Vítimas da crise na Etiópia sofrem com estupros e outras violências
Conflito que opõe governo etíope e insurgentes tem afetado diretamente a vida de civis, que veem suas casas serem invadidas, mulheres serem estupradas e pessoas de diferentes idades serem vítimas de todo tipo de violência
Por: Mariana Lima
Uma estudante etíope, que pediu para não ser identificada, contou à BBC News o que tem vivido na Etiópia. A jovem de 18 anos perdeu a mão direita ao se defender de um soldado que tentou estuprá-la e que também tentou forçar seu avô a violentá-la.
A região, localizada no norte da Etiópia, é o foco do conflito entre o governo do país e membros do partido nacionalista Frente de Libertação do Povo Tigray (FLPT), que governa a região.
A jovem está internada em um hospital em uma das cidades da região há mais de dois meses, para se recuperar do que lhe aconteceu.
A ofensiva na região, promovida pelo primeiro-ministro Abiy Ahmed, ganhador do Prêmio Nobel da Paz 2019, contra o FLPT se iniciou em novembro, e vem destruindo a vida de quem reside na região.
Os moradores de Tigray fugiram para as montanhas, mesmo após Abiy declara vitória depois de capturar a capital de Tigray, Mekelle, com as forças federais em 29 de novembro.
Isso se deve ao fato das forças de segurança terem iniciado uma operação para caçar membros do partido de oposição que se recusaram a se render, resultando em alegações de graves abusos dos direitos humanos cometidos contra os moradores de Tigray. As autoridades negam.
A jovem ouvida pela BBC e seu avô permaneceram em sua casa na cidade de Abiy Addi, a cerca de 96 km a oeste de Mekelle, pois era difícil para eles viajarem para longe.
No dia 3 de dezembro, segundo a jovem, um soldado vestido com uniforme militar etíope entrou em sua casa exigindo saber onde estavam os combatentes antigoverno.
Após vasculhar a residência e não encontrar ninguém, o soldado ordenou que se deitassem em uma cama e começou a atirar em volta dela.
Foi neste momento que ele ordenou que o avô da menina a violentasse. Ao ouvir isso, o avô ficou zangado e ele e o soldado iniciaram uma briga.
O soldado, de acordo com a jovem, levou o idoso para fora do quarto e atirou nos ombros e na coxa do avô da jovem. Ao voltar até o quarto, disse para ela que o havia matado.
Ela conta que ele disse que ninguém poderia salvá-la e mandou que tirasse a roupa. Ela resistiu, então o soldado passou a socá-la.
A luta entre eles continuou por vários minutos – embora se sentisse desorientada com os golpes – e no final, o soldado ficou com tanta raiva que apontou a arma para ela.
A jovem foi atingida por três tiros em sua mão direita. Outros três tiros foram contra a sua perna. O soldado só parou quando ouviu um tiro do lado de fora.
Felizmente, o avô da jovem ainda estava vivo, apesar de estar inconsciente, e por dois dias eles permaneceram intimidados e feridos em sua casa, com muito medo de procurar ajuda.
A neta e o avô só receberam ajuda após serem encontrados dois dias após o ataque, por soldados eritreus que vasculhavam a área. Tanto a Etiópia quanto a Eritreia negam o envolvimento do país vizinho no conflito de Tigray.
Ambos contam que os eritreus cuidaram de seus ferimentos e os entregaram às tropas etíopes, que os levaram para Mekelle após o hospital local ser fechado. O avô já se recuperou dos ferimentos, mas sua neta ainda precisa de tratamento após a amputação da mão.
A jovem, que estava no último ano da escola, sonhava em ir para a universidade para estudar engenharia. Ela queria ter uma carreira que permitisse cuidar do avô, que a criou desde a morte da mãe dela.
Estupro como arma de guerra
O relato da adolescente corrobora com outros relatos de estupros em Tigray, recolhidos por Pramila Patten, enviada da ONU sobre violência sexual em conflito.
Além de indivíduos supostamente forçados a estuprar membros de suas próprias famílias, em meio a ameaças de violência, Patten relata que mulheres também teriam sido forçadas por militares a fazer sexo em troca de produtos básicos.
Outro elemento apontado por Patten é que centros médicos indicaram um aumento na demanda por contracepção de emergência e para infecções sexualmente transmissíveis, o que pode ser um indicador da violência sexual no conflito.
Três partidos de oposição em Tigray informaram que assassinatos extrajudiciais e estupros coletivos se tornaram “práticas cotidianas”.
Um médico e um membro de um grupo de direitos das mulheres, que pediram para permanecer anônimos, disseram à BBC em janeiro que ouviram relatos de, no mínimo, 200 meninas menores de idade em diferentes hospitais e centros de saúde em Mekelle que informaram ter sido estupradas.
A maior parte das vítimas alegou que os abusadores usavam uniforme do exército etíope, e depois foram advertidas a não buscarem ajuda médica. Eles relatam casos de estupros coletivos, mulheres feitas reféns e estupradas por uma semana inteira e sem qualquer meio de denúncia.
Os casos, segundo o ativista, ocorrem por toda as regiões de Tigray, mas os problemas de transporte dificultam a chegada da ajuda.
Para o ativista Weyni Abraha, que pertence ao grupo de direitos das mulheres de Tigray Yikono (Basta, em tradução para o português), o estupro está sendo usado na região como arma de guerra. Ele esteve em Mekelle até o fim de dezembro.
Já o chefe do Exército da Etiópia, Birhanu Jula Gelalcha, nega as acusações. À BBC ele disse: “Nossas forças de defesa não estupram. Não são bandidos. São forças do governo. E as forças do governo têm ética e regras de engajamento”.
A narrativa é embasada por Atakilty Hailesilasse, recém-nomeado prefeito interino de Mekelle. Ele afirma que os números citados por grupos de direitos humanos são “grosseiramente exagerados”.
Recentemente, o governo do país enviou uma força-tarefa a Tigray para investigar mais as alegações, incluindo pessoas dos ministérios da Mulher e da Saúde e do gabinete do procurador-geral, que indicaram que estupros ocorreram, embora seu relatório completo ainda não tenha sido divulgado.
No início de fevereiro, a Comissão de Direitos Humanos da Etiópia disse que 108 casos de estupro foram registrados nos últimos dois meses em toda a região de Tigray.
A Comissão ainda admitiu que “estruturas locais, como polícia e centros de saúde, onde as vítimas de violência sexual normalmente recorrem para denunciar tais crimes, não estão funcionando”.
Fonte: BBC News Brasil