também com a transferência do trauma para as gerações seguintes, do torturado para os filhos podendo chegar inclusive aos netos”.
O calendário da Secretaria Municipal dos Direitos Humanos para marcar o cinquentenário do golpe de 64, incluiu levar a ‘Conversa Clínica Pública’ para a periferia da capital, entre jovens que não tinham tido contato com a história da ditadura, mas que tinham experiências de violência muito próximas. Uma adolescente no começo do diálogo disse que não tinha muita história para contar, porque não tinha vivido situação de violência. Porém, ao escutar os relatos, ela foi se deparando com situações que tinha vivido no dia a dia, mas tão naturalizada estava a violência, que ela não conseguia nem reconhecer aquilo como uma violação de direitos. No final ela disse: “tenho muitas histórias para contar. A lei do silêncio está presente até hoje, o medo impera até hoje”.
O Instituto Projetos Terapêuticos já está articulando com a Secretaria Municipal de Saúde para capacitar novos grupos. No futuro o foco será a violência de Estado no âmbito da segurança pública
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BOX: A jornalista Paula Saccheta, neta de um jornalista preso na ditadura Vargas, e o fotógrafo Peu Robles entraram em um site de financiamento coletivo, levantaram R$ 20 mil e produziram o documentário de 55 minutos “Verdade 12.528”, uma referência à lei que criou a Comissão da Verdade. O filme reúne depoimentos dos parentes de mortos e desaparecidos políticos da ditadura militar e discute a violação dos direitos humanos ocorridas entre 1946/1988 e nos dias de hoje.
O “Verdade 12.528” fará parte dos 1000 kits que serão distribuídos pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos para a rede Municipal de Ensino.
Assista ao trailer do filme: